Telas na medida certa: mundo digital amplia opções terapêuticas para doenças raras
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Telas na medida certa: mundo digital amplia opções terapêuticas para doenças raras

Sob orientação médica e supervisão de familiares, dispositivos eletrônicos têm potencial para elevar autoestima e ajudar no desenvolvimento de crianças e adolescentes.

As telas fazem parte do dia a dia do cientista da computação Iuri César Caliman desde criança. Aos 27 anos, o nativo digital utiliza o computador, o smartphone e os videogames não só para trabalho e entretenimento, mas também para fazer acompanhamentos de saúde e desenvolver soluções para melhorar a qualidade de vida de pessoas com mobilidade reduzida, grupo em que ele próprio está inserido.  

O jovem, que sempre gostou de jogos de estratégia e de aventura, adotou os games como ferramenta de terapia multidisciplinar. Nas sessões de fisioterapia, ele utiliza desde jogos de tabuleiro a videogames com sensores de movimento que simulam esportes em grupo, como tênis e golfe.  

Iuri tem distrofia muscular de Duchenne, uma doença genética e incapacitante que causa degeneração progressiva dos músculos, e desde os oito anos faz uso de cadeira de rodas para se locomover. Sua história é um exemplo de que a paixão pela tecnologia e a consciência digital somam fatores positivos para o desenvolvimento.  

“O mundo virtual nos aproxima do mundo real. Um dia a gente vai conseguir andar mesmo com alguma lesão ou deficiência. Nos jogos, eu posso correr e até subir em árvores”, relata.  

Terapia gameficada  

Estudos científicos reforçam o benefício da terapia gamificada. O artigo Gaming Technology for Pediatric Neurorehabilitation: A Systematic Review (Tecnologia de jogos para neurorreabilitação pediátrica: uma revisão sistemática, em tradução livre), publicado em janeiro de 2022 no site Frontiers, aponta que consoles comercias, como Nintendo Wii e Microsoft Xbox Kinect, são utilizados com frequência porque podem rastrear e registrar os movimentos dos pacientes durante o jogo. 

Produtos desenvolvidos especificamente para reabilitação, como um game que permite à criança visualizar a sua própria imagem por meio de um avatar, têm capacidade de ativar o “sistema de neurônios-espelho”, que é ligado à visão e ao movimento, destaca a publicação científica. 

O artigo, no entanto, revela que a maioria dos estudos sobre a tecnologia de jogos disponíveis para reabilitação de pacientes pediátricos pertence a pesquisas de viabilidade ou pilotos com amostras pequenas, poucas sessões e metodologia pouco estruturada, ou seja, a tendência ainda está no começo. No campo das doenças raras, está ainda mais incipiente.  

“Há uma série de áreas de aplicação da neurologia pediátrica dificilmente abordadas nos estudos revisados, como as doenças raras. Para cerca de 95% dessas condições crônicas, a neurorreabilitação é um tratamento de suporte convincente e de longa duração: a esse respeito, as tecnologias emergentes poderiam fornecer dados mais precisos a partir de análises de vídeo ou sensores vestíveis”, informa o estudo. 

Geneticista e pediatra, Salmo Raskin acrescenta que a gamificação no tratamento de crianças com doenças raras é positiva, mas ainda é pouco usada no Brasil, principalmente em centros médicos afastados de grandes metrópoles, universidades e redes de apoio.  

“Tive um paciente que não conseguia falar e se comunicava por meio de ícones e desenhos do smartphone e do tablet. Existem diversos aplicativos que estimulam e facilitam a comunicação da criança com o mundo”, avalia o médico.  

Equilíbrio para garantir benefícios  

Desde a década de 1990, controlar o tempo despendido em frente às telas nem sempre foi fácil para os usuários — e tende a ser cada vez mais desafiador para crianças que já nascem imersas nas plataformas digitais. Por isso, é importante que haja regras para a utilização das ferramentas digitais.  

No caso de Iuri, por exemplo, o uso sempre foi limitado no ambiente doméstico. “Quando eu era mais novo, minha mãe mandava eu desligar o computador e ir dormir. Ela sempre acompanhou de perto o tempo em que eu ficava conectado. Hoje, ela entende que preciso do computador para trabalhar e estudar, e eu tenho consciência sobre a necessidade de descansar”, conta. 

Não existe receita pronta. Embora a adolescência seja considerada a faixa etária mais suscetível ao vício por aparelhos eletrônicos, Raskin afirma também que os jovens têm mais facilidade e maturidade para compreender os limites quando orientados pela família.  

“Os pais não podem liberar tudo. Crianças com doenças raras podem se divertir, relaxar e se sentir incluídas na sociedade com o avanço da digitalização, mas tudo na vida tem que ter a dose certa”, pondera o especialista, CEO da Genetika Laboratórios.  

Coordenadora do Grupo de Saúde Digital da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Evelyn Eisenstein faz um alerta: o uso excessivo de eletrônicos pode prejudicar o desenvolvimento das crianças e causar desde doenças oftalmológicas a distúrbios comportamentais, como ansiedade, depressão e transtorno de sono.  

“Regras precisam ser determinadas. Não podemos deixar as crianças andarem de bicicleta sem olhar para frente, tampouco abandoná-las sozinhas no meio da rua. Por isso, estamos trabalhando na regulamentação do uso de telas”, afirma. 

A pediatra acrescenta que existe uma linha tênue entre os benefícios e os prejuízos das telas para crianças com doenças raras. Sem a supervisão dos pais, a tecnologia pode prejudicar o desenvolvimento motor e cognitivo na infância. Sob orientação médica e familiar, porém, videogames e computadores têm potencial para aumentar a autoestima dos pacientes, apoiar sessões de fisioterapia e funcionar como plataforma de educação e trabalho a distância. 

Para orientar as famílias, a Organização Mundial da Saúde (OMS) elaborou recomendações gerais para o uso de tecnologias por crianças e pré-adolescentes. Segundo a agência, bebês com menos de 12 meses de vida não devem utilizar dispositivos eletrônicos. Crianças de um a cinco anos não podem ficar paradas em frente às telas por mais de uma hora porque precisam interagir e se movimentar. 

A sugestão para crianças de seis a 11 anos é de uma hora a uma hora e meia, contanto que elas tenham terminado as tarefas escolares e o conteúdo reproduzido seja avaliado por um responsável. Por fim, pré-adolescentes de 11 a 13 anos podem ter até duas horas de smartphone, TV, computador e videogame. É importante que a família continue avaliando o conteúdo e explique o conceito de equilíbrio de atividades. 

A pesquisa  TIC Kids Online Brasil 2022, realizada com 2.604 crianças e adolescentes brasileiros pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), mostra que 86% dos pequenos e jovens usuários de internet no país têm perfil nas redes sociais. Esse público também ouve música (87%), assiste a vídeos, filmes e séries (82%) pela internet. O estudo mostrou ainda 9% das crianças e adolescentes enviam mensagens instantâneas e 58% jogam online com outras pessoas. 

Além do foco em entretenimento, a pesquisa aponta que 34% dos entrevistados procuraram informações sobre bem-estar e qualidade de vida nos 12 meses anteriores ao estudo — realizado entre junho e outubro de 2022. Para 39% desses usuários, a internet os ajudou a lidar melhor com um problema de saúde.  

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