Num domingo de manhã, em uma igreja no Meio Oeste dos Estados Unidos, fiéis atravessam portas de vidro automáticas em direção a um átrio movimentado, sem saber que acabaram de passar por um corredor de vigilância biométrica. Câmeras de alta velocidade capturam múltiplas “sondagens” faciais por segundo, isolando olhos, narizes e bocas antes de enviar os resultados a uma rede neural local que refina essas imagens em impressões digitais. Antes que as pessoas encontrem seus assentos, elas são comparadas a um banco de dados local, marcado com nomes, níveis de associação e alertas de lista de observação, armazenado atrás do firewall (sistema de segurança de rede) da igreja.
No fim de uma tarde, uma mulher rola a tela do celular enquanto caminha de volta do trabalho. Sem que ela saiba, um algoritmo complexo juntou seus perfis sociais, seus registros privados de saúde e listas locais de apoio a veteranos. Ele a sinaliza por serviço militar anterior, dor crônica, dependência de opioides e forte crença cristã, e então entrega um anúncio em seu feed do Facebook: “Lutando contra a dor? Você não está sozinha. Junte-se a nós neste domingo.”
Essas cenas hipotéticas refletem capacidades reais cada vez mais incorporadas aos locais de culto em todo o país, onde o cuidado espiritual e a tecnologia convergem de formas que poucos fiéis percebem. Onde o ethos racionalista da Big Tech e a espiritualidade evangélica antes se misturavam como óleo e água benta, essa improvável amálgama deu origem a uma infraestrutura que já está remodelando a teologia da confiança, e redesenhando os contornos da comunidade e do poder pastoral na vida espiritual moderna.
Um ecossistema tecnológico ecumênico
O centro nervoso emergente desse nexo entre fé e tecnologia está em Boulder, Colorado, nos Estados Unidos, onde a empresa de dados espirituais e tecnologia Gloo tem sua sede.
A Gloo está construindo uma infraestrutura digital destinada a levar as igrejas à era do algorítmo.
A igreja é “um mercado altamente fragmentado que é um dos maiores a não adotar totalmente a tecnologia digital”, disse a empresa em um comunicado por e-mail. “Embora tenham uma variedade de objetivos para cumprir sua missão, elas usam a Gloo para ajudá-las a se conectar, engajar-se com e conhecer seu povo em um nível mais profundo.”
A Gloo foi fundada em 2013 por Scott e Theresa Beck. Do final dos anos 1980 até os anos 2000, Scott transformou a Blockbuster em uma rede de 3.500 lojas, levou a Boston Market a abrir capital e fundou a empresa Einstein Bros. Bagels, antes de financiar e orientar startups como Ancestry.com e HomeAdvisor. Theresa, artista, construiu uma reputação criando oficinas colaborativas e voltadas ao meio ambiente em todo o Colorado e além. Juntos, eles convenceram milhares de igrejas da ideia de que a saúde espiritual pode ser gerida como o engajamento de clientes.
Pense na Gloo como algo semelhante a empresa de tecnologia Salesforce, mas para igrejas, alimentado por percepções geradas pelas próprias instituições religiosas e informações psicográficas. A empresa se refere a si mesma como “uma plataforma tecnológica para o ecossistema da fé.” De qualquer forma, essas informações são integradas ao seu painel “Estado da Sua Igreja”, uma interface para o púlpito moderno.
Desde seu lançamento em 2013, a Gloo tem aumentado constantemente sua presença e começou a se tornar o tecido conectivo do fragmentado cenário religioso do país. Segundo a instituição Hartford Institute for Religion Research, os Estados Unidos abrigam cerca de 370 mil congregações distintas. No início de 2025, de acordo com números fornecidos pela empresa, a Gloo mantinha contratos com mais de 100 mil igrejas e líderes ministeriais.
Em 2024, a empresa garantiu um aporte estratégico de US$ 110 milhões (quase 600 milhões de reais), apoiado por investidores “alinhados à missão”, que vão desde uma ONG de desenvolvimento infantil até um grupo denominacional de finanças. Isso consolidou sua evolução de simples fornecedora de serviços para igrejas a um gigante da tecnologia da fé.
