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Formado em engenharia da computação, o norte-americano Sam Glassenberg começou a carreira desenvolvendo jogos para PlayStation 2 e Xbox baseados na saga Star Wars. Depois, atuou como gerente de programa da equipe DirectX da Microsoft. Como CEO da FTX Games, ele criou produtos para Hollywood baseados em filmes como “Jogos Vorazes” e “Missão: Impossível”. Sam ganhou um Emmy na categoria técnica por impulsionar o realismo dos videogames, mas, influenciado por sua trajetória familiar, começou a trilhar um novo caminho: a aplicação da estratégia de gamificação para treinamentos em saúde. Essa escolha levará seu trabalho para Marte.
Filho de médicos, o engenheiro teve sua carreira frequentemente questionada pelos pais, mesmo tendo na prateleira uma estatueta de grande reconhecimento para profissionais de televisão e de criação. Durante sua apresentação no Einstein Frontiers 2023 – evento de inovação e novas tecnologias em saúde promovido pelo Hospital Israelita Albert Einstein –, em São Paulo, ele compartilhou a história com o público, em tom de brincadeira, reproduzindo uma fala do pai: “Nesta casa, valorizamos prêmios como o Nobel”. Sempre foi um desejo da família que ele se envolvesse com a área médica e, ao atender aos apelos, Sam acabou descobrindo uma grande oportunidade de mercado.
Assim surgiu a Level Ex. Por meio do desenvolvimento de games, ele tem ajudado profissionais da saúde a alcançarem melhores desempenhos em seus campos de atuação. A empresa cria jogos de quebra-cabeça e de estratégia para treinar o diagnóstico de doenças raras, manobras endoscópicas avançadas e o manejo de pacientes complexos. Os produtos se dividem em quatro áreas: cardiologia, dermatologia, gastroenterologia, respiratória e gerenciamento de vias aéreas.
Hoje, o reconhecimento do que ele construiu é indiscutível: são mais de três milhões de usuários nos aplicativos – estima-se que um em cada três cirurgiões norte-americanos esteja inscrito no serviço. Uma pesquisa encomendada pela empresa e divulgada em janeiro deste ano aponta para avanços no processo de tomada de decisão por médicos experientes, com uma média de 14 anos de prática.
Em entrevista exclusiva à MIT Technology Review Brasil durante sua visita ao Brasil, Sam Glassenberg conta como identificou, quase acidentalmente, que poderia conquistar espaço na área da saúde. Além disso, o engenheiro detalha o desenvolvimento de um projeto em parceria com a NASA e analisa a ampliação do uso da Inteligência Artificial (IA) no mundo.
Na avalição do CEO da Level Ex, as ferramentas desenvolvidas pela empresa são soluções sustentáveis e escaláveis. Tudo pode ser acessado pelo smartphone.
“Você consegue, por exemplo, reconhecer um câncer de pele em diferentes tons de pele e não precisa de um centro de prática clínica. Nos Estados Unidos, há cerca de dois mil centros assim e eles estão lotados com aparelhos gigantes, que custaram milhões e milhões de dólares, e até mesmo nos EUA são inacessíveis para 90% dos profissionais que estão treinando na faculdade”, afirma.
Os resultados coletados até o momento têm sido positivos. “A prática em pacientes virtuais permite que os médicos sigam constantemente aprendendo. Em vez de eles se depararem com uma situação difícil pela primeira vez na mesa de cirurgia, o que instiga a resposta sob estresse, existe a possibilidade de treinar essa resposta no videogame para construir memória. Quando essa situação acontece na vida real, o profissional sabe exatamente o que fazer”.
MIT Technology Review Brasil: A Level Ex nasceu de um pedido do seu pai, que é médico. Você imaginou que isso seria determinante na sua carreira?
