Trens de hidrogênio podem revolucionar a forma como americanos se locomovem
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Trens de hidrogênio podem revolucionar a forma como americanos se locomovem

Descarbonizar a malha ferroviária é um problema tanto político quanto tecnológico.

Como uma miragem acelerando pelo deserto empoeirado nos arredores de Pueblo, Colorado, o primeiro trem de passageiros movido a célula de combustível de hidrogênio dos Estados Unidos está sendo aquecido em sua pista de testes.

Construído pelo fabricante suíço Stadler e conhecido como FLIRT (acrônimo para “Fast Light Intercity and Regional Train”, em tradução livre, Trem Expresso para Serviços Interurbanos e Regionais), logo ele será enviado para o sul da Califórnia, onde deverá transportar passageiros no serviço ferroviário metropolitano Arrow, do município de San Bernardino, antes do final do ano.

No universo fechado das ferrovias, este trem de hidrogênio é um teste de Rorschach — aquele teste psicológico em que as pessoas interpretam manchas de tinta, revelando suas perspectivas subjetivas. Para alguns, é o futuro do transporte ferroviário. Para outros, apenas uma grande distração.

Na missão de descarbonizar o setor de transporte — que é a maior fonte de emissões de gases de efeito estufa nos Estados Unidos —, os veículos elétricos tendem a ser o foco das discussões. No entanto, para se alcançar a meta do governo Biden de emissões líquidas zero até 2050, outras opções de transporte, incluindo aquelas com rodas de aço, também precisarão buscar por novas fontes de energia.

A melhor forma de descarbonizar a malha ferroviária é objeto de debate entre legisladores, indústria e ativistas. E as coisas estão se intensificando na Califórnia, que recentemente promulgou leis que exigem que todas as novas locomotivas de passageiros operando no estado sejam de emissão zero até 2030 e que todas as novas locomotivas de carga atendam a esse limite até 2035. Os reguladores federais podem estar prestes a seguir o mesmo caminho.

O debate é, em parte, tecnológico — gira em torno de saber se são as células de combustível de hidrogênio, as baterias ou os fios elétricos aéreos (conhecidos como catenárias) que oferecem o melhor desempenho para diferentes situações ferroviárias. Mas também é político: uma questão de saber até que ponto a descarbonização pode, ou deve, conduzir a uma transformação mais ampla do transporte ferroviário. Por décadas, o governo tem em grande parte se submetido aos interesses dos principais conglomerados ferroviários de transporte de carga. A descarbonização poderia alterar essa dinâmica de poder — ou fortalecê-la ainda mais.

Até agora, o hidrogênio tem sido o grande sucesso tecnológico na Califórnia. No último ano, o Departamento de Transportes da Califórnia, conhecido como Caltrans, encomendou 10 trens FLIRT movidos a hidrogênio ao custo de US$ 207 milhões. Após a execução do programa em Arrow, a próxima linha programada para receber trens de hidrogênio é o serviço Valley Rail, no Central Valley. Ela conectará o município de Sacramento ao California High-Speed Rail, o sistema de alta velocidade em construção que eventualmente ligará a cidade de Los Angeles e São Francisco.

Em uma análise feita pelo Caltrans sobre os diferentes tipos de tecnologias ferroviárias de emissão zero, descobriu-se que os trens movidos a hidrogênio, que funcionam por meio de células de combustível instaladas diretamente em suas estruturas capazes de converter hidrogênio em eletricidade, conseguem percorrer distâncias maiores com uma única carga de combustível e têm um tempo de reabastecimento mais curto do que os trens elétricos a bateria, que funcionam de forma semelhante aos carros elétricos. Além disso, o hidrogênio é uma fonte de energia mais barata do que a fiação aérea (ou simplesmente “eletrificação”, no jargão da indústria), que custaria cerca de US$ 6,8 bilhões para instalar nas três principais rotas intermunicipais do estado da Califórnia. (O California High-Speed Rail e sua rota compartilhada com o serviço de transporte Caltrain na Área da Baía em São Francisco serão eletrificados por cabeamento aéreo, já que a eletrificação é necessária para atingir velocidades acima de 160 km/h.)

Para complicar ainda mais a opção de electrificação, a instalação de fios aéreos no resto da rede de passageiros da Califórnia exigiria o consentimento da BNSF e da Union Pacific, as duas principais transportadoras ferroviárias de mercadorias que possuem a maior parte das vias do estado. No entanto, essas empresas têm se oposto há muito tempo a instalação de fios suspensos sobre suas vias. Elas argumentam que isso poderia causar interferência com os trens de carga com contêineres empilhados, o que poderia afetar negativamente suas operações.

De acordo com um relatório da Associação das Ferrovias Americanas (AAR, pela sigla em inglês), um grupo comercial da indústria, a eletrificação de todos os trilhos de carga da Califórnia, algo em torno de 230 mil km, exigiria centenas de bilhões de dólares. Mesmo eletrificar seções menores dos trilhos resultaria em interrupções contínuas no tráfego ferroviário para a instalação dos cabos e poderia levar clientes de carga dos trens a optarem por usar caminhões para evitar atrasos, alega o grupo. Além disso, a eletrificação exigiria a cooperação das empresas de serviços elétricos, deixando as ferrovias vulneráveis ​​a atrasos na conexão com a rede elétrica, comuns em projetos de energia renovável.