Ela começou a adquirir e investir em uma constelação de ferramentas ministeriais, desde distribuição automatizada de sermões até análises em tempo real de doações e frequência, chatbots movidos por IA e bibliotecas de conteúdo de liderança. Ao sobrepor essas capacidades à sua plataforma principal, a empresa criou um balcão único para igrejas que combina serviços administrativos com aplicativos de engajamento de membros e percepções psicográficas para concretizar plenamente esse unificado “ecossistema da fé”.
E apenas neste ano, dois grandes desenvolvimentos trouxeram essa estratégia para um foco mais nítido.
Em março de 2025, a Gloo anunciou que o ex-CEO da Intel, Pat Gelsinger, que atua como presidente do conselho desde 2018, assumiria um papel ampliado como presidente executivo e chefe de tecnologia. Gelsinger, que a empresa descreve como “um grande investidor e parceiro de longo prazo”, é um tecnólogo cujas impressões digitais estão nas maiores inovações da Intel e da VMware.
(Vale notar que acionistas da Intel abriram um processo contra Gelsinger e o CFO David Zinsner buscando reaver aproximadamente US$ 207 milhões em compensação paga a Gelsinger, alegando que entre 2021 e 2023 ele enganou repetidamente os investidores sobre a saúde da Intel Foundry Services.)
Na mesma semana em que a Gloo anunciou o novo cargo de Gelsinger, revelou também um investimento estratégico no Barna Group, a empresa de pesquisa sediada no Texas cujas quatro décadas de levantamentos com mais de 2 milhões de pessoas sustentam seus relatórios anuais sobre culto, crenças e engajamento cultural. O banco de dados proprietário da Barna, abrangendo todas as regiões, faixas etárias e denominações, a tornou a principal fonte de insights para pastores, seminários e veículos de mídia que acompanham o pulso da fé americana.
“Temos adquirido cerca de uma empresa por mês para a família Gloo, e esperamos que isso continue”, disse Gelsinger à MIT Technology Review em junho. “Tenho três reuniões esta semana sobre diferentes negócios que estamos analisando.” (Um porta-voz da Gloo recusou-se a confirmar o ritmo das aquisições, afirmando apenas que, em 30 de abril de 2025, a empresa havia adquirido totalmente ou assumido participação majoritária em 15 “empresas alinhadas à missão.”)
“A ideia é: quanto mais dessas pudermos trazer, melhor poderemos aplicar a plataforma”, disse Gelsinger. “Já estamos trabalhando com empresas com décadas de experiência, mas sem a escala, a tecnologia ou a distribuição que agora podemos oferecer.”
Em particular, os acervos de dados comportamentais, espirituais e culturais da Barna oferecem uma visão detalhada dos comportamentos, crenças e ansiedades das comunidades de fé. Embora as duas organizações enquadrem a colaboração em termos de servir líderes de igrejas, a mecânica se assemelha a um motor de fusão de dados em escala impressionante: a Barna fornece a textura psicológica, e a Gloo oferece a infraestrutura digital para segmentar, pontuar e aplicar as informações.
Em um vídeo promocional de 2020 que já não está mais disponível online, a Gloo afirmava oferecer “a primeira plataforma de big data do mundo centrada no crescimento pessoal”, prometendo aos pastores uma visão de 360 graus dos fiéis, incluindo alertas para uso de substâncias ou problemas de saúde mental. Ou, como o vídeo colocava: “Maximize sua capacidade de mudar vidas aproveitando insights de big data, compreenda as pessoas que você deseja servir, alcance-as mais cedo e transforme suas necessidades em uma jornada rumo ao crescimento” (A Gloo afirma que a empresa já não utiliza dados identificáveis de terceiros).
A Gloo também está agora focada em turbinar seus serviços com inteligência artificial e usar esses insights para transcender a pesquisa de mercado. Em um evento realizado em setembro de 2024 em Boulder, chamado AI & the Church Hackathon, a Gloo revelou novas ferramentas de IA chamadas Data Engine, um sistema de gerenciamento de conteúdo com proteções integradas de direitos digitais, e Aspen, um protótipo inicial de seu chatbot “espiritualmente seguro”, juntamente com o modelo de linguagem ajustado para a fé que alimenta esse chatbot, conhecido internamente como CALLM (de “Christian-Aligned Large Language Model”, o Grande Modelo de Linguagem Alinhado ao Cristianismo).
