TR Q+A: Rodrigo Demarch – Game changer na gestão em saúde
HealthHealth Innovation por Einstein

TR Q+A: Rodrigo Demarch – Game changer na gestão em saúde

A tecnologia é crucial para a gestão em saúde, mas a conexão com as pessoas é tão importante quanto. Um gestor do futuro precisará aliar as duas competências para ser eficiente.

A tecnologia pode ser considerada o grande game changer na saúde, mas sozinha ela não será suficiente para a transformação do setor. Do ponto de vista da gestão, a busca por eficiência, sustentabilidade e equidade no sistema depende também de outro elemento-chave: o engajamento das pessoas.

Essa é a avaliação feita em entrevista à MIT Technology Review Brasil pelo diretor de Inovação do Hospital Israelita Albert Einstein, Rodrigo Demarch. A visão condiz com as experiências vividas desde o início de sua carreira, quando deixou de ser jogador de videogame semiprofissional para cuidar de idosos.

Paralelamente à faculdade de medicina, Demarch atuava no mercado de jogos eletrônicos, praticando e conduzindo equipes de jogadores. Enquanto se especializava em geriatria, optou por abrir mão do empreendedorismo no universo dos games para seguir na área da saúde, mas nunca abandonou a paixão pela tecnologia.

Ao longo de sua trajetória profissional, o médico desenvolveu diversos projetos envolvendo a área tecnológica, gestão e inovação em saúde, desde a construção de programas de saúde corporativa até a compra de startups para a sua operacionalização em escala.

Em 2017, Demarch foi o primeiro brasileiro a participar do Programa Global de Treinamento de Professores oferecido pelo Centro de Biodesign da Universidade Stanford, nos Estados Unidos. Como resultado, ajudou a fundar a startup MaRI, sediada no Japão. Em seguida, também se tornou co-fundador da Zetta Health Analytics.

MIT Technology Review: Quais devem ser os pilares da gestão em saúde?

Rodrigo Demarch: Os pilares em gestão são basicamente os mesmos, independentemente do negócio. O primeiro deles é mais voltado à estratégia. É preciso ter uma visão estratégica clara do mercado, assim como do que acontece no sistema de saúde, de como você se posiciona dentro desse sistema.

O segundo pilar são as pessoas. Sem as pessoas você não consegue construir uma organização com uma cultura vitoriosa. A saúde é uma área que requer muita mão de obra. Entender de gente, gostar de gente, é um fator superimportante para serviços de saúde. E hoje se fala muito da experiência dos profissionais de saúde como um dos pilares da construção de um sistema sustentável. Então, quando pensamos no paciente no centro do cuidado — e o paciente aqui é o terceiro pilar, na minha visão —, não conseguimos concretizar isso sem profissionais de saúde engajados. A partir da melhor experiência possível do paciente e do profissional de saúde é que se pode buscar melhores desfechos e, consequentemente, a sustentabilidade do sistema.

O quarto pilar é o aspecto financeiro. Como se constrói um sistema que de fato seja sustentável? Hoje, se fala muito nos modelos de saúde baseados em valor, com os incentivos corretos, com mensuração de performance. Esse é um trabalho ainda em construção. Ninguém conseguiu fazer em larga escala em nenhum lugar do mundo, mas isso é o que as organizações de saúde mais sofisticadas buscam construir. São os pilares do Quadruple Aim, que é a metodologia desenvolvida pelo Institute for Healthcare Improvement e que o Einstein, por exemplo, foi pioneiro em trazer para o Brasil.

No fim, se busca outra coisa importante, que é a equidade em saúde — um dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), inclusive. Discutimos cada vez mais como poderemos chegar a esse modelo que é sustentável e equânime. Na minha visão, para construir isso tudo, que é tão complexo, precisamos de muita inovação e tecnologia. Esse seria um outro pilar fundamental, que é justamente a tecnologia permitindo que se alcance a redução de custo e escalabilidade, a ampliação de acesso à saúde com qualidade, com excelência.

TR: É possível fazer uma gestão eficiente sem o uso de novas tecnologias? 

