TR Q+A: Ana Vicenzi  – Tecnologia: uma commodity para a saúde
Ecossistema de SaúdeHealth

TR Q+A: Ana Vicenzi – Tecnologia: uma commodity para a saúde

A digitalização se torna peça fundamental para a resolução de um quebra-cabeça que há tempos tenta ser montado por instituições de saúde e especialistas do setor: o de equilíbrio financeiro dos planos de assistência médica.

Além de garantir maior flexibilidade e autonomia aos beneficiários, novas tecnologias estão sendo criadas para apoiar decisões médicas, resgatar o modelo de saúde preventiva e aprimorar os cuidados com pacientes idosos e pessoas com doenças crônicas. Mas, como em qualquer jogo, há sempre desafios. No caso da digitalização da saúde, os principais são os de infraestrutura, governança, comunicação, custos e, obviamente, a aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

Em entrevista à MIT Technology Review Brasil, a especialista em gestão e inovação em saúde Ana Vicenzi avalia que a tecnologia é como uma commodity, mas que as particularidades da área dificultam a implementação de soluções, mesmo para a iniciativa privada. A médica, que integra o Conselho de Ética da Prevent Senior, destaca que a transformação digital no setor exige a personalização de soluções e a participação do ecossistema como um todo.

“Eu enxergo, sim, a tecnologia com uma solução e como uma das principais ferramentas para trazer mais sustentabilidade para o sistema, mas ainda temos um longo caminho para percorrer porque, apesar de a tecnologia ser commodity, essas commodities ainda precisam ser muito personalizadas e muito pensadas dentro da saúde”, afirma.

MIT Technology Review Brasil: Quais são os principais desafios para a digitalização da saúde do ponto de vista de sustentabilidade dos planos?

Ana Vicenzi: Hoje, nós temos aproximadamente 6 mil hospitais no Brasil e um gasto com saúde envolvendo o mercado público e privado de cerca de 10% do nosso Produto Interno Produto (PIB). Para efeito comparativo, esse percentual foi próximo a 9,5% em 2018. Então, nós investimos uma parcela significativa do nosso PIB em saúde. Extrapolando um pouco mais para a saúde suplementar, temos 25% da nossa população coberta por planos de saúde, principalmente profissionais com registro em carteira. São planos mais voltados para grandes empresas que atendem seus colaboradores.

Existem entraves na área de cultura, de infraestrutura tecnológica e redes, de interoperabilidade [capacidade de um sistema se comunicar com o outro de forma transparente], de governança, de estratégia e de modelos de pagamentos. Se eu fosse elencar os dois principais problemas na saúde suplementar, ressaltaria o de interoperabilidade e do modelo de pagamento. Acredito que eles sejam responsáveis por boa parte dos fatores que dificultam a sustentabilidade do sistema.

Então, nós temos um cenário hoje de abundância tecnológica gerando novos modelos de negócio e esses modelos de negócios gerando novas maneiras de se fazer gestão. Participei recentemente de uma mentoria no Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e questionei como a tecnologia pode trazer sustentabilidade à saúde suplementar. Se a tecnologia é commodity por que ainda é tão cara? Por que é tão difícil digitalizar o setor?

Em minha avaliação, a saúde não é ‘um mais um igual a dois’. Nós não temos um negócio previsível e objetivo. Segundo ponto: a transformação digital desse setor envolve a participação de diversas pessoas e a utilização de tecnologias de diferentes áreas em hospitais, como a financeira, a de gestão e a de varejo. Por isso, é necessário customizar soluções, o que gera um aumento de custos. Eu enxergo, sim, a tecnologia com uma solução e como uma das principais ferramentas para trazer mais sustentabilidade para o sistema, mas ainda temos um longo caminho para percorrer porque, apesar de a tecnologia ser commodity, essas commodities ainda precisam ser muito personalizadas e muito pensadas dentro da saúde.

MIT Technology Review Brasil: Quais soluções tecnológicas você destacaria como mais relevantes para o setor?

Ana Vicenzi: As principais inovações que estão sendo desenvolvidas e que trazem novidades para a saúde suplementar, sem dúvida, são as de gestão e de prontuário eletrônico. É interessante comentar como os prontuários vêm se modernizando com a inteligência artificial, trazendo ferramentas de apoio à tomada da decisão, convidando a equipe médica para apoiar a prescrição, a melhorar as interações medicamentosas e a identificar padrões.

Nós temos também a telemedicina, que é a minha grande paixão. Hoje, nós trabalhamos com inovação aberta, então, a saúde complementar procura trazer startups e outras empresas para ajudar a fazer os processos. Nós vemos que as áreas em que as startups mais se desenvolvem são as que a saúde suplementar mais demanda, porque é onde existe maior demanda do mercado. A telessaúde como um todo vem crescendo muito dentro da saúde suplementar. É importante entender a telemedicina como uma porta de entrada digital para o serviço de saúde. Essa é uma das grandes inovações para a saúde suplementar.