Mais recentemente, a empresa lançou o que chama de “Padrões de IA para o Florescimento”, que avaliam modelos de linguagem ampla quanto ao seu alinhamento com sete dimensões do bem-estar: relacionamentos, propósito, felicidade, caráter, finanças, saúde e espiritualidade. Desenvolvido em conjunto com o Barna Group e o Human Flourishing Program de Harvard, o referencial baseia-se em um banco de testes com mais de mil itens e no Global Flourishing Study, um projeto de US$ 40 milhões, em 22 nações, conduzido pelo programa de Harvard, pelo Institute for Studies of Religion da Baylor University, pela Gallup e pelo Center for Open Science.
Gelsinger chama o estudo de “um dos corpos de trabalho mais significativos em torno dessa questão de valores em décadas.” Ainda não está claro como a coleta desse tipo de informação em tal escala poderia, em última instância, afetar a fronteira entre o cuidado espiritual e o comércio de dados. Uma coisa, no entanto, é certa: uma rica veia de doações e financiamento pode estar em jogo.
“O dinheiro já está sendo gasto aqui”, disse ele. “O capital doado nos EUA por meio da igreja gira em torno de US$ 300 bilhões. Outroas centenas de bilhões além disso não passam pela igreja. Muitos doadores têm capital disponível, e somos uma nação generosa nesse aspecto. Se você colocar a economia relacionada ao florescimento na mesa, agora estamos falando de US$ 1 trilhão. Essa é uma capacidade econômica significativa. E se tornarmos essa capacidade mais eficiente, isso é grande.” Em termos seculares, é um ciclo de vida de dados de clientes. Na tecnologia da fé, pode ser um funil de conversão, projetado não apenas para salvar almas, mas para moldá-las.
Uma das parcerias mais visíveis da Gloo ocorreu entre 2022 e 2023 com a organização sem fins lucrativos He Gets Us, que realizou uma campanha de mídia de um bilhão de dólares destinada a fazer uma modernização na “marca” Jesus para um público moderno. Quando os espectadores que viam os anúncios nas redes sociais ou no YouTube clicavam, eram direcionados para formulários de pedidos de oração, questionários e ferramentas de correspondência com igrejas, todos projetados para coletar detalhes pessoais. A Gloo então sobrepunha esses dados brutos às décadas de pesquisas comportamentais da Barna, transformando entradas simples, e-mail, localização, interesses declarados, no que a empresa apresentava como perfis espirituais multidimensionais. O produto final oferecia um nível de granularidade que nenhuma congregação isolada poderia alcançar por conta própria.
Embora a Gloo ainda liste o He Gets Us em sua plataforma, a organização sem fins lucrativos Come Near, que desde então assumiu a campanha, afirma ter encerrado o envolvimento da Gloo. Ainda assim, o He Gets Us levou a uma das relações mais valorizadas pela Gloo ao despertar o interesse da Igreja Africana Metodista Episcopal Zion, uma denominação de 229 anos com profundas raízes históricas nos movimentos abolicionista e de direitos civis. Em 2023, a igreja formalizou uma parceria com a Gloo, e no final de 2024 anunciou que todas as suas 1.600 congregações nos EUA, representando aproximadamente 1,5 milhão de membros, começariam a usar o painel Estado da Sua Igreja da empresa.
Em um comunicado de imprensa de 2024 emitido pela Gloo, a AME Zion reconheceu que, embora a denominação há muito acompanhasse métricas tradicionais como crescimento de membros, participação nos cultos de domingo e doações financeiras, tinha visibilidade limitada sobre a saúde mais profunda de suas comunidades.
“Até agora, nos faltava a percepção para entender como a cultura da igreja, as pessoas e as congregações estão realmente indo”, disse o Reverendo J. Elvin Sadler, secretário-geral e auditor da denominação. “Os painéis Estado da Sua Igreja nos darão uma noção melhor do espírito e da linguagem da cultura, e novas ferramentas poderosas para colocar nas mãos de cada pastor.”