Demarch: Eu acredito que não. Para ser eficiente, você precisa basear essencialmente seu modelo de gestão em processos, ter métricas confiáveis, que te permitam entender o que acontece na organização, e a partir daí tomar as melhores decisões. Muito se fala em gestão baseada em dados, atualmente. Na saúde, uma das formas para se capturar dados clínicos, por exemplo, é o prontuário eletrônico, que permite que isso seja feito de maneira consistente e confiável. Mas apenas capturar o dado não é o suficiente, pois você precisa transformá-lo em insights que serão usados na gestão e no cuidado do paciente. Sem tecnologia, não é possível fazer isso em larga escala. Esses dados te permitem traçar estratégias mais adequadas para criar novos serviços ou serviços mais apropriados para determinados indivíduos ou populações. É o que um sistema de saúde como o Einstein busca. A visão da instituição é a de levar uma gota de Einstein para cada pessoa. Existem várias maneiras para se fazer isso, mas só é possível alcançar esse grande objetivo se houver tecnologia adequada disponível, como plataformas digitais.

TR: Como você avalia a evolução da gestão em saúde no Brasil nos últimos anos?  

Demarch: Entendo que houve um processo de profissionalização da gestão do setor e isso beneficiou a todos. As organizações foram se tornando mais capazes de gerenciar seus processos, e o conceito de qualidade e segurança do paciente se disseminou pelo setor privado e em alguns casos também no setor público. Ainda estamos longe do ideal, em termos de sistema, mas fizemos avanços. A adoção tecnológica, como a incorporação do prontuário eletrônico e dos sistemas de gestão, traz elementos essenciais para suportar esse processo de forma mais ampla. Obviamente, as organizações precisam ir além. Nos dias atuais, elas devem ser capazes de se organizar de forma ágil e de incorporar metodologias de inovação para o dia a dia, já que são desafiadas a passar pelo processo de transformação digital independentemente de quererem ou não. Não é uma escolha, é algo fundamental para sobrevivência nos dias atuais. E isso requer, fundamentalmente, um jeito diferente de pensar e de se relacionar com o seu cliente e os demais stakeholders. Para organizações de saúde, em geral, não é trivial. Entendo que estamos apenas no início. Há ainda muito o que se fazer e amadurecer nesse sentido.

TR: E no momento de pandemia? 

Demarch: Há quem diga que a pandemia nos catapultou para 2030. E, em alguns aspectos, de fato, foi isso. Nós passamos por um processo de digitalização brutal, que certamente ninguém esperava. No Einstein, em fevereiro de 2020, nós tínhamos cerca de 300 mil vidas elegíveis ao serviço de telemedicina e 90 dias depois existiam 2 milhões de pessoas elegíveis ao mesmo serviço. Então, a pandemia chamou a atenção para uma série de coisas. No que diz respeito à gestão, à digitalização e à construção de novos modelos de serviços, o que vivemos hoje levaria mais cinco anos para acontecer se não fosse o momento de emergência. A telemedicina já é uma realidade. Não se discute mais se ela faz sentido ou não. Não dá para imaginar um mundo sem telemedicina atualmente. A pandemia funcionou como um acelerador para a adoção desse tipo de inovação e serviu para quebrar uma série de barreiras, do ponto de vista regulatório e do ponto de vista da adoção por parte das pessoas. É o novo normal, como tanto se fala. As pessoas já não estranham mais consultar um médico remotamente, assim como daqui a pouco elas não vão estranhar usar um wearable monitorando alguns de seus sinais vitais e enviando essas informações para um centro de monitoramento de pacientes que, eventualmente, esteja localizado há quilômetros de distância. E há coisas que ainda vamos conquistar com a popularização de novas tecnologias que tendem a ficar cada vez mais acessíveis nos próximos anos, como genômica, terapia celular, Inteligência Artificial, Internet das Coisas, etc.

TR: Como você enxerga o Brasil no cenário global? Quais sistemas poderiam servir como exemplo para o país?

Demarch: De maneira geral, somos carentes do ponto de vista assistencial. O SUS é, certamente, um sistema muito importante, mas estamos longe daquilo que podemos ou que deveríamos oferecer de melhor para a população. Existem ilhas de excelência, sem dúvida nenhuma, como o próprio Einstein – que tem, inclusive, um trabalho muitíssimo importante no sistema público –, mas em um país continental e díspare como o Brasil, os desafios são imensos. Enquanto sistema de saúde, ainda temos um longo caminho pela frente a percorrer.

