Startups e o efeito hold-up: como as Big Techs estão chutando a escada
Negócios e economia

Startups e o efeito hold-up: como as Big Techs estão chutando a escada

Como algumas das principais empresas de tecnologia do planeta saltaram da inovação aberta para a inovação fechada, encastelando-se e reduzindo o espaço de atuação da concorrência.

O professor coreano Ha-Joon Chang, antes mesmo do Vale do Silício ganhar fama, já decretava, no seu famoso livro Kicking away the ladder: development strategy in historical perspective, que as nações e empresas, em situação de crescimento exponencial, envolviam-se em espionagem industrial, violavam obstinadamente as marcas e as patentes, defendiam o modelo de inovações abertas e cooptavam, sem pudor, mão de obra especializada dos concorrentes.

Porém, mal ingressavam no clube dos mais desenvolvidos ou de liderança do mercado, passavam a mudar de chapéu, ou seja, advogar por níveis de proteção e exclusividades das patentes de invenção, modelos de utilidade e das marcas registradas, ao ponto, por exemplo, de tomar como liderança e signatários do famoso acordo TRIPS (Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights ou Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio). Assumiram, ainda, às práticas de inovação fechada, ou seja, mantendo seus processos de pesquisa e desenvolvimento em confidencialidade, de ponta a ponta, bem como proibindo a circulação de trabalhadores qualificados (know how disponível) entre os concorrentes, com a criação, e tornando famosa, as cláusulas contratuais de não concorrência ou não solicitação entre os seus funcionários.

Chang, que se notabilizou pelo título de chutando a escada para designar este comportamento, digamos, contraditório, apresenta vários casos, como na indústria têxtil inglesa, da indústria química alemã e da indústria automobilística coreana, onde todas se valeram desse tipo de procedimento ao atingirem a liderança nos respectivos mercados. Em razão da data dos seus estudos, não se debruçou sobre o fenômeno tech originais dos belts americano, mas certamente seria um terreno fértil para o desenvolvimento da sua tese.

Já o jurista brasileiro Ronaldo Lemos cita o ensaísta francês Paul Vacca e, ao invés de usar a expressão chutando a escada, prefere a expressão hold-up. O termo, segundo Lemos, descreve uma transformação recente do capitalismo, em que a inovação, representada pela ideia de criação destrutiva Schumpeteriana, dá lugar a um movimento generalizado de contenção e preservação de posições. O hold-up, portanto, é empregado quando alguém se encastela em um lugar e tenta resistir a transformações. Ou seja, alguém conquista uma posição e logo a seguir muda sua forma de agir para conservá-la a qualquer custo.

O que o Airbnb, Apple, Google, Uber, Microsoft tem em comum?

As Big Techs, de fato, têm exercido um protagonismo nos mais variados e distintos segmentos. Lançam tendências, promovem inovações radicais e incrementais, algumas delas a margem do direito regulatório. É notório e dispensam maiores linhas. E mais: as trajetórias delas despertam uma espécie de admiração no público, em um endeusamento dos seus fundadores, tidos como gênios, desbravadores e, até mesmo revolucionários vindos de simples e rústicas garagens. Essa idolatria, no entanto, deixa de lado uma revisão histórica dos fatos, sob o prisma de Chang, a de que muitas dessas empresas tech, para atingir uma exponencialidade, se valeram de medidas nada hostis, para depois chutarem a escada quando atingiram um grau de encastelamento.

O Airbnb não fez muito diferente. Brad Stone, em The Upstarts: How Uber, Airbnb, and the Killer Companies of the New Silicon Valley Are Changing the World, cita que a famosa plataforma de compartilhamento de espaços ociosos fundada por Brian Chesky, Joe Gebbia e Nathan Blecharczyk em São Francisco, na Califórnia, pôs em prática planos inteligentes, e um tanto obtusos, para acabar com a vantagem da Craigslist, então uma plataforma de anúncios gratuitos fundada em 1995. Um deles foi criar um mecanismo que automaticamente enviava um e-mail para qualquer um que tivesse postado um imóvel para alugar na Craigslist, mesmo que essa pessoa especificasse que não queria receber mensagens não solicitadas. A prática, que tinha como objetivo capturar clientela com a base no banco de dados do concorrente, é conhecida como black hat, e não é difícil de imaginar que a agora gigante Airbnb, ameaçada de sofrer prática semelhante de um concorrente, não desistirá de adotar mecanismos sofisticados de proteção de sua gigantesca base de dados ou que seja simpática ao advento do General Data Protection Regulation (GDPR ou Regulamento Geral de Proteção de Dados), a lei de proteção de dados europeia. De outro lado, dificilmente esse, digamos, truque, que permitiu um gatilho para justificar a exponencialidade da plataforma, será encontrado nos almanaques que citam a sua trajetória exuberante e famosa.

Vamos a mais exemplos. Segundo publicação do The Huffington Post, a Google e a Intel celebraram um acordo judicial, com bases sigilosas, contra uma ação coletiva em que se questionava a conspiração dessas empresas para impedir que seus engenheiros e trabalhadores de tecnologia, altamente qualificados, fossem procurados e recrutados com ofertas de trabalhos milionárias de um e de outro lado. Mas, lá atrás, antes mesmo dessas empresas atingirem um patamar de liderança, era prática corriqueira uma literal dança das cadeiras entre elas. Uma debandada de funcionários da Apple para a Google, por exemplo, resultou num ataque virulento de Steve Jobs contra o ex-CEO do Google, Eric Schmidt, como também conta Walter Isaacson na biografia, autorizada, de Jobs.