E, paralelamente à telemedicina, nós precisamos falar dos dispositivos médicos. Com o envelhecimento populacional e necessidade de ampliação dos cuidados com os doentes crônicos, nós vamos precisar criar mais maneiras de parametrizar, medir e acompanhar esses pacientes a distância. Então, a telemedicina e esses devices médicos, com certeza, não são só grandes promessas, mas o caminho a ser seguido tanto na saúde pública quanto na saúde suplementar.

MIT Technology Review Brasil: Como a medicina preventiva voltou a ganhar espaço no país em meio ao avanço tecnológico?

Ana Vicenzi: Eu vejo a medicina preventiva se destacando entre as principais tendências para a área da saúde. Em Portugal, por exemplo, a pessoa tem um médico para cuidar [do todo], um médico da família que conhece sua história. No Brasil, nós temos a tendência de ir direto ao especialista. E o paciente fica picotado, né? O neurologista vê a cabeça, o ortopedista vê o quadril, vê o joelho, o cardiologista vê o coração e ninguém enxerga o paciente como um todo.

A prevenção à saúde reforça a necessidade de um médico capaz de fazer essa interface com as outras especialidades e trabalhar em uma saúde mais cautelosa, com teste genético para identificar o que esse paciente tem, a qual fármaco esse paciente responde ou não, qual a probabilidade desse paciente ter um Alzheimer. Claro que cada operadora trabalha isso de uma maneira, mas se não focarmos em medicina de precisão, não melhorarmos a nossa tomada de decisão, não conseguiremos trazer sustentabilidade para o sistema.

Outra tendência é entender a telemedicina não só como uma plataforma de interface, com o médico de um lado e o paciente de outro, mas como uma saúde híbrida. Entender todas essas interfaces e possibilidades de contato que a telessaúde nos dá, começando pela porta de entrada digital do sistema. Se hoje eu faço reuniões 100% virtuais, apago as luzes da minha casa por inteligência artificial e peço comida por aplicativo, por que eu tenho que carregar dez folhas de documentos para autorizar um procedimento? Por que eu preciso ligar para agendar uma consulta ou exame? O paciente digital exige uma saúde suplementar digital, então, nós precisamos criar portas de entrada e trazer tecnologia para a enfermagem, para a fisioterapia, para a UTI e para o ambulatório. Nós precisamos entender a telemedicina não como algo separado, mas como parte integral do modelo de cuidado híbrido.

MIT Technology Review Brasil: Mas, para que esse tratamento integrado de fato funcione, os dados dos pacientes também precisam estar integrados. Existem avanços na interoperabilidade de informações?

Ana Vicenzi: Esse é outro desafio. Estamos falando do open health, que tem como objetivo compartilhar os dados médicos com os pacientes e com as outras instituições de saúde. E isso pode fazer com que a gente cuide melhor dos pacientes porque, da mesma maneira que esse paciente não pode ter o tratamento picotado, nós também não podemos picotar os dados dele. Nós precisamos fazer com que todos os médicos acessem os dados, inclusive o próprio paciente, que é o dono da informação. Então, se ele for a um convênio, a um médico particular ou ao Sistema Único de Saúde (SUS), esses dados precisam estar integrados.

A questão é que não sabemos ainda como conectar todos esses sistemas de maneira segura. Você imagina o quão desafiador é a questão da segurança digital, da segurança cibernética, para a LGPD? Quando fiz a minha primeira especialização e trabalhei em um posto de saúde, lembro que recebemos um paciente com seis ultrassonografias de abdômen porque ninguém sabia, de fato, o que estava acontecendo com ele. Que dor abdominal era aquela que nós, de fato, estávamos investigando? Quantas pessoas, como aquele paciente, fizeram exame para uma dor abdominal e o quanto isso gerou de desperdício para o sistema?

MIT Technology Review Brasil: Para finalizar, como você enxerga a saúde suplementar para o ecossistema de saúde como um todo?

Ana Vicenzi: Eu gosto muito do SUS e já fui médica do sistema. Então, eu sei que o SUS tem muitos pontos positivos para a população, principalmente em relação a vacinas. Também destaco a parte oncológica, de hemodiálises e as regulações do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). Tem muita coisa boa no SUS. No entanto, o sistema precisa ser repensado em alguns aspectos, como o de tentar ofertar tudo para todos e deixar de oferecer o que é importante para quem realmente precisa. Esse é um assunto muito delicado. E é aí que a saúde suplementar tem um papel muito importante: o de trazer um modelo de cuidado mais especializado e inovador. Tanto a saúde suplementar quanto os consultórios populares ajudam a democratizar e a impulsionar o ecossistema de saúde como um todo. Esses serviços acabam complementando e reduzindo as filas do SUS, que hoje são bastante extensas.


Este artigo foi produzido por Patrícia Basilio, repórter na MIT Technolgy Review Brasil.

Último vídeo

Nossos tópicos