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As andorinhas são pássaros cujo comportamento ao longo da vida é marcado pela coletividade. Juntas, quando o frio do inverno se aproxima, elas migram em busca de locais mais quentes para se alimentarem melhor. A chegada acontece na primavera, por isso a revoada avistada no céu é considerada um presságio da estação. Justamente devido a esses movimentos cíclicos durante a sua jornada na natureza, entre vários simbolismos associados à ave, um é o de renovação.
Assim como as andorinhas compõem a fauna e dela dependem para a sua existência, as healthtechs são integrantes de um ecossistema de inovação em saúde e dele precisam para se manterem vivas. Sozinha, a figura da startup de saúde é incapaz de revolucionar esse setor tão complexo.
A comparação representa a visão do diretor de Inovação do Hospital Israelita Albert Einstein, Rodrigo Demarch, compartilhada em um debate do Einstein’s Breakthrough 2022, evento realizado em parceria com a MIT Technology Review Brasil no primeiro semestre deste ano. O médico também é cofundador de duas empresas com esse perfil: a MaRi, criada ao fim do Programa Global de Treinamento oferecido pelo Centro de Biodesign da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, do qual foi o primeiro brasileiro a participar; e a Zetta Health Analytics, voltada ao uso de inteligência artificial aplicada à gestão.
“Eu não acredito que healthtechs, isoladamente, transformarão o setor. Isso, na minha visão, é impossível que aconteça na saúde, dada a fragmentação do sistema, dada a complexidade do setor de saúde. Mas, sim, aliadas a players como Einstein, por exemplo, são capazes de promover essa transformação que tanto se busca”, afirma.
Ecossistema de inovação em saúde
Com base na metodologia aplicada no Programa de Aceleração de Empreendedorismo Regional do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT REAP, o bom funcionamento de um ecossistema de inovação é caracterizado pela relação harmoniosa entre os pesquisadores, o governo, as corporações, as startups e os investidores. Outro fator relevante são as potencialidades características de cada lugar. Nos Estados Unidos, há definições claras: San Diego é o berço da Tecnologia da Informação e Boston, da Biotecnologia.
Essa lógica é detalhada em um artigo publicado na MIT Technology Review Brasil (Edição de Julho de 2021) intitulado “Quem é o CEO do Vale do Silício?”. O texto é escrito por Hudson Mendonça, champion do MIT REAP e coordenador de pesquisa no LabrInTOS, laboratório do Programa de Engenharia de Produção da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em síntese, a figura desse chefe não existe. Seria mais adequado, segundo o autor, pensar na atividade de uma diretoria colegiada no processo de tomada de decisão.
Considerando esses aspectos, a avaliação feita pelo especialista durante o evento é que, no Brasil, São Paulo é uma região que reúne as condições necessárias para promover o desenvolvimento da inovação em saúde em larga escala. “É importante que os cinco atores atuem de forma conjunta. Se uma dessas pernas não funcionar, você não consegue ter um ecossistema de inovação pujante. Obviamente, São Paulo tem uma supervocação para a saúde, não só pelo Einstein, mas pelas farmacêuticas, pelo governo e outros atores”, analisa.
O nível de convergência na atuação desses stakeholders, no entanto, varia conforme os segmentos de mercado, já que cada um tem suas particularidades. Um exemplo clássico de integração positiva no cenário brasileiro foi o fortalecimento das fintechs, responsável por levar a capital paulista a uma posição de destaque no ecossistema mundial. O sucesso das startups que alcançaram o status de unicórnio impulsionou o surgimento de várias outras e, assim, fez-se a revolução no setor financeiro.
No caso da saúde, essa fluidez ainda precisa ser ajustada. As partes mais frágeis da engrenagem, na visão de Hudson Mendonça, são os empreendedores e os investidores. Para se chegar a um ecossistema robusto, será necessário amarrar as duas pontas com mais firmeza.
“Temos grandes corporações na área. Na ponta do governo, há investimentos significativos. Na ponta acadêmica, temos trocas de excelência no Rio de Janeiro e em São Paulo, mas também em outros polos. É preciso entender que cada setor demanda um perfil diferente de investidor. O investidor de biotech não é igual ao investidor de digital. É preciso haver investidores especializados, com uma visão distinta, para fazer uma análise diferente, com uma perspectiva de rentabilidade diferente. Precisamos de investidores especializados no Brasil para alavancar algumas áreas e também as startups”, afirma.
O próprio perfil de quem está no comando das healthtechs no país é característico, de acordo com o pesquisador. “Quando você vai para a área médica, o perfil dos empreendedores geralmente é de ex-executivos ou acadêmicos”, explica.
De maneira mais abrangente, Mendonça conclui que o fomento à inovação depende de um mindset colaborativo, executado por meio da união de empresas em prol do amadurecimento do mercado. “Tem uma frase que se usa muito na indústria de Venture Capital: você prefere ser a cabeça da sardinha ou o rabo do tubarão? O rabo do tubarão é bem maior do que a cabeça da sardinha”, exemplifica.