“Temos extensas faixas de trilhos além das áreas urbanas,” diz Marcin Taraszkiewicz, um engenheiro da empresa de engenharia e arquitetura HDR que trabalhou no programa de trens a hidrogênio do Caltrans. Fornecer energia elétrica para essas áreas remotas pode ser complicado, especialmente quando a infraestrutura precisa ser projetada para resistir a desastres naturais como incêndios florestais e terremotos. “Se um fio desses cai, teremos problemas”, diz ele.

A AAR considera excessivas e precipitadas as regulamentações que visam controlar e reduzir as emissões de poluentes da Califórnia, especialmente levando em conta que o transporte ferroviário de carga já é três a quatro vezes mais eficiente em termos de combustível do que o feito por caminhões. No ano passado, a AAR entrou com um processo contra o estado devido a suas últimas regulamentações de emissões de ferrovias, em um caso que ainda está em andamento. Embora o grupo geralmente prefira o uso do hidrogênio em vez do sistema de catenária como solução de longo prazo, ele argumenta que essa tecnologia alternativa ainda não está suficientemente desenvolvida para atender às necessidades da indústria.

Um grupo chamado Californians for Electric Rail (Associação Californiana pela Eletrificação Ferroviária, em tradução livre) também enxerga o hidrogênio como uma tecnologia ainda em estágio inicial. “Tanto do ponto de vista ambiental quanto do financeiro, o hidrogênio não é uma maneira eficiente nem direta de reduzir as emissões e os custos associados ao transporte ferroviário”, diz Adriana Rizzo, fundadora do grupo, que defende a eletrificação das vias regionais e interestaduais do estado usando cabeamento aéreo.

Produzir, transportar e utilizar a minúscula molécula de hidrogênio pode ser bastante ineficiente. Atualmente, os trens movidos a hidrogênio consomem aproximadamente três vezes mais energia por quilômetro do que os que utilizam a fiação aérea como fonte. Além disso, os benefícios ambientais do hidrogênio (o aparente propósito dessa nova tecnologia) ainda são, basicamente, teóricos, uma vez que a maior parte do hidrogênio produzido hoje é gerada pela queima de combustíveis fósseis como o metano. As empresas de gás natural têm sido grandes promotoras dessa indústria por já possuírem a capacidade de produzir e transportar o gás.

As avaliações sobre a eficácia dos trens movidos a hidrogênio têm sido variadas. Em 2022, após um programa piloto, o estado alemão de Baden-Württemberg concluiu que essa tecnologia seria 80% mais dispendiosa de operar no longo prazo do que alternativas de emissão zero.

Kyle Gradinger, vice-diretor assistente de ferrovias do Caltrans, acredita que houve uma certa “ênfase exagerada na Twittersfera” sobre os problemas com os trens a hidrogênio. Nos testes, o Stadler FLIRT movido a hidrogênio está “se saindo tão bem quanto esperávamos, se não melhor”, ele diz. Como eles também usam motores elétricos, os trens a hidrogênio oferecem muitos dos mesmos benefícios que os trens que operam por fiação aérea, afirma Gradinger. Ambas as tecnologias serão mais silenciosas, mais limpas e mais rápidas do que os trens a diesel.

O Caltrans almeja obter todo o hidrogênio necessário para a operação de seus trens de fontes de emissão zero até 2030 — uma meta reforçada por uma proposta de regulamentação de hidrogênio limpo emitida pelo governo Biden em 2023. A Califórnia é um dos sete “centros de hidrogênio” nos EUA, isto é, parcerias público-privadas destinadas a receber bilhões de dólares em subsídios da Lei de Investimentos e Empregos em Infraestrutura para desenvolver tecnologias de hidrogênio. É muito cedo para dizer se o Caltrans conseguirá obter financiamento para suas estações de abastecimento de combustível de hidrogênio e cadeias de suprimentos por meio desses subsídios, diz Gradinger, mas certamente é uma possibilidade. Até agora, a Califórnia é o único estado dos EUA a ter adquirido trens de hidrogênio.

No entanto, defensores do sistema de catenárias como a Rizzo temem que todo esse investimento em infraestrutura voltada para o hidrogênio possa atrapalhar a realização de mudanças mais inovadoras no sistema de transporte ferroviário de passageiros do estado.

“Por que estamos gastando milhões de dólares comprando novos trens e construindo toda essa infraestrutura se vamos ter o mesmo serviço péssimo que temos hoje?”, indaga Rizzo. “Esses sistemas poderiam transportar muito mais pessoas…”.

