Tiktorização da vida
Humanos e tecnologia

Tiktorização da vida

Mais uma vez o Instagram vai mudar. A nova estratégia abandona de vez as origens da plataforma em busca de competir com o novato TikTok.

É possível que você já saiba que (mais uma vez) o Instagram comunicou mudanças na plataforma que irão impactar no funcionamento da rede social. Em um vídeo publicado em seu perfil pessoal, Adam Mosseri, o diretor da companhia disse que “o Instagram não é mais oficialmente uma plataforma de compartilhamento de fotos.”

As fotos vão deixar de existir? Provavelmente não — pelo menos não é isso o que foi dito. Ele diz que as pessoas buscam o app para entretenimento e que o foco será cada vez mais esse daqui para frente, privilegiando vídeos, “shopping” (compras) e troca de mensagens. E o mais importante, assume que é a concorrência que está motivando as principais mudanças. “TikTok é enorme, Youtube mais ainda”, disse.

A repercussão parece não ter sido boa. Não só no vídeo dele, onde são raros os comentários positivos, como também em muitos outros perfis e conteúdos que surgiram desde então com duras críticas. Eu não vou fazer a linha cringe apegado ao passado e ficar lamentando a saudade do Instagram raiz, mas vamos analisar um pouco sobre o que tudo isso pode significar?

Primeiro é importante concordar que a linguagem muda os formatos, os hábitos. Vimos empresas de fotografia, como a Kodak, por exemplo, desaparecerem de uma hora para outra, por não conseguirem se adaptar (assim como diversas outras empresas em vários segmentos). Mas qual é o limite entre se adaptar e perder totalmente a sua essência?

O Instagram surgiu como um aplicativo inovador, em um momento no qual as imagens e a autopublicação pediam por algo direcionado. Mas, desde então, grande parte das suas transformações e evoluções foram pautadas em concorrentes — em replicar funcionalidades de outras plataformas e aplicativos. Já o Youtube e o TikTok (que ele cita) são apps e plataformas nativas de vídeos, começaram com essa finalidade.

De olho no sucesso dessas redes (e também do Snapchat) e nas possibilidades de interação por meio de imagens, já tem tempo que o Instagram deixou de ser um app somente para publicações quadradas (como fotos de pratos de comida e crianças fofas) para muitas pessoas, passando a agregar um pouco de cada plataforma existente. Por mais que parecesse muita coisa junta e misturada, tendia a ser mais democrático. Teoricamente você poderia compartilhar ou consumir o formato que mais lhe agradasse.

Até que em pouco tempo, vieram mais mudanças. E para analisá-las, é importante fazermos uma divisão entre o público em geral, que produz conteúdo de graça para a plataforma usando-a “apenas” como rede social (enquanto ela usa seus dados para venda de mídia), e as pessoas que usam o espaço profissionalmente — porque sim, ao longo do tempo o app se transformou em uma possibilidade de renda para muitas pessoas ou no mínimo uma oportunidade de exposição de seus trabalhos.

Para criadores profissionais de conteúdo (que vivem disso) é exaustivo. A plataforma é pouco transparente. São vários os gatilhos que gera. Pouco se sabe sobre o funcionamento do algoritmo e as mudanças são constantes e confusas. Para permanecer no jogo é preciso se adaptar a todo momento, muitas vezes se rendendo a formatos não tão originais. O Instagram era uma opção para produção de conteúdo “diferente” das outras redes. Principalmente para quem não se identifica com conteúdo em vídeo. Mas agora será que esses criadores vão querer continuar lá?

Além dos criadores profissionais, há pessoas que estão lá pela proposta inicial da plataforma, e tem as que passam muito tempo produzindo conteúdo de graça, investindo muita energia na criação, em relacionamentos, até serem notadas por marcas com foco na monetização. Enquanto isso, alimentam a plataforma com conteúdo “grátis”. Qual é o limite entre essas pessoas “se adaptarem” aos novos tempos, “saírem da zona de conforto” (como vi muita gente dizer) e essas próprias pessoas, assim como a plataforma, perderem o seu foco e suas potencialidades?

