Se você quer a sua empresa parecida com a Apple, esqueça os métodos ágeis e experimente a gestão por liberdade
Humanos e tecnologia

Se você quer a sua empresa parecida com a Apple, esqueça os métodos ágeis e experimente a gestão por liberdade

Embora muito se estude sobre a cultura das empresas, sobre o Vale do Silício ou sobre as “Big Techs”, ainda são pouco difundidas as ideias de liberdade empresarial, aquelas em que não há o “comando e controle” dos chefes, nem os job descriptions, muito menos o detalhamento de processos ou os especialistas em técnicas ágeis de se trabalhar.

Uma das mais importantes características da Apple, segundo Steve Jobs, era ser uma “empresa conduzida por ideias, não por hierarquia”. Segundo ele, “as melhores ideias têm que vencer, senão as pessoas boas não ficam”.  

Jobs descrevia a Apple como uma empresa incrivelmente colaborativa, onde não existiam, por exemplo, comitês de aprovação. Lá “uma pessoa cuida do novo sistema operacional, outra do novo Mac, e todas elas se encontram três horas por semana”. Cada pessoa cuidava de uma coisa, e todas tinham autonomia para colocar suas iniciativas na rua.  

O trabalho em equipe, concluía Jobs, era baseado na confiança: “Não se confere o que os outros estão fazendo, mas acredita-se que farão o que precisa ser feito”, dizia.  

Quando a Apple tentou contratar gestores profissionais, Jobs se decepcionou, porque essas pessoas “sabiam gerir, mas não sabiam fazer”. Segundo ele, “os melhores gestores são aqueles que não querem ser gestores, mas que assim se tornaram, porque ninguém saberia entregar tão bem quanto eles“.  

Esta última característica, em que os “não gestores” lideram melhor as iniciativas do começo ao fim, construindo times e processos ao redor delas com o tempo, é a mais marcante nas empresas que seguem o conceito de liberdade empresarial.  

Muito antes da Apple  

A W.L. Gore Associates é uma multinacional com vendas anuais acima de US $3,5 bilhões, presente em 80 países, com 10 mil colaboradores e mais de 50 anos. Famosa pelos tecidos antivento e à prova d’água Gore-Tex, também fabrica desde dispositivos médicos que tratam aneurismas até a tecnológica cobertura translúcida do estádio de Wimbledon.  

Em seu site, destaca o modelo de liberdade empresarial, dando a ele o nome de “estrutura de treliça”, e segue descrevendo o trabalho como “um ambiente baseado em equipe que incentiva a iniciativa pessoal e a comunicação pessoal entre todos os associados, como são conhecidos os funcionários”.   

Como tudo começou 

 Após 17 anos trabalhando na DuPont, na área de pesquisa, Bill Gore testemunhou a descoberta do Teflon – polímero que evita que as comidas grudem nas panelas. Enquanto a DuPont perseguia a patente e focava em vender apenas a commodity, Bill acreditava no potencial desse material para ser isolante em cabos de eletricidade. 

 Como a DuPont era uma empresa química e sem os conhecimentos (nem interesse) em elétrica, Bill (na época com 46 anos e pai de quatro filhos) saiu de lá, – pagando pelo licenciamento de uso da patente – criou sua empresa e procurou pessoas, com o conhecimento que ele não tinha (eletricidade, cabos etc.), para produzir e comercializar esses produtos.  

 Vender cabos com isolamento deu certo, mas, na opinião do fundador, o segredo do enorme sucesso da empresa foi a gestão por liberdade. 

Assim como ele procurou “pessoas de elétrica” para aquele projeto inicial, todos os funcionários, desde então, se unem procurando especialistas, criando processos e novas estruturas para suas ideias. Nada de cargos, hierarquia, processos ou job descriptions preestabelecidos.  

Sua grande ambição não era fabricar cabos, mas mudar radicalmente a forma como as pessoas trabalham, tão forte, a ponto de eliminar os cargos da empresa, dando a todos os funcionários o cargo de associado.   

Associados não seguem um organograma de hierarquia. Sua senioridade é medida por um “pote de reputação” e por um conhecimento chamado de “altura da água”, em que os menos experientes devem procurar conselho dos mais experientes quando sentem que há risco de, nos seus projetos, o “furo no casco do barco” ficar abaixo da linha da água, afundando todos. 

O exemplo da corda de guitarra 

 Dave Meyers era um associado da W.L Gore que trabalhava na divisão de equipamentos médicos. Ele pensou em usar o Teflon para cordas de guitarra, evitando o problema da oxidação que acontece com as cordas ao longo do tempo, acelerada pela sujeira e pelo suor das mãos dos guitarristas. 

 Como Dave não tocava guitarra, foi atrás de outro associado que tocava. Este se encantou com a ideia e entrou no projeto. Assim, seguiram pessoas de marketing, vendas, financeiro, distribuição, etc. 