Quando se fala em benchmarks internacionais, se você olhar, por exemplo, para os Estados Unidos, eles estão longe de ter o melhor sistema de saúde, mesmo sendo um sistema altamente tecnológico e com alguns dos melhores hospitais do mundo. Quando você vê o sistema como um todo, ele não é um sistema que entrega saúde de qualidade para a maior parte da sua população, pelo contrário. E além disso custa muito caro. Outros sistemas, como o inglês, que é sempre muito bem falado, passam por dificuldades. Na minha opinião, não existe um sistema de saúde perfeito. Diferentemente de outras indústrias, nas quais você consegue criar soluções globais, a saúde sempre tem um componente regional muito forte, por questões culturais, por questões regulatórias. Boas referências existem e adaptações são válidas, mas replicar modelos é difícil.

TR: Uma gestão eficiente é capaz de reduzir assimetrias do sistema de saúde?

Demarch: Sim, uma gestão eficiente é capaz de reduzir as assimetrias do sistema. Gestão bem feita permite não apenas que os recursos sejam gerenciados de maneira mais eficiente, mas também impacta na experiência do paciente e dos profissionais de saúde, e esses elementos impactam direta e indiretamente na saúde de uma determinada população-alvo, contribuindo para a construção de um sistema mais sustentável.

TR: Qual é o papel das startups nesse caminho?

Demarch: As startups, na minha visão, fazem parte do presente da nossa sociedade e certamente também do futuro. Na saúde, isso não é diferente. A startup, por si só, já tem uma forma distinta de funcionamento. Muitas vezes são empresas que trazem experiências de outras indústrias, o que é importante para o nosso setor como um todo. Elas permitem não apenas a renovação, mas a transformação, e esse é o grande “x da questão”. Além disso, para sobreviverem, elas precisam ter uma alta capacidade de execução, aprendizado rápido e adaptação. Isso já é muito valioso para o mercado. De uma maneira geral, startups nascem com a premissa de entender com profundidade um determinado problema e a população ou grupo que tem esse problema, e com base nesse entendimento elas desenvolvem as soluções. Esse processo de colocar o indivíduo — como o paciente, por exemplo — no centro e desenvolver a solução para ele já dá para elas uma vantagem importante, pois, em geral, não é assim que o sistema funciona. Além disso, existe cada vez mais capital disponível para fomentar as inovações no setor e, portanto, a tendência é que tenhamos cada vez mais gente boa interessada em empreender na saúde. E é de gente boa que o setor precisa.

TR: Já estamos discutindo sobre hospital do futuro e healthcare do futuro. Na sua visão, quais são as características de um gestor do futuro? 

Demarch: Um gestor de saúde do futuro precisa entender muito de saúde. Obviamente, ele precisa ter uma visão abrangente sobre o que está acontecendo no sistema e no mercado. Além disso, precisa ter um conhecimento de intermediário para avançado sobre tecnologia. Não é possível você ser um gestor de saúde do futuro se você não dominar determinadas áreas da tecnologia, se você não entender sobre Big Data, se você não conhecer plataformas digitais, para citar apenas dois exemplos. É importante que esse gestor entenda de modelos de negócio e de modelos de negócio inovadores para poder repensar o sistema e ajudar a construí-lo da maneira que todos precisamos e queremos. Por último, mas não menos importante, ele precisa gostar de gente. Um gestor, um líder, precisa fazer com que as pessoas acreditem na visão, no propósito do que está sendo construído e, de certa maneira, precisa inspirar as pessoas. Ao mesmo tempo, ele precisa ter a humildade de ouvi-las para construir as soluções em conjunto. Na saúde, o trabalho de sucesso é sempre coletivo e deve ser sempre colaborativo.

TR: Qual mensagem você gostaria de deixar para esse gestor?  

Demarch: A tecnologia sempre deve ser vista como um meio. Dentro do processo de construção e de gestão de serviços de saúde, o mais importante são as pessoas. Aquilo que se constrói tem que ser construído a partir das pessoas e para as pessoas. Aí, sim, isso tudo faz muito mais sentido.


Este artigo foi produzido por Manoela Albuquerque, repórter e editora de Saúde na MIT Technology Review Brasil.

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