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Interdisciplinaridade. Transdisciplinaridade. Esses conceitos foram criados pelo biólogo e um dos mais importantes pensadores do século XX, Jean Piaget, para definir uma abordagem que busca a unidade do conhecimento; o entendimento de que a ciência é complementar e colaborativa. Essa é também uma das premissas da Saúde Baseada em Valor, do inglês, Value Based Healthcare (VBHC).
Ao contrário do modelo predominante nos sistemas de saúde brasileiros, o chamado “Fee for Service”, em que se paga pelos serviços executados e cuja lógica pode oferecer uma falsa ideia de que o overuse, ou seja, um uso excessivo de consultas, exames e afins pode trazer segurança e tranquilidade independentemente da real necessidade, em VBHC a meta é a qualidade e não a quantidade. A remuneração é proporcional ao desfecho clínico atingido.
“O conceito de Value Based Healthcare é diferente porque tem outra lógica do que se costuma fazer em termos de remuneração. Ao invés de pagar por produção, por procedimento, por quantidade de coisas realizadas, você remunera pelo valor gerado, pelo resultado de fato daquilo que foi feito. Então, uma das questões mais importantes é você definir o que é esse valor. A definição varia, é complexa, mas o objetivo é você ter a melhor saúde de uma população, a melhor experiência de cuidado e gastando o recurso da maneira mais adequada possível, que é diferente de falar menor custo possível”, explica a professora da FGV (Fundação Getúlio Vargas), Ana Maria Malik.
Ainda que se fale em economia e remuneração relacionadas a VBHC, a professora da FGV reforça que esse não deve ser o principal foco da discussão: “A questão de custos de longe não é a mais importante se você está olhando para valor de verdade”, afirma.
Na perspectiva da saúde suplementar, avalia a especialista, há dificuldade de implementação do conceito de maneira generalizada no Brasil.
“A saúde suplementar tem um problema que é a visão de curto prazo. Os planos empresariais têm sempre no horizonte que o cliente vai trocar de operadora, então quem vai colher os frutos de todas as coisas de valor que forem implementadas será o concorrente. Não pode ser assim, tem que pensar em longo prazo. E outra dificuldade é que o sistema de saúde é muito fragmentado, é preciso começar a pensar em um sistema mesmo, em unidade, e não em serviços espalhados”, complementa Ana Malik.
Coordenação do cuidado
Daniela Tibo, gerente de regulação e rede da Cemig Saúde, responsável pela assistência em saúde da Companhia Energética de Minas Gerais, também considera que a prática de VBHC ainda é incipiente no mercado brasileiro. Segundo ela, a primeira abordagem do conceito, inclusive capitaneada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), foi centrada em um novo modelo de remuneração, quando na verdade isso deveria integrar uma proposta de mudança de mindset na gestão em saúde.
“Nós precisamos mudar conceitos, colocando o beneficiário no centro do cuidado, preconizando a colaboração entre as equipes, os sistemas, para depois pensar em um novo modelo de remuneração, como se fosse uma consequência da busca pela melhoria do cuidado e não o contrário. O sistema de saúde brasileiro errou um pouco de começar pelo modelo de remuneração. Ele precisa ser uma consequência do cuidado baseado em valor”, avalia a executiva.
A representante da Cemig Saúde menciona algumas ações que demonstraram resultados positivos. Uma delas diz respeito à coordenação do cuidado, integrando equipes e monitorando a jornada de saúde do paciente.
“A gente adotou há bastante tempo o modelo APS [Atenção Primária à Saúde] como base do nosso modelo assistencial, de coordenar o cuidado do paciente através da equipe de referência. Essa equipe tem várias especialidades: o médico de família, o enfermeiro (que é a maior referência do beneficiário), o psicólogo, o nutricionista, o fisioterapeuta. Tudo para manter o foco na coordenação do cuidado do beneficiário”, conta.