A implementação marcou a primeira vez que uma grande denominação dos EUA havia implantado a estrutura da Gloo em escala. A parceria desbloqueou um fluxo de dados em tempo real e longitudinal de uma rede religiosa nacional. Isso não apenas validou a visão da Gloo de um ministério orientado por dados, como também posicionou a AME Zion como o que a empresa espera ser um caso de teste em tempo real, persuadindo outras denominações a fazerem o mesmo.
A cadeia de suprimentos digital
A infraestrutura digital das igrejas modernas frequentemente começa com intimidade: um pedido de oração, uma inscrição em um grupo pequeno, uma transmissão ao vivo assistida em um momento de solidão. Mas, por trás desses pontos de contato pastorais, encontra-se um canal sofisticado que cada vez mais espelha os motores da economia da atenção do Vale do Silício.
Charles Kriel, cineasta que anteriormente atuou como assessor especial do Parlamento do Reino Unido em desinformação, dados e tecnologia viciante, tem uma visão particular sobre essa conexão. Kriel tem trabalhado por mais de uma década em questões relacionadas à preservação da democracia e ao combate à vigilância digital. Ele ajudou a redigir a Online Safety Act do Reino Unido, unindo forças com muitos colaboradores, incluindo a jornalista Maria Ressa, vencedora do Prêmio Nobel da Paz, e o ex-ministro de tecnologia britânico Damian Collins, em uma tentativa de conter a Big Tech no final da década de 2010.
Seu documentário de 2020, People You May Know, investigou como empresas de dados coletam informações pessoais íntimas de frequentadores de igrejas para construir perfis psicográficos, destacando como esses dados sensíveis são transformados em mercadoria e levantando questões sobre seus possíveis usos posteriores.
“Olha, qualquer igreja com um aplicativo? Provavelmente não foi ela que construiu. É white label”, diz Kriel, referindo-se a serviços produzidos por uma empresa e rebatizados por outra. “E as pessoas que venderam isso para elas estão coletando dados.”
Muitas igrejas agora operam dentro de um ambiente digital em camadas, onde dados primários coletados dentro da igreja são combinados com dados de consumidores de terceiros e segmentação psicográfica antes de serem alimentados em sistemas preditivos. Esses sistemas podem sugerir sermões que as pessoas talvez queiram assistir online, corresponder membros a pequenos grupos ou acionar contato quando o engajamento diminui.
Em alguns casos, o monitoramento pode até assumir a forma de vigilância biométrica.
Em 2014, um veterano israelense de tecnologia de segurança chamado Moshe Greenshpan trouxe o reconhecimento facial de nível aeroportuário para as entradas das igrejas. O Face-Six, a suíte de vigilância da empresa que ele fundou em 2012, já protegia bancos e hospitais; seu desdobramento mais provocativo, o FA6 Events (também conhecido como “Churchix”), reaproveita essa tecnologia para lugares de culto.
Greenshpan afirma que não tinha a intenção inicial de vender para igrejas. Mas, com o tempo, à medida que foi se tornando cada vez mais ciente do mercado, ele construiu o FA6 Events como uma solução sob medida para elas. Hoje, Greenshpan afirma que está em uso em mais de 200 igrejas ao redor do mundo, quase metade delas nos EUA.
Na prática, o FA6 transforma cada entrada em um ponto de verificação biométrica: uma contagem instantânea, uma varredura de segurança e um livro digital de presença, tudo incorporado à rotina familiar do culto de domingo.
Quando alguém entra em um lugar de culto equipado com FA6, uma câmera discreta montada à altura dos olhos é acionada. Nos bastidores, cada imagem capturada é processada por um detector de rosto ultrarrápido que analisa o rosto completo. O rosto cortado do sujeito é então alinhado, redimensionado e girado para que os olhos fiquem em uma linha horizontal perfeita, antes de ser alimentado em uma rede neural compacta.