É como se todo associado fizesse constantemente pitches das suas ideias conforme os produtos amadurecem e precisam de novos especialistas. 

Hoje, a W.L. Gore detém 1/3 do mercado mundial de cordas de guitarra.  

O mesmo sentimento de que “ninguém faria tão bem quanto ele”, presente na Apple, motivou Dave e as pessoas que o seguiram com o tempo.  

Por que empresas como Apple e W. L. Gore ainda são raras no mundo? 

Em 1960, Douglas McGregor escreveu o livro “O lado humano das empresas” e lá sugeriu dois tipos: as empresas Tipo X nascem da premissa de que as pessoas são inerentemente preguiçosas e precisam de supervisão para produzir. Nelas é criada uma hierarquia clara, cadeias de comando e chefes dizendo aos funcionários o que fazer. Os trabalhadores só produzem se controlados. 

Já nas empresas Tipo Y assegura-se que, caso sejam respeitados, os funcionários serão éticos, automotivados e disciplinados. A má gestão é a única culpada quando a força de trabalho se encontra desmotivada e pouco interessada.   

McGregor acreditava que, com o tempo, as empresas Tipo Y seriam a maioria no mercado, enquanto as Tipo X praticamente iriam desaparecer. 

Para sua tristeza, não foi o que aconteceu. 

Best-Seller 

No livro “Freedom.inc”, ainda sem tradução em português, Isaac Getz e Brian Carney estudam diversas empresas com gestão por liberdade. Quando lançado (original em Francês), ele ficou oito meses seguidos como o livro de negócios mais vendido na França. O livro fala sobre a cultura da liberdade e conta as histórias da Gore-Tex, Favi (fabricante de peças para carros, hidráulica e indústria), Richards (hoje TRG – agência de propaganda), entre outras. 

 Cada uma dessas empresas, a seu modo, adota a liberdade empresarial do seu jeito. Na Richards, por exemplo, o prédio, onde mais de 500 funcionários trabalham, foi construído com uma enorme área aberta ao centro, com rampas grandes e espaçosas para que todos pudessem se comunicar indo um até a mesa do outro. Essa liberdade para o fluxo de ideias a partir de encontros é peça-chave para a criatividade da TRG.  

Segundo Isaac e Brian, o que leva as empresas Tipo X ainda serem maioria no mercado é comparável aos desafios de uma dieta para emagrecer: os prazeres do consumo imediato são óbvios para os nossos sentidos, enquanto seus efeitos colaterais de longo prazo são negligenciados.   

A burocracia também é assim: a necessidade de controlar funcionários no curto prazo por gestores inseguros esconde uma série de custos ruins no longo prazo: do fraco resultado financeiro até a saúde das pessoas. 

No Brasil  

A Suno é uma agência de propaganda independente. Lançada em 2017 hoje já é uma das maiores e mais respeitadas do país, ganhando o prêmio “Agência do Ano” em 2022. 

A Suno trabalha com o conceito de biomas: equipes são formadas dinamicamente de acordo com a característica do job. Embora existam pessoas de mídia, criação e planejamento, elas não são agrupadas em departamentos. Elas se reúnem em “Biomas Job” conforme o desafio do cliente naquele momento.  

Na Suno, é fácil notar na assinatura de e-mails das pessoas, o mesmo cargo ‘CREATOR’. Assim como nos ‘associados’ da Gore-Tex, há o entendimento de que cada um com sua especialidade pode contribuir para algo maior, independentemente do cargo. 

Em poucos anos a jovem agência já tem grandes clientes. Entre eles: Santander, Netflix, Johnson & Johnson, YDUQS, Yamaha, Eudora e iFood. 

Como chegar lá 

Baseado nas lições compartilhadas por Isaac Getz e Brian Carney em Freedom.inc: 

 

  1. Parar de falar e começar a ouvir: a partir daí, remover todos os símbolos e as práticas que impedem os funcionários de se sentirem iguais. Sabe o famoso organograma? Lixo. 
  2.   Difundir abertamente e de forma ativa a visão da companhia para que as pessoas abracem a mesma com o tempo. O reforço positivo evita que – em momentos de desânimo – profissionais se apeguem às velhas ideias e comecem a se proteger através de jogo político, ou levantando muros e criando departamentos.  
  3.  Parar de motivar as pessoas. Melhor do que criar curativos, como eventos, offsites, prêmios e escorregadores coloridos, deve-se criar um ambiente em que as pessoas possam dirigir elas mesmas e assim encontrar motivação. A realização através da autonomia que as pessoas possuem é infinitas vezes maior do que geladeiras e chocolates de livre acesso. 
  4.  Ficar alerta: o preço da liberdade é a eterna vigilância para que a cultura permaneça. Os autores citam uma frase de Bob Davids: “Uma gota de urina numa sopa é muita coisa – e você não consegue tirá-la”. 

Esse artigo foi produzido por Fernando Teixeira, Cofundador da KORO Martech e colunista da MIT Technology Review Brasil.

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