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Um problema sério, sem controle e em escalada alarmante. As superbactérias, micro-organismos resistentes aos antibióticos e tratamentos convencionais, têm ocupado e preocupado médicos e cientistas que tentam conter seu avanço. No entanto, a busca por tornar o ambiente hospitalar mais seguro em todo o mundo ainda está longe de alcançar o êxito necessário.
Projeções divulgadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 2015, analisando os impactos clínicos e financeiros das superbactérias até 2050, trazem informações preocupantes. A previsão é de que 10 milhões de óbitos ocorram nesse espaço de tempo devido à ação desses micro-organismos. O número, segundo o estudo, superará as mortes causadas por cânceres no período, que poderão chegar a 8 milhões. De acordo com os cálculos da organização, os custos aos sistemas de saúde mundiais podem superar US$ 1 trilhão.
Segundo uma análise feita pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), as bactérias comuns, que são sensíveis aos antibióticos, se tornam mais resistentes devido ao uso inadequado dos medicamentos. O descontrole na administração dessas drogas provoca mutações, ou seja, modificações genéticas, que prejudicam sua eficácia. Na prática, o antibiótico perde a capacidade de matar as células bacterianas.
“Basta um clone mutante com genes ruins. Pode surgir um clone que seja resistente e, de repente, a bactéria domina o ambiente e a nova cepa se instala. Mais do que nunca, a questão das bactérias multirresistentes é de emergência internacional. Vivemos uma situação em que o problema é crescente”, alerta Adriano José Pereira, pesquisador, coordenador médico de Tele-UTI e consultor de Analytics do time de Big Data do Hospital Israelita Albert Einstein.
E o cenário assustador, segundo o especialista, foi agravado durante a pandemia de Covid-19 devido ao aumento do número de internações. Um levantamento do Laboratório de Pesquisa em Infecção Hospitalar do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) mostra que a detecção de bactérias resistentes a antibióticos triplicou durante a pandemia. Enquanto em 2019 foram verificadas bactérias resistentes a antibióticos em pouco mais de mil amostras, entre janeiro e outubro de 2021, esse número ultrapassou 3,7 mil.
“A pandemia acelerou as contaminações em muitos hospitais. Protocolos deixaram de ser seguidos, antibióticos passaram a ser usados com mais frequência. É um problema de saúde pública internacional.”, reforça.
Mas, enfim, como solucionar o problema? Basta controlar o uso desses fármacos? Como o ambiente hospitalar interfere nesse cenário? Ainda não há respostas categóricas para essas questões, mas já existem caminhos a serem percorridos.
“É ameaçador porque está aumentando e precisamos de mais pesquisas e ferramentas para lidar com isso. O que está sendo feito hoje parece ser pouco. Entendendo melhor o problema, conseguiremos propor soluções alternativas”, afirma o médico e pesquisador.
Novos instrumentos de controle
Pereira, assim como outros integrantes da comunidade médico-científica, é incisivo ao falar sobre a necessidade de ação. Novas formas de controle precisam ser descobertas, testadas e colocadas em prática. O especialista destaca: “As nossas estratégias para combater as bactérias multirresistentes hoje são restritas, como no caso do uso racional de antibióticos, o isolamento do paciente e a higienização das mãos. Elas estão se mostrando insuficientes frente aos dados que sinalizam o avanço do problema. A bactéria tem uma capacidade muito maior de se adaptar e se multiplicar”.
O Brasil possui iniciativas nessa direção. No Sistema Único de Saúde (SUS), está sendo desenvolvido um plano capitaneado pelo Ministério da Saúde em conjunto com outras pastas. O conteúdo, cujo principal pilar é o uso racional de antibióticos, passa por uma revisão para o próximo quinquênio.
“Governos ao redor do mundo traçaram planos. A grande questão é o local hospitalar, onde a evolução [das superbactérias] é a olhos vistos. A capacidade de reprodução é muito veloz. As bactérias são seres vivos que se adaptam”, explica Pereira.
No âmbito do Programa de Desenvolvimento de Apoio Institucional do Sistema Único de Saúde (PROADI-SUS), o Einstein, em parceria com os outros hospitais participantes da iniciativa (HCor, Sírio-Libanês, BP, Moinhos de Vento e Hospital Alemão Oswaldo Cruz) e com a Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Complexo da Saúde (SECTICS) desenvolve estudos para o enfrentamento a esse problema, dentro da chamada Plataforma IMPACTO MR. As pesquisas são voltadas para o controle e o tratamento de superbactérias com o intuito de avaliar aspectos relacionados ao desenvolvimento dessas infecções e estudar possíveis intervenções, como formas diferentes e mais eficazes de higienização dos ambientes de UTI e alternativas para reduzir, com segurança, o uso de antibióticos, por exemplo.
O projeto começou em 2019, após uma iniciativa conjunta da Anvisa e do Ministério da Saúde, motivada pelo histórico crescente de infecções. Na prática, formou-se uma plataforma nacional para mapear a situação, avaliar os custos dos tratamentos e desenvolver possíveis soluções. Cada hospital PROADI que coordena o projeto selecionou um aspecto para se aprofundar na primeira etapa da iniciativa.