Essa rede neural embarcada captura rapidamente as características do rosto de uma pessoa em uma assinatura digital única chamada embedding (encorporação), permitindo uma identificação rápida. Esses embeddings são comparados com milhares de outros que já estão no banco de dados local da igreja, cada um marcado com pontos de dados como nome, cargo de membro ou até mesmo uma bandeira indicando inclusão em uma lista interna de vigilância. Se a correspondência for forte o suficiente, o sistema faz uma identificação e registra a presença da pessoa no servidor seguro da igreja.
Uma congregação pode acessar registros completos de presença, registros de entrada com carimbo de data e hora e, o mais importante, alertas sempre que alguém de uma lista de vigilância atravessar as portas. Nesse contexto, são fotos, e às vezes nomes, de indivíduos que uma igreja foi solicitada (ou escolheu) excluir: perturbadores anteriores, aqueles sujeitos a ordens de afastamento ou restrição, até mesmo agressores sexuais registrados. Uma vez que essa lista é carregada no Churchix, o sistema imediatamente marca qualquer correspondência na chegada, notificando as equipes de segurança ou os funcionários da igreja em tempo real. Algumas igrejas dependem disso para identificar membros antigos que desapareceram do radar e acionar verificações pastorais; outras usam como uma barreira rígida, negando automaticamente a entrada de qualquer pessoa na lista mantida localmente.
Nenhum desses dados é enviado para a nuvem; Greenshpan afirma que a empresa está trabalhando ativamente em um aplicativo baseado em nuvem. Em vez disso, todos os modelos faciais e registros são armazenados localmente no hardware de propriedade da igreja, criptografados para que não possam ser lidos se alguém obter acesso não autorizado.
As igrejas podem exportar dados do Churchix, diz ele, mas os modelos faciais subjacentes permanecem nas instalações.
Ainda assim, Greenshpan admite que salvaguardas técnicas robustas não significam transparência.
“Pelo melhor do meu conhecimento”, diz ele, “nenhuma igreja notifica seus congregantes de que está usando reconhecimento facial.”
Se as ferramentas parecem invasivas, a lógica por trás delas é simples: quanto mais o sistema souber sobre você, mais precisamente ele poderá intervir.
“Cada novo membro da comunidade dentro de um raio de 20 milhas, qualquer área que você escolher, nós enviaremos um folheto convidando-os para a sua igreja”, diz Gelsinger, da Gloo.
É um renascimento tecnológico do ministério da lasanha. O sistema avisa à igreja quando alguém novo se muda, “para que alguém possa deixar biscoitos ou lasanha quando houver um recém-nascido no bairro”, ele diz. “Ou simplesmente dizer ‘Ei, bem-vindo. Estamos aqui.’”
O sistema de back-end (que interage com os dados) da Gloo também automatiza o acompanhamento: assim que um pastor desce do púlpito após entregar um sermão, ele pode ser traduzido para cinco idiomas, dividido em trechos para estudo em pequenos grupos e reformatado em um esboço de guia de discussão, pronto dentro de uma hora.
Gelsinger vê a mesma abordagem se estendendo para ministérios de recuperação de dependentes. “Podemos conectar outros bancos de dados para ajudar as igrejas com centros de recuperação a alcançar as pessoas de forma mais eficaz”, diz ele.
Mas os dados não permanecem dentro da congregação. Eles fluem através de sistemas de gerenciamento de relacionamento com o cliente (CRM), interfaces de programação de aplicativos, servidores na nuvem, parcerias com fornecedores e empresas de análise. Parte deles é usada internamente em esforços para aumentar o engajamento; o restante é reembalado como “insights” para o mercado mais amplo de tecnologia da fé, e, às vezes, até para redes que direcionam anúncios políticos.
“Há uma coisa muito específica que acontece quando as igrejas se tornam clientes da Gloo”, diz Brent Allpress, um acadêmico baseado em Melbourne, na Austrália, que foi um dos principais pesquisadores de People You May Know. A Gloo obtém acesso aos bancos de dados da igreja cliente, diz ele, e a igreja “é fortemente incentivada a compartilhar esses dados. E a Gloo tem um mecanismo para simplesmente sugar esses dados diretamente para o seu silo.”
