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No fim do dia, um homem sai em direção ao seu plantão noturno como segurança. Um casal escolhe as melhores roupas e se prepara para ir ao casamento de amigos. Eles se encontram, inesperadamente, no momento em que o carro do casal se envolve em um acidente grave com o veículo onde estava o segurança. Para todos que trabalham de alguma forma com pacientes politraumatizados, existe uma unanimidade: estamos diante do pior momento da vida de uma pessoa, quando o cotidiano é interrompido por uma emergência.
A traumatologia é o ramo da medicina que atua em lesões causadas por acidentes como o narrado acima. Todos esperam jamais precisar dessa especialidade, mas é bom que ela exista e que esteja em constante inovação. Emergências médicas são uma corrida contra o tempo. Cada minuto perdido, ação desnecessária ou dificuldade diagnóstica pode representar uma vida perdida. E as tecnologias de saúde aplicadas ao local do trauma podem ser revolucionárias para o primeiro atendimento, aumentando as chances de sobrevida dos envolvidos e diminuindo o risco de sequelas.
Em breve, equipamentos como tablets e drones podem ser comuns em cenas de acidentes que resultem em traumas, fazendo com que um tempo valioso seja poupado no atendimento hospitalar. Também se espera que o uso de inteligência artificial (IA), a partir da coleta sistemática de dados, possa auxiliar no processo de tomada de decisão das equipes de saúde. Esses são apenas alguns exemplos do que deve transformar a especialidade nos próximos anos.
Leandro Ejnisman é médico ortopedista e traumatologista do Hospital Israelita Albert Einstein e do Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, além de especialista em inovação em saúde e co-fundador da Hackmed. Em entrevista exclusiva para a MIT Technology Review Brasil, ele fala sobre a evolução do atendimento ao politrauma e suas projeções futuras: “Precisamos ter uma visão positiva da tecnologia. E na traumatologia não pode ser diferente”.
MIT Technology Review: No campo da traumatologia, uma inovação que podemos considerar disruptiva foi a ideia de levar o atendimento ao local do acidente, levar o hospital ao paciente. Como o uso da tecnologia poderia trazer novamente algo disruptivo na medicina de emergência?
Leandro Ejnisman: A principal mudança que veremos no atendimento de emergência, na cena do trauma, é o uso do teleatendimento. A pandemia ajudou bastante na evolução dessa prática, mas essencialmente no atendimento eletivo e em emergências menos graves. A telemedicina ainda não é utilizada no Brasil em emergências com politrauma, por exemplo. Acredito que, a partir do momento em que houver o contato entre a equipe na cena do trauma e uma equipe de retaguarda no hospital, que possa dar as primeiras informações e atendimento prévio, será possível economizar tempo. O paciente não perderia nem os cinco minutos iniciais na sala de politrauma se já viesse da ambulância com a indicação de ir diretamente para o tomógrafo ou mesmo para o centro cirúrgico. Além disso, pensando em dispositivos e wearables, teremos cada vez mais equipamentos que podem ajudar. Estetoscópios utilizados no local do acidente podem transmitir o som diretamente para o hospital, levando a diagnósticos como um pneumotórax, por exemplo. Aparelhos de ultrassonografia e até mesmo tomógrafos no local podem funcionar da mesma forma. Equipes técnicas com o material correto podem transmitir informações vitais para o cirurgião no hospital. Eu vejo muito potencial, principalmente na questão do atendimento na cena do trauma e de um fluxo que indique o melhor tratamento quando o paciente chegar ao ambiente hospitalar, agilizando o processo.
TR: Cada minuto perdido pode representar a vida do paciente ou mais sequelas. Há espaço para a IA no atendimento ao trauma, para melhorar a logística e acelerar esse processo? Como funciona hoje e como será a comunicação entre o local do trauma e o hospital?
