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Você pegaria um voo se fosse informado que a chance de queda da aeronave é alta? Provavelmente, não. Mesmo sem entender profundamente sobre os mecanismos que permitem o deslocamento aéreo, quem escolhe viajar de avião sabe que a probabilidade de ocorrer um acidente é consideravelmente baixa em comparação a outras modalidades de transporte. A indústria da aviação é um dos exemplos bem-sucedidos de evolução dos processos de segurança e serve como inspiração para outros setores que lidam com riscos à vida, como o da saúde.
Se um piloto comercial não pode ignorar imprecisões identificadas enquanto conduz uma aeronave porque colocará centenas de pessoas em risco, a mesma lógica é aplicável aos profissionais que atuam nos serviços assistenciais de saúde. Sem o devido registro dos problemas detectados no dia a dia, os processos continuarão falhos, aumentando o risco aos pacientes. A segurança hospitalar, no entanto, ainda é tabu dentro das instituições, o que leva à subnotificação de intercorrências e à falta de transparência em relação a esses dados.
Em entrevista concedida à MIT Technology Review Brasil, o médico intensivista do Hospital Israelita Albert Einstein e especialista em segurança do paciente Gustavo Janot avalia que a mudança cultural é o ponto de partida para se chegar a desfechos mais satisfatórios no ambiente hospitalar.
“Toda a equipe multiprofissional precisa saber que a nossa chance de errar existe inerente ao fato de sermos humanos e termos aspectos cognitivos que podem atrapalhar a nossa performance. Conhecer esses problemas de antemão é muito importante para que possamos antecipar ou criar mecanismos para diminuir a chance de esses erros acontecerem”, afirmou.
A digitalização das informações e o uso de novas tecnologias como suporte aos profissionais de saúde funcionam como um catalisador nessa direção. A lógica é enfrentar os problemas, induzindo o aumento da qualidade do serviço.
“É possível ter segurança sem o prontuário eletrônico, mas ele nos alça a um patamar diferenciado para tornar o cuidado muito mais seguro e evitar danos. A meta é dano zero. É ser uma organização de alta confiabilidade, com baixíssimo índice de erro”.
MIT Technology Review: Quais são as atuais limitações relacionadas à segurança no ambiente hospitalar e como as inovações tecnológicas podem ajudar a superá-las?
Gustavo Janot: A primeira resposta é a subnotificação. É importante ressaltar que aproximadamente 10% dos eventos são notificados de forma voluntária em centros com alta cultura de segurança, ou seja, centros que notificam bastante. A informatização veio para aumentar a nossa abrangência para enxergar eventos e oportunidades de melhoria.
A segunda questão eu diria que é comportamental. Se você não tiver uma maturidade, uma cultura no ambiente hospitalar, você nunca vai entender o que é segurança. Você sempre vai encarar como algo persecutório e punitivo, querendo influenciar o comportamento do profissional de saúde. Mas, não, pelo contrário. É para tornar o cuidado muito mais seguro, eficiente, com melhores desfechos. A cultura é primordial para que possamos entender o papel da segurança, falar sobre erros e aceitar feedbacks de melhorias para tornar o cuidado mais seguro. Outra questão é a resistência dos profissionais mais antigos, que não possuem cultura de segurança e são pouco adeptos a mudanças. Precisamos abrir a cabeça para melhorias, a despeito da experiência — obviamente ninguém vai propor mudança em algo absolutamente seguro e certo.
Hoje, temos o prontuário eletrônico com todos os dados do paciente: exames, parâmetros vitais, exames antigos, exames recentes, registro do que os outros colegas avaliaram. Eu integro tudo em um programa de computador. Existem aplicativos, programas em que começo a detectar falhas e notificá-las. A nossa Central de Monitoramento Assistencial (CMOA) detecta os problemas, aciona o time local e o time de resposta rápida. Temos programas preditores para antecipar em horas qual paciente tem risco de deterioração. Baseado em parâmetros vitais, como frequência cardíaca, pressão e oximetria, e em exames laboratoriais, dados clínicos do paciente, há softwares que conseguem prever a chance daquele paciente ter uma piora clínica. Diante disso, eu posso tomar providências, alocando esse paciente no lugar mais seguro, solicitando mais exames para melhorar a minha complementação diagnóstica, antecipando o tratamento adequado para esse paciente, alertando a equipe de que há risco de deterioração. A digitalização pode ajudar muito.
TR: Para quem está dentro do hospital, seja na gestão ou na linha de frente, por que o aprimoramento desses processos é necessário?
Janot: Torna o nosso trabalho mais eficiente. O cuidado em saúde apresenta inúmeras falhas e erros que podem comprometer o desfecho do paciente. Nos Estados Unidos, a terceira maior causa de morte de pacientes internados, depois de doenças cardiovasculares e oncológicas, são falhas no cuidado de saúde. Temos a obrigação moral de tornar o nosso trabalho mais eficiente. Todo mundo que está na linha de frente, desde a liderança do hospital até o funcionário de hierarquia mais baixa, precisa saber que podemos tornar o nosso cuidado mais eficiente, mais seguro, com melhor qualidade e com o melhor desfecho para o paciente. Por isso a importância da cultura de segurança. Para saber se comunicar melhor, ter uma lupa para enxergar problemas e propor melhorias. Ninguém acorda cedo para ir ao hospital para errar.
TR: Como a etapa de diagnóstico se relaciona com práticas de segurança em saúde?