Para quem consome o conteúdo, parece ser cada vez mais exaustivo também. A disputa por atenção e para “agradar” o algoritmo em troca de visibilidade tem feito pessoas se renderem a challenges, dancinhas e outros formatos de conteúdo bobos, enlatados em 15, 30 segundos, pois é isso que sentem que engaja mais – pois a plataforma distribui mais esse tipo de conteúdo atualmente. Driblar essa lógica é um trabalho cada vez maior. E a sensação que fica é que daqui para frente será maior ainda.

Para as marcas não parece ser interessante também. Conteúdos em vídeos são mais trabalhosos, levam mais tempo para serem feitos, são mais caros e não são todos os criadores de conteúdo que se dão bem com eles, que sabem fazer. E tem muita marca pequena que não tem possibilidade de investir. É provável que outros conteúdos comerciais — como fotos de produtos e cards de divulgação — demandem investimento de mídia para ganharem mais alcance.

“Mas o mundo muda”. Sim, as novas gerações, nativas digitais, têm uma outra relação com a produção de imagens, e principalmente com vídeos. Mas será que o vídeo é a melhor alternativa para todas as pessoas? Há particularidades no sucesso do Youtube e do TikTok que precisam ser levadas em consideração. O TikTok, além de ter nascido com muitas possibilidades originais de criação de vídeos, remunera indicações para criações de conta — inclusive faz propaganda disso em rede nacional na televisão. O Youtube viabiliza formatos de remuneração com base na mídia. O Instagram está disposto a fazer isso? Será que o sucesso dessas redes é apenas “pelo vídeo”?

“Vídeos que geram entretenimento terão prioridade no engajamento e no nosso feed”, diz Mosseri. Ok, defina entretenimento. “Ah, entretenimento não é só dancinha”, é o que algumas pessoas esperançosas dizem, acreditando que a mudança pode ser boa. Eu também procuro ser otimista. Mas reconheço que são os vídeos bobos que viralizam mais. É o que vejo a plataforma entregar mais. Eu ainda não descobri o que eles entendem como entretenimento, mas sinto que não tem a ver com o conteúdo de pessoas ativistas, educadoras e outras que querem produzir conteúdo sério e mais profundo. Estas pessoas encontram cada vez mais barreiras para o crescimento e muitas não encontram mais lugar na plataforma.

Me preocupa a despolitização dos conteúdos e o esvaziamento de conteúdos informativos e relacionados a temas importantes. Recentemente a plataforma já havia comunicado intenção de limitar conteúdos que gerem polarização. E a meu ver esse é mais um passo em direção à alienação. Nenhum entretenimento é “somente” entretenimento, mas será que fazer “entretenimento com propósito” dentro de todas as limitações de tempo, espaço e velocidade impostas é factível para todas as pessoas que usam a plataforma?

Por último, um ponto importante que ele destaca no vídeo, é que receberemos recomendações de vídeos para seguir. Veremos vídeos de pessoas que não seguimos no feed — como já acontece no TikTok. Muitas pessoas criticaram, pois não conseguem ter acesso nem ao conteúdo das pessoas que seguem de forma orgânica, e a partir de agora deve ser pior. Mas, além disso, eu não tenho como não deixar de pensar nessa lógica que nos fecha em bolhas, entregando conteúdos apenas similar ao que consumimos e que muitas vezes contribui para invisibilizar conteúdos e criadores importantes — a não ser que entrem nessa lógica frenética.

Mas o mais importante ao refletirmos sobre isso tudo não é somente para entender se vamos nos adaptar ou não. É provável que daqui a gente supere esse desconforto — até que venham novas mudanças. Mas é para pensarmos sobre o quanto estamos dependentes de muitas destas plataformas. O quanto temos empenhado nosso tempo para produzir, entregar e consumir conteúdos que pouco acrescentam na nossa vida e na de outras pessoas, enquanto mantemos a lógica de estruturas que são muito maiores que nós e que estão ganhando muito com isso.


Este artigo foi produzido por André Carvalhal, consultor, palestrante, TEDxSpeaker, especialista em design para sustentabilidade e colunista da MIT Technology Review Brasil.

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