Leandro: Com certeza existe espaço para a IA. Primeiro, no sentido de reunir dados e transformá-los em big data. Hoje, a evolução da medicina é baseada em pesquisa científica conduzida em centros especializados, que nem sempre irá refletir a realidade da comunidade local. E uma das maiores dificuldades é a gestão de dados. Uma IA capaz de extrair dados de texto livre pode ser uma grande oportunidade. Atualmente, um socorrista tira o paciente do local do acidente, preenche a ficha com informações importantes, mas esses dados são perdidos por não estarem inseridos em uma pesquisa científica. A partir do momento em que é possível transformar essas fichas em dados, surge o big data. A IA busca os dados que seriam perdidos e, posteriormente, pode até mostrar informações que foram ignoradas. Com base nesse banco de dados, é possível então prever necessidades em determinados diagnósticos. O socorrista vai atender com um tablet, por exemplo, que já vai gerar dados que podem adiantar o atendimento antes mesmo de se chegar ao hospital – seja com a necessidade de abordagem cirúrgica ou não. Ao atender a duas quedas de dois homens, com a mesma idade, do quinto andar de uma obra, um algoritmo pré-elaborado pode definir toda a logística de atendimento de cada um desses pacientes caso eles apresentem escalas de Glasgow [uma escala neurológica que avalia o nível de consciência após um traumatismo craniano] diferentes em até mesmo um ponto e ainda correlacionar essa informação com dados de pressão arterial e frequência cardíaca. Quando falamos dessas decisões, é fato que a capacidade de atendimento do sistema é escassa, seja aqui ou em países de primeiro mundo. Esses mecanismos de hierarquização podem ajudar.
TR: Existem sistematizações do atendimento ao trauma, como o Advanced Trauma Life Support (ATLS). Como tem sido o treinamento das equipes? Como a tecnologia pode ajudar?
Leandro: O mais interessante quando pensamos em treinamento, ainda mais o de urgência, é que trabalhamos com cenários raros. Apesar de tudo, até uma equipe de emergência de uma cidade como São Paulo raramente precisará atender um trauma muito grave ou fazer uma reanimação, intubação in loco. Mas é preciso manter essas equipes preparadas. Em um cenário de realidade virtual aliada a outros componentes, como bonecos de reanimação, é possível treinar diferentes situações. Com os óculos de realidade virtual, é possível simular toda a equipe de socorristas disposta ao redor do paciente, cada um exercendo sua função, em um ambiente tridimensional. Podem ser criados diversos módulos, desde como imobilizar uma fratura exposta de tíbia a como realizar uma manobra de ressuscitação após parada cardiorrespiratória. Como essas possibilidades existem em realidade virtual, conhecê-las facilita muito a parte prática. O principal aspecto dessa tecnologia é o treinamento sistemático até o desenvolvimento de reações de reflexo, quando o socorrista está diante de uma cena real. Dessa forma, até a curva de aprendizado pode diminuir.
TR: A coleta de dados, de indicadores nos atendimentos ao trauma e sua análise pode ajudar a termos um atendimento melhor, com maior sobrevida dos pacientes?
Leandro: Essa é a grande questão. Não podemos perder dados. Concordo com a frase “os dados são o novo petróleo”. Outras indústrias, que não a de saúde, já estão mais avançadas nessa questão. As BigTechs, por exemplo, sabem tudo o que a gente faz on-line. Essa leitura ajuda tanto no desenvolvimento da própria empresa como também no desenvolvimento de novos aplicativos. O setor de saúde está começando a entender isso, a entender a importância de dados no dia a dia e, ao mesmo tempo, respeitar que sua coleta é difícil e que existe uma série de barreiras. Ao se fazer uma coleta de dados em ambiente hospitalar, por exemplo, depende-se de muitas pessoas. No trauma, o socorrista precisa preencher a ficha em um momento de adrenalina em que a vida de outra pessoa pode estar em risco. Com aparelhos digitais, essa coleta pode ser automatizada e feita de forma mais rápida. Já existem processos implementados, por exemplo, na anestesia, em que os sinais vitais são enviados diretamente para o prontuário do paciente. O uso de wearables também pode ajudar nessa coleta. Quanto maior o banco de dados, quanto maior a amostra, mais representativo do mundo real será. A estruturação e análise desses dados facilitada pela IA tem potencial de mostrar o que acontece no mundo real, onde a maioria dos pacientes é tratada.