A Gloo contesta as conclusões de Allpress. “A Gloo não reteve nenhum dado da campanha,” diz o porta-voz da Gloo, Justin Hall. “Além disso, a Gloo possui acordos de processamento de dados com cada igreja, conforme os quais a Gloo usa os dados apenas como processadora de dados, o que significa que a Gloo só pode fazer o que a igreja instrui que seja feito com os dados.”
De fato, esse processo não acontece automaticamente; a igreja deve optar por isso, enviando esses arquivos ou conectando o banco de dados do sistema de software de gerenciamento da igreja à Gloo via API.
“Há líderes religiosos no nível intermediário e local que acham que o uso de dados é bom. Eles estão usando para identificar pessoas em necessidade. Viciados, os enlutados,” diz Kriel. “E então você tem pessoas da tecnologia correndo por aí citando a Bíblia de forma errada como justificativa para sua colheita de dados.”
Matt Engel, que ocupava o cargo de diretor executivo de inovação ministerial na Gloo quando o filme de Kriel foi feito, reconheceu a extensão dessa colheita na cena de abertura.
“Medimos pedidos de oração. Chame isso de loucura. Mas era como, ‘Estamos sentados sobre montes de informações que poderiam nos ajudar a cuidar de nosso povo,’” disse ele em uma entrevista em frente à câmera.
De acordo com Engel, com quem a Gloo não disponibilizou para comentários públicos,, carregar dados de pedidos de oração anônimos para a nuvem foi o primeiro caso de uso da Gloo.
Potencializando iniciativas de terceiros
Mas a infraestrutura de dados da Gloo não termina com sua própria plataforma; ela também impulsiona iniciativas de terceiros.
A Communio, uma organização cristã sem fins lucrativos focada em casamento e família, usou a infraestrutura de dados da Gloo para lançar o “Communio Insights”, uma versão simplificada da plataforma completa de análises da Gloo.
Ele foca de forma restrita em métricas relacionais, indicadores de estresse no casamento e na família, envolvimento em pequenos grupos na igreja, e dados demográficos básicos.
No coração de seu manual está uma analogia simples, embora perturbadora.
“Se você vende produtos de consumo de diferentes tipos, está tentando descobrir boas maneiras de comercializá-los. E não há produto melhor, realmente, do que o evangelho,” disse J.P. De Gance, o fundador e presidente da Communio, em People You May Know.
Allpress também expôs outro problema crítico: o uso explícito de dados sensíveis de saúde.
Ele descobriu que o Gloo Insights (um produto anterior que foi descontinuado) combinava mais de 2.000 pontos de dados, utilizando tudo, desde históricos de crédito e compras em nível nacional até registros de gerenciamento de igrejas e pesquisas psicográficas cristãs, com filtros que possibilitam identificar pessoas com problemas de saúde como depressão, ansiedade e luto. O resultado: Públicos Personalizados do Facebook construídos para focar em indivíduos vulneráveis por meio de anúncios direcionados.
Esses anúncios convidam pessoas que sofrem de condições de saúde mental a ingressar em grupos de aconselhamento da igreja “como um caminho para a conversão,” diz Allpress.
Esses esforços de alcance direcionado foram testados em cidades como Phoenix, Arizona; Dayton, Ohio; e Jacksonville, Flórida. Segundo relatos, até 80% dos contactados responderam positivamente, com aqueles que se tornaram membros de uma igreja contribuindo financeiramente em taxas acima da média. Em resumo, Allpress descobriu que ferramentas pastorais haviam explorado de forma encoberta as vulnerabilidades de saúde mental e crises de relacionamento para um alcance que borrava as linhas separando o cuidado pastoral, o comércio e objetivos políticos implícitos.
O vácuo legal e ético
Os desenvolvedores dessa tecnologia afirmam com sinceridade que os sistemas são projetados para melhorar o cuidado, não para explorar a necessidade das pessoas dele. Eles são descritos como formas de adaptar o apoio às necessidades individuais, melhorar o acompanhamento e ajudar as igrejas a fornecer recursos no momento certo. Mas especialistas dizem que, sem uma governança robusta de dados ou transparência sobre como as informações sensíveis são usadas e retidas, a tecnologia pastoral bem-intencionada pode escorregar para a vigilância.