“Então, é importante entender que existe uma etapa pré-competitiva fundamental para a construção de um ecossistema. Você vai se juntar ao seu concorrente para fazer crescer esse ecossistema e ser a referência. É muito melhor para todos os players que estão em Boston atuar na área da saúde, mesmo que eles tenham concorrentes, porque lá tem formação de capital humano e um investimento muito maior”, finaliza.
Boom das healthtechs
De 2020 para cá, houve um aumento significativo do número de startups de saúde, sobretudo daquelas voltadas para soluções digitais de atendimento e gestão. O movimento foi alavancado pela digitalização acelerada do setor durante o período de emergência ocasionado pela Covid-19, mas ainda existem oportunidades para além desse contexto, e essas empresas são vistas como facilitadoras para a ampliação do acesso a novas tecnologias no sistema de saúde.
“As healthtechs estão vivendo um momento superinteressante. O setor de saúde é um setor com muitos problemas, problemas estruturais, inclusive. Ou seja, é um ambiente propício à inovação. É um mercado que tem amadurecido significativamente, então a gente começa a ter o influxo de capital de risco cada vez mais presente e mais especializado nesse setor, o que também é importante. As grandes instituições de saúde, os grandes players, precisam dessas tecnologias para levar essa transformação adiante”, avalia Rodrigo Demarch.
Esse boom das healthtechs, então, representa o início de uma nova fase. “Eu acho que esse é um movimento que está só começando, na verdade. Vemos o início de uma onda que ainda vai ser extremamente profícua para o país nesse sentido, com o amadurecimento do setor, com a capacidade das organizações de absorverem essas tecnologias e as ideias dessas startups. Veremos nos próximos anos algo com potencial realmente transformador que, até então, no setor de saúde, nós ainda não vivemos”, complementa o diretor de Inovação.
Mas, além de representar uma gama de oportunidades, a complexidade da área também impõe grandes desafios. O risco é inerente ao ato de inovar, mas na saúde ele pode custar a vida humana. Por isso mesmo, o setor é hiperregulado e demanda, mais do que outros, um grau elevado de segurança.
“Inovação e erro são duas coisas que andam juntas, e erro em saúde é uma coisa que ninguém quer, obviamente. Como inovar em um lugar como o Einstein, que é uma instituição de alta confiabilidade, que preza pela segurança do paciente acima de tudo? Criando o espaço propício para que você possa errar, digamos assim”, afirma Demarch.
Uma das formas de se fazer isso com responsabilidade, sem comprometer a segurança do paciente, segundo o médico, é o trabalho feito por meio do laboratório de inovação do hospital, chamado Health Design Lab.
“É a área em que nós concentramos especialistas em metodologias de inovação, em biodesign, em design thinking, para que essas pessoas, como curadores ou facilitadores, aproximem-se das áreas assistenciais e lá possam ajudá-las a passar pelo processo de inovação, a fim de, eventualmente, encontrar possíveis soluções para esses problemas, criar protótipos e testá-los com segurança”, detalha.
Outro exemplo é a Eretz.bio, a incubadora de startups da instituição, que foi precursora na área de saúde do Brasil.
“Nós temos uma equipe de parcerias que conecta essas soluções desenvolvidas por startups de mercado às áreas de serviço da instituição, e aí criam lá os seus projetos pilotos, suas validações. Uma das coisas que fazemos, cada vez mais, é tocar projetos de avaliação de tecnologias em saúde. Isso também é muito importante. A tecnologia criada na saúde também precisa de evidência científica para comprovar que, de fato, ela faz aquilo que promete fazer. Nós temos uma equipe aqui dentro especializada para isso”, diz o gestor.
Um ano atrás, de acordo com Demarch, havia cerca de 50 projetos envolvendo startups e o Einstein. Atualmente, esse número quase triplicou, chegando ao total de 133. Isso mostra também como a organização vai amadurecendo, que há maturidade dos gestores para buscar esse tipo de incorporação. Quando isso é feito com a metodologia correta, você pode inovar reduzindo drasticamente a chance de erro e, obviamente, sem colocar a vida das pessoas em risco”.
O diretor de Inovação reforça, ainda, a importância da figura do gestor em saúde nesse processo. “A liderança tem um papel-chave, e o Einstein é um grande exemplo disso. Eu estou aqui há dois anos e meio, mas conhecendo a instituição por dentro e observando o que a liderança fez ao longo das últimas décadas em relação a pioneirismo, eu digo que esse jeito visionário de ser faz muita diferença. Essas lideranças precisam ser reconhecidas para que elas sejam uma grande inspiração para que outras surjam. O líder é fundamental para que a inovação de fato aconteça e se dissemine pela sociedade”, finaliza.