O grupo de Rizzo, e aliados como a Associação de Passageiros Ferroviários da Califórnia e Nevada, consideram a descarbonização como uma oportunidade para implementar o tipo de infraestrutura que sustenta a operação bem-sucedida da grande maioria dos serviços de trem rápido para passageiros em todo o mundo. Embora o investimento inicial em fiação aérea seja alto, a eletrificação reduz os custos operacionais ao proporcionar acesso constante a uma fonte de energia barata e eficiente. A eletrificação também melhora o fator de aceleração dos trens, permitindo que eles sejam operados em intervalos mais próximos uns dos outros. Isso possibilita a criação de padrões de serviço que funcionem mais como um sistema de metrô urbano do que como uma rota da Amtrak, realizada apenas uma vez por dia.

O Caltrans tem um plano de longo prazo para expandir drasticamente os serviços ferroviários e aumentar a velocidade dos trens, o que poderia, um dia, necessitar de um sistema de catenária. Mas para as próximas duas décadas, no mínimo, o departamento acredita que o uso de hidrogênio é a maneira mais viável de atender às ambiciosas metas climáticas. Ainda não temos fundos o suficiente, determinação política ou disposição para enfrentar oposições das empresas ferroviárias de carga e empresas de serviços públicos.

“O ideal é realizar a eletrificação por catenária aérea, se for possível”, Gradinger observa. “Mas nos próximos dez a vinte anos não esperamos que os serviços ferroviários intermunicipais e de longa distância atinjam um nível de qualidade ou demanda que justifique o investimento em eletrificação das linhas”.

Rizzo espera que, à medida que o governo federal implemente mais regulamentações sobre as emissões ferroviárias, a justificativa para adotar a eletrificação como método para reduzir as emissões dos trens ganhe mais força. Outros países chegaram a essa conclusão: uma mudança de política em 2015 na Índia resultou na eletrificação de quase metade da extensão das linhas do país em menos de uma década. O Plano de Descarbonização do Transporte do Reino Unido afirma que a eletrificação será a principal estratégia para descarbonizar a indústria ferroviária.

Essas mudanças ainda estão alinhadas com uma indústria de transporte de carga forte e sólida. As locomotivas mais poderosas do mundo são elétricas e conduzem cargas de minério na África do Sul e na China. Em 2002, a Rússia concluiu o processo de eletrificação da Ferrovia Transiberiana de quase 10.000 km, demonstrando que trens de carga que funcionam com fios elétricos podem percorrer distâncias muito longas em terrenos muito inóspitos.

O cenário pode estar começando a mudar nos Estados Unidos também, embora de forma devagar. A BNSF parece ter abrandado sua oposição contra a eletrificação ao permitir que o California High-Speed Rail construísse o sistema de catenária ao longo de uma linha ferroviária que a empresa controla no sul da Califórnia. Rizzo e seu grupo estão buscando facilitar a execução desses projetos ao patrocinarem uma legislação estadual que isenta a instalação de fios aéreos do California Environmental Quality Act (CEQA), que é uma lei estadual que regulamenta a avaliação de impacto ambiental de projetos públicos e privados. Isso impediria situações semelhantes a uma ação judicial ambiental de 2015 movida por moradores de Atherton, uma área suburbana rica na região da Baía de São Francisco, devido à remoção de árvores da região e o impacto visual que os fios aéreos teriam na paisagem, e que atrasou o projeto de eletrificação do Caltrain por quase dois anos.

Recentes avanços tecnológicos podem tornar as diferenças entre os diversos tipos de tecnologias ferroviárias verdes menos óbvias ou discerníveis. O Caltrain encomendou um trem eletrificado equipado com bateria capaz de recarregá-la enquanto segue viagem até São Francisco a San Jose e, em seguida, continuar usando a mesma bateria para se deslocar para Gilroy e Salinas. Um sistema semelhante poderia um dia ser implantado no sul da Califórnia, onde trens poderiam recarregar suas baterias enquanto passam pela área metropolitana de Los Angeles e depois continuar usando-as em trechos mais remotos até Santa Barbara e San Diego.

Novas tecnologias de hidrogênio também podem ser transformadoras para o transporte ferroviário de passageiros. O trem FLIRT, que circula pelo deserto do Colorado, é a versão 1.0 dessa novidade. No futuro, o uso de amônia (representado pela fórmula química NH3) como um agente portador de hidrogênio pode permitir que os trens que utilizam esse recurso viajem distâncias muito maiores antes de precisar serem reabastecidos e que esse processo seja mais eficiente e conveniente. “Temos muitas oportunidades de crescimento com o hidrogênio”, diz Taraszkiewicz.

Mas em um país que investiu tão pouco no transporte ferroviário de passageiros ao longo do último século, simplesmente adotar novas tecnologias não resolverá todos os problemas enfrentados pelos Estados Unidos, alerta Taraszkiewicz. As ferrovias americanas frequentemente carecem de faixas de passagem (que permitem que trens rápidos ultrapassem os mais lentos), passagens de nível separadas por grades e sistemas de sinalização modernos. O principal obstáculo para melhorar o serviço de passageiros e torná-lo mais rápido e eficiente “não é a tecnologia do trem”, diz ele. “É todo o resto”.

Benjamin Schneider é um escritor freelancer que aborda temas relacionados à moradia, transporte e política urbana.

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