Examinar os termos e condições da Gloo revela ainda mais preocupações de segurança e transparência. De quase uma dúzia de documentos, que vão desde os termos de “clique para aceitar” para serviços interativos até contratos de serviços principais no nível empresarial, a Gloo cria uma estrutura de governança de dados notavelmente consistente. Limites são impostos para qualquer ação legal por congregantes individuais, por exemplo. O acordo de clique para aceitar obriga os usuários a seguir arbitragem vinculante, impede ações coletivas ou julgamentos por júri, e bloqueia todas as disputas nos tribunais de Nova York ou Colorado, onde a arbitragem é particularmente favorecida em relação ao litígio tradicional. Enquanto isso, sua declaração de privacidade cria amplas exceções para prestadores de serviços, parceiros de enriquecimento de dados e afiliados publicitários, dando-lhes carta branca para usar os dados dos congregantes como acharem conveniente. Crucialmente, a Gloo reserva expressamente o direito de coletar informações de saúde e bem-estar. Esta é uma categoria altamente sensível de informação que, para aplicativos de saúde, normalmente está coberta por regras rigorosas de privacidade médica como o HIPAA.
Em outras palavras, a Gloo está protegida por uma vasta estrutura legal, enquanto igrejas e usuários individuais abrem mão de quase todos os direitos para litigar, questionar práticas de dados ou tomar ações coletivas.
“Estamos meio que no Velho Oeste em termos de lei”, diz Adam Schwartz, diretor de litígios de privacidade da Electronic Frontier Foundation, o grupo de vigilância sem fins lucrativos que passou anos lutando com gigantes da tecnologia sobre abusos de dados e excessos biométricos.
Nos Estados Unidos, a vigilância biométrica como a usada por um número crescente de igrejas habita uma zona cinzenta legal onde a regulamentação é escassa, irregular e muitas vezes ineficaz. Schwartz aponta Illinois como uma exceção rara com sua Biometric Information Privacy Act, uma das leis mais fortes do país nesse sentido. O estatuto se aplica a qualquer organização que capture identificadores biométricos, incluindo exames de retina ou íris, impressões digitais, impressões de voz, escaneamento das mãos, geometria facial, DNA e outras informações biológicas únicas. Exige que as entidades publiquem políticas claras de coleta de dados, obtenham consentimento por escrito explícito e limitem quanto tempo esses dados são retidos. O não cumprimento pode expor as organizações a processos judiciais coletivos e pesadas indenizações, até cinco mil dólares (cerca de 27 mil reais) por violação.
Mas além de Illinois, as proteções rapidamente se desintegram. Embora Texas e Washington também possuam estatutos de privacidade biométrica, seus dentes são mais fracos do que seus latidos. Esforços para replicar as robustas proteções de Illinois foram feitos em mais de uma dúzia de estados, mas nenhum foi aprovado. Como resultado, em grande parte do país, qualquer controle sobre a vigilância biométrica depende mais da transparência voluntária e da boa vontade do que de qualquer limite legal claro.
Isso é especialmente problemático no contexto da igreja, diz Emily Tucker, diretora executiva do Center on Privacy & Technology da Georgetown Law, que frequentou a escola de divindade antes de se tornar acadêmica jurídica. “A necessidade de privacidade para a possibilidade de encontrar um relacionamento pessoal com o divino, para se envolver em rituais de adoração, para oração e penitência, para contemplação e luta espiritual, é um princípio fundamental em quase todas as tradições religiosas”, ela diz. “Impor uma arquitetura de vigilância sobre a comunidade de fé interfere radicalmente na possibilidade dessa privacidade, que é necessária para a criação de um espaço sagrado.”
Tucker pesquisa a interseção entre vigilância, direitos civis e comunidades marginalizadas. Ela alerta que os dados pessoais coletados por meio das plataformas de tecnologia de fé estão longe de ser seguros: “Como as práticas de dados corporativos são tão mal regulamentadas neste país, há muito poucas limitações sobre o que as empresas que pegam seus dados podem subsequentemente fazer com eles.”