A primeira fase do projeto, em 2020, traçou uma fotografia das infecções hospitalares em unidades de tratamento intensivo (UTIs) de 50 hospitais no país, sendo 70% leitos públicos e 30% privados. Estudos clínicos estão sendo desenvolvidos na segunda etapa, iniciada em 2021.
“Buscamos chamar a atenção para que um processo de gestão baseado em dados seja perseguido, e para que políticas públicas possam ser desenhadas com base em evidências geradas a partir de estudos pragmáticos, com metodologia científica robusta, realizados dentro da nossa realidade. Dessa forma, será possível propor a padronização de um remédio novo ou de uma nova tecnologia, de forma custo-efetiva”, pontua o médico do Einstein.
Agora, durante a segunda fase do projeto, os dados foram transformados em projetos de pesquisa e estudos de intervenção. Cinco deles já estão em andamento para gerar evidências padrão-ouro que serão base para a publicação artigos de alto impacto sobre o manejo das superbactérias.
Algumas pesquisas já foram transformadas em artigos científicos. Os documentos estão em fase de revisão para serem submetidos à comunidade científica nos próximos meses. “A falta de dados mais detalhados sobre essas infecções no Brasil é preocupante.”, diz o médico.
“Em 2023, ainda não temos clareza de que se intensificarmos a intervenção sobre os ambientes hospitalares, por exemplo, veremos a diminuição das infecções. Sabemos que os antibióticos matam bactérias ruins, mas também as boas. Talvez a melhor estratégia possa até ser a de se promover o equilíbrio no ambiente, mas é preciso gerar evidências científicas robustas sobre esse tema”, afirma Pereira.
Uma das pesquisas em andamento estuda a eficácia de um desinfetante superpotente que tem uma característica química capaz de atuar por até 30 dias no ambiente hospitalar. A equipe envolvida no trabalho busca descobrir se um produto mais ativo na higienização pode interferir nas infecções em uma das frentes.
“O ambiente é um aspecto negligenciado da assistência. O médico, muitas vezes, não está interessado em saber se o leito foi higienizado ou como foi higienizado. A pesquisa quer apontar caminhos para o futuro. Isso pode redesenhar os processos hospitalares ou guiar estudos posteriores”, comenta o especialista.
Uso prudente de antibióticos é insuficiente
Enquanto novos meios de controle de superbactérias ainda estão em fase de desenvolvimento, as técnicas já usadas devem ser respeitadas. Um dos exemplos mais claros é o uso prudente dos antibióticos, dentro e fora dos hospitais.
Para a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), usar adequadamente um antibiótico significa recorrer a ele apenas quando receitado por um profissional de saúde, seguindo suas orientações quanto à dose, horário e duração do tratamento.
Quando as bactérias são expostas aos antibióticos, um grupo pequeno de micro-organismos mais fortes pode sobreviver e posteriormente se reproduzir. Isso significa que, a cada geração, as bactérias mais resistentes dão origem a outras bactérias que também são resistentes. Quando o microrganismo é resistente a um ou mais antimicrobianos de três ou mais categorias, diz-se que ele é multirresistente.
Por esse conjunto de evidências, o especialista do Einstein destaca que somente a conscientização sobre o uso dos medicamentos não basta para conter o problema sanitário. “Essa luta é inglória. Nas últimas décadas, ficou comprovado que as bactérias são mais capazes de se adaptar se jogarmos o mesmo jogo”, reforça.
Alerta na agropecuária
Outra fonte de preocupação é a agropecuária. O uso de antimicrobianos para prevenir doenças e estimular o crescimento de animais é o que mais chama a atenção. “Criações de animais para produção de proteína para consumo humano consomem quantidades enormes de antibióticos, misturados à ração”, afirma Pereira.
Isso ocorre apesar das recomendações internacionais e nacionais sobre o uso racional de medicamentos, ou seja, apenas em situações em que há indicação clínica e seguindo dose e período de tratamento apropriados a cada caso.
Segundo manuais da Anvisa, favorecem o surgimento de bactérias multirresistentes o uso de antibiótico para tratar doenças que não são infecções bacterianas, por exemplo, gripe; o uso de antibiótico não indicado para o tipo de bactéria que está causando a infecção; e o uso inadequado de antibióticos na área veterinária, especialmente em animais destinados ao consumo humano.
Próximos passos
Além dos prejuízos já catalogados, no futuro, o problema pode se acentuar de tal forma que os antibióticos deixarão de ser eficazes. Hoje, para tratar um paciente acometido por uma superbactéria, é preciso usar um antibiótico e uma nova substância associada.
Pereira avalia a necessidade de investimentos no setor para que se possa avançar no enfrentamento desse cenário. “Com pesquisa, testamos novas modalidades e intervenções inovadoras que, no futuro, podem ser capazes de influenciar práticas mundo afora”, afirma.