Sam Glassenberg: Eu venho de uma família de médicos. Meu avô era médico, meus pais são médicos e eu era considerado o “idiota” que não fez faculdade de medicina. Em 2012, meu pai desistiu de me convencer. Ele me disse: “Está bem, você já está muito velho para fazer medicina, mas pelo menos use toda essa tecnologia de games para uma boa finalidade. Desenvolva um jogo para que eu possa treinar meus colegas com um procedimento de intubação guiado por fibra ótica. É um procedimento complexo, que realizamos em poucos pacientes, e até mesmo anestesistas experientes têm dificuldades caso não tenham feito muitos procedimentos assim. Você pode fazer um jogo que meus colegas possam jogar no celular?”. Eu estava ocupado trabalhando em um jogo gigante para Hollywood, não dei muita atenção, mas concordei. Eu trabalhei por três finais de semana, criei um joguinho rápido e deixei disponível para que eles pudessem baixar, porque eu não tinha tempo de instalar em cada um dos celulares dos colegas do meu pai. Então, dois anos depois, meu pai me ligou e perguntou quantas pessoas baixaram o jogo. Eu não sabia, não estava interessado, mas tudo bem, fui checar. Havia 100 mil profissionais da saúde que jogaram durante esse tempo. Então, pesquisei no Google para tentar entender como aquilo tinha sido possível. Eu queria saber de onde toda essa gente tinha vindo e fiquei ainda mais impressionado ao descobrir que havia estudos de eficiência em instituições de medicina de vários países que mostravam melhoria significativa na performance médica. Foi aí que eu parei e pensei: “Uau! Há muita demanda por isso. E se colocarmos para trabalhar juntos os melhores gamers, engenheiros e artistas, com orientações dos médicos, para lidar com desafios da prática médica usando a tecnologia de game?”.
TR: Aposto que seu pai agora tem uma opinião diferente sobre seu trabalho, certo?
Sam Glassenberg: Ele não admite, mas tem se divertido bastante! Ele está aposentado agora, vai com frequência ao escritório da Level Ex, em Chicago, e deixa todos doidos com novas ideias.
TR: E como tem sido o retorno dos profissionais que usam a sua tecnologia?
Sam Glassenberg: Incrível! E nós continuamos criando coisas para demandas que nem sabíamos que existiam. Hoje, temos mais de três milhões de pessoas jogando nossos jogos, sendo que mais de um milhão são profissionais da saúde e são eles que trazem as demandas para os próximos jogos, para que possam praticar procedimentos e casos difíceis nos seus celulares. Estamos criando conteúdo em dezenas de áreas terapêuticas e temos no nosso time 20 das 40 melhores farmacêuticas, empresas de dispositivos médicos, sociedades médicas e até mesmo a NASA está usando a nossa tecnologia para preparar astronautas para urgências médicas em missões espaciais.
TR: Há alguma história especial que você gostaria de dividir?
Sam Glassenberg: Não acredito que exista apenas uma, em especial. Recebemos feedbacks o tempo todo. São coisas como: “Eu pratiquei no jogo esse caso que eu não imaginava me deparar na vida real e, quando isso aconteceu, em vez de entrar em pânico, eu sabia exatamente o que fazer”. A prática em pacientes virtuais permite que os médicos sigam constantemente aprendendo. Em vez de eles se depararem com uma situação difícil pela primeira vez na mesa de cirurgia, o que instiga a resposta sob estresse, existe a possibilidade de treinar essa resposta no videogame para construir memória. Quando essa situação acontece na vida real, o profissional sabe exatamente o que fazer.
TR: Como você enxerga o uso dessa tecnologia no Brasil e em outros países que têm uma realidade econômica diferente da dos Estados Unidos?
Sam Glassenberg: Esta é a beleza do videogame: a tecnologia roda em qualquer lugar. Nós temos, hoje, mais capacidade e tecnologia instalada em um celular do que tínhamos em todos os centros de prática e simulação em 1995 no mundo inteiro. Todo mundo tem um celular no bolso com a capacidade de criar uma grande faixa de pacientes virtuais, seja para procedimentos ou diagnóstico. Você consegue, por exemplo, reconhecer um câncer de pele em diferentes tons de pele e não precisa de um centro de prática clínica. Nos Estados Unidos, há cerca de dois mil centros assim e eles estão lotados com aparelhos gigantes, que custaram milhões e milhões de dólares, e até mesmo nos EUA são inacessíveis para 90% dos profissionais que estão treinando na faculdade. Por que precisamos disso? Também tínhamos esse modelo na indústria de games há uns 30 anos, quando era preciso ir até uma casa de jogos, e hoje você pode jogar o que quiser no celular. Assim como você pode treinar seu cérebro para casos intrigantes da medicina. Você pega o celular no ônibus, enquanto se desloca.