Para Tucker, os riscos dessas plataformas superam as recompensas, especialmente quando biometria e dados coletados em um ambiente sagrado podem seguir as pessoas em suas vidas diárias. “Muitas instituições religiosas são extremamente grandes e frequentemente desempenham muitas funções em uma comunidade além de fornecer um espaço para adoração,” ela diz. “Muitas igrejas, por exemplo, também são empregadoras ou fornecedoras de serviços sociais. Existe um potencial real de que informações coletadas sobre uma pessoa em suas atividades associativas como membro de uma igreja sejam depois usadas contra ela em sua vida fora da igreja.”
Ela aponta para a vigilância em massa do governo, o uso de dados na aplicação da imigração e a vulnerabilidade dos congregantes indocumentados como exemplos de como os dados da tecnologia de fé poderiam ser armados além do uso pretendido: “As instituições religiosas estão colocando em risco a segurança desses membros ao adotar esse tipo de tecnologia de vigilância, que expõe tantas informações pessoais a abusos e maus usos potenciais.”
Schwartz também afirma que qualquer benefício percebido deve ser cuidadosamente ponderado contra os potenciais danos, especialmente quando dados sensíveis e comunidades vulneráveis estão envolvidos.
“Igrejas: Antes de fazer isso, vocês devem considerar os pontos negativos, porque isso pode prejudicar seus congregantes,” diz ele.
Com as salvaguardas ainda escassas, no entanto, pioneiros da tecnologia de fé e líderes de igrejas estão cada vez mais penetrando nas vidas dos congregantes. Até que uma supervisão significativa chegue, os fiéis continuam expostos a um olhar que nunca foi totalmente convidado e mal compreendido.
Em abril, Gelsinger subiu ao palco do Missional AI Summit, um evento principal para tecnólogos cristãos que, neste ano, foi organizado em torno do tema “AI Collision: Shaping the Future Together” (Colisão da IA: Moldando o Futuro Juntos). Mais de 500 pastores, engenheiros, éticos e desenvolvedores de IA preencheram o salão, exibindo crachás com logotipos do Google DeepMind, Meta, McKinsey e Gloo.
“Queremos fazer parte de uma comunidade mais ampla… para sermos influentes na criação de uma IA próspera, tecnologia como uma força para o bem, IA que realmente incorpora os valores que nos importam,” disse Gelsinger no evento. Ele comparou essas ferramentas às tecnologias centrais na história cristã: as estradas romanas que levaram o evangelho por todo o império, ou a imprensa de Martin Lutero, que quebrou o controle monolítico sobre as escrituras. Um porta-voz da Gloo mais tarde confirmou que um dos objetivos da empresa é moldar a IA especificamente para “contribuir para o florescimento das pessoas.”
“Vamos ver a IA se tornar como a internet,” disse Gelsinger. “Cada interação será infundida com capacidades de IA.”
Ele afirma que a Gloo já está minerando dados por toda a gama da experiência humana para alimentar ferramentas cada vez mais poderosas.
“Com a IA, os computadores se adaptam a nós. Nós falamos com eles; eles nos ouvem; eles nos veem pela primeira vez,” disse ele. “E agora eles estão se tornando uma interface de usuário que se encaixa com a humanidade.”
Se essas tecnologias, no final das contas, aprofundam o cuidado pastoral ou corroem a privacidade pessoal pode depender das decisões tomadas hoje sobre transparência, consentimento e responsabilidade. No entanto, o ritmo de adoção já ultrapassa o desenvolvimento de salvaguardas éticas. Agora, uma das questões que pairam no ar não é se a IA, o reconhecimento facial e outras tecnologias emergentes podem servir à igreja, mas quão profundamente elas podem ser incorporadas ao seu sistema nervoso para formar um novo sistema operacional para o cristianismo moderno e a infraestrutura moral.
“É como estar na praia assistindo a um tsunami em câmera lenta,” diz Kriel.
Gelsinger vê de forma diferente.
“Você e eu precisamos chegar à mesma posição, como Isaías fez,” disse ele à multidão no Missional AI Summit. “‘Eis-me aqui, Senhor. Envia-me.’ Envia-me, envia-nos, para que possamos moldar a tecnologia como uma força para o bem, para que possamos aproveitar esse momento no tempo.”