A estimativa é de que cerca de metade dos beneficiários da autogestão já estejam sob cuidado coordenado, o que é um facilitador para a mensuração de desfechos clínicos, algo essencial para a implementação de VBHC.
“Precisaremos de todas as maneiras ter o foco no beneficiário, na entrega de valor para ele, na experiência dele, como ele foi atendido, como ele vê o desfecho, e na redução de desperdício. É fazer o sistema girar para gerar valor para o beneficiário”, afirma Daniela.
Outra iniciativa é o diário global baseado no tempo de permanência hospitalar de DRG (do inglês, Diagnosis Related Groups). A sigla, criada por pesquisadores da Universidade de Yale, designa um sistema de classificação de pacientes internados em hospitais que atendem casos agudos. No diário global, a Cemig usa o DRG para medir o tempo previsto de permanência hospitalar de um paciente, de acordo com a patologia, a idade e a severidade da doença. Se esse tempo é cumprido, paga-se o valor total da diária; se extrapolar, é aplicado um deflator (ajuste para queda) no valor da diária.
“Esse é um modelo bem interessante em que a gente consegue atacar o tempo de internação, que é um grande vilão e que tem trazido bons resultados de diminuição do tempo de permanência, o que significa menor exposição do beneficiário e redução de custos, embora nessa ação não seja o nosso objetivo. O deflator é mais algo educativo mesmo”, explica a regente de regulação da Cemig Saúde.
Uma iniciativa que vem do SUS
Apesar de as principais iniciativas bem-sucedidas estarem na saúde suplementar, é possível também a implantação de VBHC no sistema público. Do Sistema Único de Saúde (SUS), surgiu o que foi eleito o melhor programa mundial de Valor em Saúde no Value-Based Heath Care Prize em 2021: o Joinvasc, Programa Público de Tratamento de AVC (acidente vascular cerebral) da prefeitura de Joinville, Santa Catarina.
A premiação foi o resultado do que vem sendo construído há quase três décadas no município. Segundo o neurologista Pedro Magalhães, coordenador de implementação de VBHC no Joinvasc, tudo começou em 1995, quando alguns médicos começaram a criar iniciativas para manejo dos pacientes com AVC. Dois anos depois, surgia uma unidade de internação específica para esses pacientes, a primeira do sistema público na América Latina.
“A partir daquele momento os pacientes que sofriam AVC tinham cuidado não só do neurologista e de enfermeiros, mas também de fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, psicólogos, fonoaudiólogos, tudo isso para reabilitar o paciente o máximo possível e evitar complicações. Essa cultura que se criou foi sendo incrementada, começamos a criar protocolos para usar as medicações trombolíticas para tratar AVC por exemplo. Tudo isso foi documentado, demonstrando para os gestores que era o correto a ser feito, que melhorava a capacidade dos pacientes, diminuía a mortalidade e assim criou-se um círculo virtuoso”, explica o médico.
Ao longo desse período, foram produzidas mais de 60 publicações científicas com dados de custo-efetividade da estratégia e de impacto positivo para a população, mostrando que a incidência de AVC caiu 37%; e a letalidade, 58% de 1995 até 2020. O programa de Joinville se baseia em alguns pilares, dos quais o neurologista Pedro Magalhães destaca a colaboração no cuidado, ou seja, o atendimento multidisciplinar.
“O cuidado precisa ser como um esporte em equipe. Nenhum profissional na linha de cuidado e na jornada do paciente tem um papel mais relevante do que o outro. Isso está muito claro. Uma equipe multiprofissional que trabalha baseada em protocolos consegue resultados extraordinários. O cuidado do paciente que sofre o AVC não acontece só no hospital e passa por atendimento pré-hospitalar, detecção rápida dos sintomas, transporte prioritário para o hospital de referência, diminuição do risco de complicações, início precoce da reabilitação, até a continuidade da jornada. Adotando as melhores práticas nós também economizamos recursos”, analisa o neurologista.
Este artigo foi produzido por Carolina Abelin, repórter de Saúde da MIT Technology Review Brasil.