Janot: Hoje, no mundo inteiro, o erro diagnóstico é o principal ofensor à segurança do paciente. Ele corresponde a cerca de 40% dos nossos eventos catastróficos. Se você observar causas jurídicas nos Estados Unidos, o erro diagnóstico é a principal causa, com maior dano, com maior valor monetário de indenização. Precisamos saber que somos humanos e que nós erramos. Por exemplo, na UTI, se eu estiver cansado, se eu estiver atendendo a uma dezena de pacientes, se eu tiver muitos pacientes graves, se eu for interrompido muitas vezes, se eu perder muito tempo com um paciente e deixar de ver outros, eu tenho uma chance muito grande de cometer um erro, porque isso afeta diretamente a minha cognição. Toda a equipe multiprofissional precisa saber que a nossa chance de errar existe inerente ao fato de sermos humanos e termos aspectos cognitivos que podem atrapalhar a nossa performance. Conhecer esses problemas de antemão é muito importante para que possamos antecipar ou criar mecanismos para diminuir a chance de esses erros acontecerem. Ou, se eles acontecerem, existirem várias camadas para poder detectá-los e revê-los. E também existem fatores sistêmicos que contribuem para erros diagnósticos, como a falta de um especialista, de agilidade na realização de um exame, de treinamento adequado para a equipe desempenhar uma certa função, do número de funcionários adequado para aquele nível de serviço ou para aquele volume de pacientes. Tudo isso pode contribuir para o erro diagnóstico. O principal aspecto é você saber que isso acontece e se preparar para poder evitar.
TR: É possível seguir por esse caminho sem ter alcançado a digitalização da saúde ou a implementação do prontuário eletrônico seria, obrigatoriamente, um ponto de partida?
Janot: No Brasil, até 2017, nós não tínhamos prontuário eletrônico e tínhamos cultura de segurança e informação. Então, dá para trabalhar, sim, sem o prontuário eletrônico. Por mais que haja cultura de segurança, a estatística norte-americana é bem clara: cerca de 10% dos eventos são notificados. Se eu não tenho o prontuário eletrônico, a comunicação é dificultada. Se eu tenho múltiplas evoluções de profissionais no papel, muitas vezes eu não entendo a letra, eu não acho o papel, o resultado do exame não chegou, eu perco um exame, não consigo ler um laudo. Tudo isso pode influenciar na segurança do paciente. Sem dúvida nenhuma, o prontuário eletrônico é mais seguro, mas não é uma condição absolutamente única para termos segurança no hospital. É possível ter segurança sem o prontuário eletrônico, mas ele nos alça a um patamar diferenciado para tornar o cuidado muito mais seguro e evitar danos. A meta é dano zero. É ser uma organização de alta confiabilidade, com baixíssimo índice de erro nos processos e atingir desfechos melhores.
TR: No Brasil, em que estágio estamos em comparação a países mais desenvolvidos, como os Estados Unidos?
Janot: Engatinhando. O norte-americano está anos-luz na nossa frente. Se formos comparar o serviço público, muito mais. A nossa geração de prontuário eletrônico já é uma geração antiga para os americanos. Hoje, os prontuários americanos mais modernos são de uma geração acima dos nossos. Já existem prontuários mais eficientes, mas também são muito mais caros, especialmente para a nossa realidade econômica. O dado que eu tenho é que pouco mais de 90% dos hospitais norte-americanos possuem prontuário eletrônico. Houve um intenso estímulo do governo, até uma lei foi criada no Congresso, para incentivar a formação de prontuários eletrônicos para tornar o cuidado mais seguro e eficiente. Nisso, nossa realidade está distante, especialmente no setor público.
TR: Qual é o papel do setor privado para a disseminação da segurança em saúde?
Janot: Os hospitais privados precisam ajudar a capacitar profissionais de outros setores da saúde, especialmente o público, para que se entenda sobre segurança hospitalar e para promover, por menos tecnológico que seja, um cuidado mais seguro para os pacientes, de acordo com a realidade que se tem. Não adianta querer implementar uma tecnologia caríssima no setor público. Dá para se criar a mentalidade e a cultura para melhorar o cuidado. O papel das instituições privadas é capitanear isso.
TR: A partir dos avanços tecnológicos previstos para os próximos anos, como você imagina o cenário da segurança em saúde no futuro?
Janot: Muito mais eficiente, com participação da tecnologia, centrais de monitorização a distância, melhora de comunicação, antecipação de deterioração clínica de pacientes, predição de riscos, prevenção de eventos. Sem dúvida nenhuma, a tecnologia tem um papel fundamental. Vamos dar um salto de qualidade gritante depois que houver informatização de todo o sistema. Tem serviços norte-americanos que conseguem atingir a meta de dano zero aos pacientes por meses. Há hospitais com mais de dois anos de dano zero. Isso é resultado da mudança de cultura, participação forte da liderança capitaneando os projetos até a linha de frente, técnicas de trabalho em equipe, comunicação, apoio da informática. O prontuário eletrônico e a tecnologia são grandes elementos.
TR: Qual é a reflexão necessária para se chegar até lá?
Janot: A mudança cultural é a principal. É preciso enxergar a segurança como uma aliada e como uma missão do hospital, uma visão, um valor da instituição de saúde. A liderança precisa agir diretamente na linha de frente para incentivar medidas de segurança. Uma cultura justa, não punitiva, com oportunidade de melhoria dos processos. Se não mudarmos a cultura, não chegaremos ao dano zero e nunca sustentaremos medidas de forma duradoura.
Essa entrevista foi feita por Manoela Albuquerque, Repórter e Editora de Saúde na MIT Technology Review Brasil.