As palavras do professor Chang e de Lemos ainda se encaixam com perfeição numa das maiores disputas judiciais envolvendo design, patentes e direitos autorais entre os gadgets da Apple e da Samsung. Os processos criativos dos famosos Macintosh, iPod, iPad e iPhone, por exemplo, tomaram como base ou se aproveitaram de criações intelectuais já existentes, ignorando, até mesmo, os direitos da propriedade intelectual de terceiros. O Vice-Presidente de Design da Apple, o inglês Jony Ive, é declarado fã do desginer alemão Dieter Rams, cuja relação de semelhança com àqueles designs é flagrante. Agora, no topo, a gigante americana, líder de pedido de registro de patentes na United States Patent and Trademark Office, repudia qualquer tentativa semelhante do que intitulam aproveitamento parasitário dos seus concorrentes, não poupando esforços judiciais e vigilantes contra qualquer tentativa de ofuscamento do brilho da famosa maçã. Como visto, do zero ao topo, é preciso de atalhos e de derrubada da escada.

Chutar a escada tem, também, forte relação com a defesa da livre concorrência e a mão invisível de Adam Smith. Segundo o teórico do liberalismo econômico, os indivíduos normalmente tomam melhores decisões se deixados a agir por conta própria, sem a mão opressiva do governo conduzindo suas ações. Logo, participantes da economia são motivados por seus próprios interesses e a mão invisível do mercado conduz esses interesses de maneira que seja promovido o bem-estar geral. Mas não foi bem assim na Índia. Segundo a Business Insider, a Uber tem sofrido acusações de praticar dumping no mercado indiano, reduzindo preços de tarifas afim de prejudicar startups nacionais do mesmo segmento, como a Ola e a Flipkart. Estas, por sua vez, não conseguem concorrer com o poder de barganha da gigante americana.

O caso dá margem para uma situação ambígua, na medida em que a Uber estaria se aproveitando do seu tamanho para praticar competição predatória local, em um típico caso de violação ao princípio da livre concorrência e ao level playing field, ou seja, nas condições mínimas de mercado que permitiriam uma disputa justa entre as empresas. Mas, por outro lado, estaria agindo em livre concorrência, oferecendo condições melhores para seus consumidores. Nessa interpretação, o protecionismo recairá em favor da Ola e Flipkart, que se valeu de inovações de circunvenção, ou seja, em um ambiente até então de pura liberdade para, agora, chutar a escada e recorrer à intervenção estatal como forma de regular o mercado indiano e tentar frear o ímpeto da Uber. A mão invisível, portanto, é relativa e de conveniência.

A quinta startup a chutar a escada, na verdade, foi fruto de um processo, clássico, de aquisição, por uma empresa tradicional, o movimento do spin-in. A compra do Skype, pela Microsoft, por um caminhão de dinheiro, revelou que uma empresa pirata se renderia ao establishment. A startup foi fundada pelos mesmos criadores do Kazaa, um antigo programa de compartilhamento descentralizado de arquivos musicais, pós Napster. A influência tecnológica serviu de base para o Skype, cujo nome original era Sky peer-to-peer. O movimento é típico em inovações tecnológicas, ou seja, quando a tecnologia surge é considerada disruptiva e, algum tempo depois, legitima-se e se torna cultuada. Não foi à toa que o serviço, antes free, passou a ser freemium, e quase desaparecendo nos diversos produtos da Microsoft e engolida pelo Zoom na pandemia.

Mas como as Big Techs estão chutando a escada?

Em primeiro lugar, claro, cultivando um verdadeiro exército de advogados, infiltrados como agentes de políticas públicas, os chamados advocacy das Big Techs, ou seja, inseridos no tecido legislativo, de modo a se criar ou não se permitir a criação de normas que possam contrariar os respectivos modelos de negócios. Quem explorou a fundo esses bastidores foi o The Intercept, comparando o movimento, intitulado Bancada do Like, com a Bancada do Agronegócio, na medida em que o modus operandi seria o mesmo. Em segundo lugar, na própria opinião pública, promovendo-se um autêntico clamor popular quando um legislador formula alguma lei ou quando um juiz profere uma sentença que contrarie determinado produto ou serviço explorado pelas empresas tech líderes do mercado. Nesse sentido, não é difícil encontrar críticas retumbantes, até mesmo uma catarse quando, por exemplo, o Uber é condenado na justiça trabalhista em razão do reconhecimento de vínculo laboral com os seus motoristas ou quando o Supremo Tribunal Federal reconheceu a autonomia dos condomínios em limitar a atuação do Airbnb em imóveis residenciais. Já um terceiro aspecto envolve a avaliação do custo de transação. Mais vale a adoção de um recurso de imitação de determinado produto ou serviço do que o investimento em pesquisa e desenvolvimento. São conhecidos como imovadores, ou seja, empresas tidas como inovadoras, mas que não renunciam ao recurso de imitação. Foi assim entre a Apple vs. Xerox Parc, no episódio conhecido como o maior roubo da história.

A seleção dos casos acima, enquanto startups, foi meramente sugestiva. Uma pesquisa mais apurada multiplicaria esse número. Porém, a pergunta que vai ficar sem resposta e, quem sabe, tema para um outro artigo: qual será a próxima startup a se tornar uma big tech a chutar a escada?


Este artigo foi produzido por Helder Galvão, advogado, cofundador do N8, professor na graduação e coordenador na pós-graduação da FGV Rio, e colunista da MIT Technology Review Brasil.

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