TR: Pensando que estamos provavelmente diante do pior momento da vida daquela pessoa, há espaço no atendimento, mesmo que seja em segundo momento, para um cuidado com apoio psicológico?
Leandro: O ambiente de pronto-socorro é um dos mais estressantes em um hospital. Muitas daquelas pessoas estão vivendo um dos piores momentos de suas vidas. Ter uma forma de suporte psicológico é super relevante. Muitos aplicativos de saúde e startups atuam sobre a saúde mental, mas a maioria pensando em saúde mental “eletiva”. Eu sinto que nós, como equipe de saúde, temos dificuldade de levar acolhimento em momentos como esse, até porque os recursos humanos são escassos. Quando você atua como médico ou enfermeiro de plantão, é preciso dosar a necessidade de atender mais pacientes e de dar um acolhimento a todos eles. Essa atenção é muito importante até para os desfechos do paciente. Como a tecnologia pode ajudar? Eu vejo muitas formas diferentes. Uma das principais é a de tirar do profissional de saúde funções burocráticas, permitindo que ele tenha tempo para tratar o paciente de forma mais próxima. Tecnologias com IA ou reconhecimento de voz, por exemplo, têm potencial de aumentar o tempo livre do médico. Vídeos educativos sobre determinados sintomas, doenças ou acontecimentos podem auxiliar os pacientes até mesmo antes do contato com o médico. A espera pelo atendimento e por exames complementares também pode causar desconforto. Monitores com checkpoints no leito trariam mais informação e menos ansiedade.
TR: Como você enxerga uma cena de trauma no futuro? É possível imaginar um atendimento no metaverso?
Leandro: Já existem algumas simulações e vídeos sobre isso. Podemos pensar em drones que pulam todas as etapas para chegar ao local do acidente e que, eventualmente, podem fazer a primeira vistoria. Em uma cena de trauma é necessário ver o que está acontecendo, saber o número de acidentados, o nível de gravidade, entre outras coisas. Com o avanço da tecnologia, o próprio drone poderá medir sinais vitais e realizar exames, preparando a equipe para chegar ao local. A ambulância também pode ser um hub de inovação, com aparelhos de tomografia, por exemplo, e um minicentro cirúrgico, agindo antes mesmo da chegada ao hospital. Métodos não invasivos, dispositivos como calças de compressão e medicamentos para reduzir o sangramento também podem aperfeiçoar esse primeiro contato. Ao mesmo tempo, todos os dados são coletados, armazenados e analisados para melhores fluxos de atendimento. Ainda existe receio por parte de algumas pessoas quando falamos de tecnologia na saúde – o medo de tirar o espaço do médico. Porém, esses equipamentos servirão como ajuda, como guia. É importante mostrar ao médico que as tecnologias não vêm para tirar sua autonomia, mas para sim auxiliá-lo, evitando o trabalho menos humano do especialista para que ele foque no âmbito mais humano de todo o acompanhamento necessário.
TR: Você gostaria de deixar alguma mensagem final?
Leandro: A tecnologia ainda é vista com receio e essa opinião vem muito da ficção científica. Querendo ou não, somos influenciados pela visão dos robôs como algo que vem dominar o mundo, tirar empregos. Acredito que a tecnologia vem para deixar a medicina mais humana, cumprindo atividades que afastam os profissionais de saúde dos pacientes. Com aparatos tecnológicos, o médico consegue agir mais próximo do paciente, podendo acolhê-lo. Além disso, a tecnologia pode deixar os processos mais seguros, com resultados melhores para a saúde de todos. Precisamos ter uma visão positiva da tecnologia. E na traumatologia não pode ser diferente.