TR: Sobre o projeto da Level Ex com a NASA, o que você pode nos adiantar?
Sam Glassenberg: Estamos sendo financiados pela Missão Marte (primeira missão tripulada a Marte da NASA). Vamos supor que os astronautas estejam em Marte há algum tempo e um deles fique inconsciente. O que você faz? Eles não têm treinamento médico como um profissional, você não tem muitos equipamentos para ajudar – não porque eles custem muito, mas por causa da gravidade e do peso. Tudo que você tem é um ultrassom. Essa é a única possibilidade de ver dentro do corpo. Porém, o ultrassom é difícil de interpretar. Outro desafio: sem gravidade, seu coração muda de formato, seu sangue muda de direção. Como saber se o que estou vendo é normal para quem está no espaço há algum tempo? Hoje, nós temos um aparelho de ultrassom na Estação Espacial Internacional, mas sabe como funciona? Tem um radiologista em terra, em Houston, que dá orientações em tempo real, e ele vai fazendo a leitura para dar o diagnóstico. Se você estiver há nove meses em Marte, esse “tempo real” é de cerca de 40 minutos até que a velocidade da luz faça a viagem. Pode levar nove horas para fazer um exame de ultrassom e ter o diagnóstico. Precisamos encontrar uma solução para oferecer o procedimento em tempo real na Missão Marte e estamos trabalhando com a NASA, com o instituto de pesquisa em saúde espacial deles, para conseguir um simulador mais realista de tempo real para um ultrassom com o celular ou em um dispositivo virtual, para que se possa fazer um ultrassom virtual em um astronauta virtual. Tudo simulado, mas extremamente realista. E é possível ainda construir e alimentar os dados a partir das informações reais dos astronautas que irão para a missão. Podemos captar todos os dados antes de eles irem e calibrar os efeitos da gravidade para chegarmos a um resultado que seria o esperado. Nós testaremos essa tecnologia na próxima missão SpaceX.
TR: Quando será?
Sam Glassenberg: Será ainda neste ano. Eles irão ao espaço com o jogo da Level Ex que vão usar para treinar como fazer ultrassom para experimentos médicos que farão na missão.
TR: Gostaria de saber como você vem acompanhando esse que hoje é um questionamento mundial, em relação ao uso de Inteligência Artificial. Você concorda com cientistas e personalidades como Elon Musk que pediram para que as pesquisas em IA fossem mais devagar?
Sam Glassenberg: Até o Elon Musk sabe e admitiu: não será possível desacelerar. Acho que ficaremos à mercê da indústria e dos reguladores fazerem o melhor trabalho para ter certeza de que isso será direcionado para um lado positivo e não apocalíptico. Eu acho que muitas das ameaças com as quais as pessoas estão preocupadas têm a ver com seus trabalhos e empregos, e são preocupações relevantes. Um ponto de referência para olharmos para trás é a indústria de videogames. Essa área se renovou muito rápido e mudamos muito o jeito com o qual trabalhamos. A indústria de games movimenta, hoje, US$ 200 bilhões por ano no mundo e cresce todo ano. Metade desse valor vem de smartphones que não existiam há 12 anos. Todos os anos o crescimento vem de dispositivos que não existiam há um tempo. A cada cinco anos, surge uma nova tecnologia que consegue entregar mais conteúdo. Isso significa que a cada cinco anos precisamos reinventar como criamos jogos. Tudo o que fazíamos manualmente há cinco anos precisamos automatizar, porque é o único jeito de ficar livre para criar mais e o conteúdo ser mais detalhado. Mesmo antes da IA, a indústria de games está constantemente buscando novas ferramentas para deixar um artista mais produtivo, para que no ano que vem ele não esteja fazendo o que está fazendo agora, mas sim atuando em um nível superior. Vemos a IA como uma evolução natural, como só mais uma ferramenta. Claro, outras indústrias não se movem nessa velocidade e não têm essa mentalidade, mas eu acho que olhar para a indústria de games é um bom ponto de referência para a reflexão: “qual será o meu papel profissional quando a tecnologia automatizar o que eu faço hoje?”.
Este artigo foi produzido por Carolina Abelin, repórter de Saúde da MIT Technology Review Brasil.