Viralizou no Twitter o uma pesquisa feita em 2021 por analistas juniores sobre o primeiro ano de trabalho deles na Goldman Sachs. Os resultados expuseram a cultura de trabalho do banco de investimentos, com alguns jovens funcionários temendo por sua saúde mental e descrevendo suas semanas de trabalho como “desumanas”. Em média, eles trabalhavam 95 horas por semana, dormiam 5 horas por noite e iam dormir por volta das 3 da manhã. Todos reportaram prazos irrealistas, eram ignorados em reuniões e até assediados moralmente. Isso refletiu nas suas vidas pessoais e na sensação de bem-estar. Se as condições de trabalho não mudassem nos próximos 6 meses, a maioria disse que seria improvável que permanecessem na empresa. Em outros setores, como o de tecnologia, o excesso de trabalho é comemorado, embora as pesquisas mostrem claramente que trabalhar mais de 55 horas por semana não contribui em nada para melhorar o desempenho no trabalho, segundo John Pencavel, professor de Economia da Universidade de Stanford.
Uma pandemia cada vez menos silenciosa
Mesmo antes da Covid-19, a prevalência de questões relacionadas à saúde mental entre os adultos estava aumentando conforme relatórios do Mental Health America. Em um ano em que a pandemia se estende além do esperado, o trabalho em casa torna-se uma realidade. Muitas pessoas estão vendo uma intensificação extrema de suas cargas de trabalho.
A gente sente e os dados mostram: os dias de trabalho estão 34% maiores, segundo dados da Deloitte e Worklytics. Ganhamos flexibilidade, mas precisamos traçar limites. Além de toda a carga emocional da pandemia, esses números alertam para o burnout no ambiente de trabalho, com dados alarmantes. Em Abril de 2020, havia 2.6 bilhões de pessoas em lockdown no mundo e 85% afirmaram que o bem-estar diminuiu. Além disso, 62% das pessoas experimentaram burnout “frequentemente” ou “muito frequentemente” nos 3 meses anteriores. Apenas 21% avaliaram seu bem-estar como “bom” e apenas 2% avaliaram como “excelente”.
Esses dados monstram apenas a ponta do iceberg de um problema que não irá se resolver com a vacina. Pelo contrário. Estudos sobre saúde mental após a Segunda Guerra Mundial mostram que as questões emocionais e mentais que afetam nosso bem-estar persistem por até 5 anos após o término da guerra. Fazendo um paralelo com a pandemia, precisamos endereçar rapidamente a saúde mental para que essa questão não se perpetue por muito tempo. A pandemia legitima essa questão nas empresas, o que exige uma resposta rápida e efetiva das organizações, que levantam preocupações não somente com os colaboradores, mas sobre como a saúde mental afeta a performance e os resultados da empresa. Estudos e pesquisas da Gallup mostram que o bem-estar dos colaboradores impacta a lucratividade da empresa.
Uma pesquisa da Universidade de Stanford, na Califórnia, mostrou que o stress no ambiente de trabalho afeta os custos de saúde que chegam a US$ 190 bilhões por ano. Além disso, a pesquisa afirma que 615 milhões de pessoas sofrem de ansiedade e depressão e conforme um recente estudo da OMS, isso custa US$ 1 trilhão em produtividade nos EUA. Claramente, o burnout impacta a produtividade das empresas.
Desde o início da atual crise, empresas rapidamente agiram
Programas de assistência aos funcionários, como psicoterapia, que já eram oferecidos por muitas organizações antes da pandemia, se tornaram ainda mais comuns. Treinamentos online triplicaram. Aplicativos de meditação, aulas de yoga e atividades físicas online para grupos, treinamentos com a temática da saúde mental e gestão das emoções, ou de técnicas específicas para lidar com uma carga de trabalho excessiva pipocaram como soluções rápidas e prontas, que tratam o sintoma e não as causas. Para aquelas organizações em que as pessoas não podiam trabalhar de casa, a solução foi presencial. A Amazon criou o Zenbooth, uma pequena cabine para os funcionários aprenderem técnicas de mindfulness e escaparem do trabalho.
Apesar de ser um importante primeiro passo para cuidar da saúde mental dos colaboradores, essas soluções focam apenas na superfície dos problemas. Assim como um band-aid, que utilizamos para proteger o machucado, mas não para prevenir o que causou o machucado. A evidência de que estas ações isoladas não resolvem, vem do aumento dos relatos de que a participação dos colaboradores nas atuais intervenções é baixíssima, exige uma demanda enorme de marketing interno para aumentar a participação e é difícil mensurar o retorno sobre o investimento.
A Organização Mundial da Saúde define saúde como “o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não meramente a ausência de doenças ou enfermidades”. Logo, as soluções propostas para endereçar os desafios atuais devem levar em consideração esta abordagem integral de bem-estar e o contexto que contribui para o mesmo.
Existem hoje diversos frameworks que estabelecem formas de medir o bem-estar. Um deles foi definido pelo Human Flourishing Program, da Universidade de Harvard e mede o bem-estar em seis dimensões: saúde física e mental, felicidade e satisfação com a vida, conexão social, significado e propósito, caráter e virtude, e bem estar financeiro. Ao contrário do que se pensa, bem estar é um conceito sistêmico, que vai além do indivíduo. Portanto, para obter o impacto sustentável de soluções organizacionais para a atual crise de saúde mental (e outras), é necessário investigar quais fatores sistematicamente impactam estas seis dimensões dos indivíduos nas organizações. O que é impossível alcançar com um app, que sozinho não endereça as dimensões de bem-estar e trata apenas do sintoma.
No ambiente de trabalho, isso significa investigar como o trabalho é intencionalmente desenhado, ou seja, quais as tarefas, atividades, responsabilidades do indivíduo e como ele se relaciona com outros colaboradores. Além disso, qual é a cultura predominante na empresa e quais os valores e crenças existentes na organização que criam um ambiente psicologicamente seguro e propício para a produtividade com felicidade. E ainda, como as relações interpessoais se estabelecem nas empresas de forma que possam existir confiança, pertencimento, colaboração em busca de um objetivo comum.
Em mais de cinco anos avaliando o estado de bem-estar de mais de 20.000 pessoas em diferentes organizações e as condições que sistematicamente contribuem para indivíduos prosperarem, o Sustainability and Health for NetPositive Enterprises, instituto de pesquisa de Harvard, vem demonstrando por meio da avaliação direta dos indivíduos como as condições sociais, psicológicas, e físicas no ambiente de trabalho influenciam diretamente seu bem-estar e também sua produtividade, engajamento e satisfação com o trabalho. O instituto busca entender os recursos no trabalho que influenciam o bem-estar individual e como o nível de bem-estar geral da organização influencia as métricas de negócios, como taxa de produtividade, engajamento, absenteísmo e rotatividade.
Continuamente a pesquisa demonstra que um dos fatores que mais afeta o bem-estar é a cultura de cuidado, que inclui confiança, respeito e equidade. Estes são elementos básicos para criar ambientes com segurança psicológica, onde indivíduos possam prosperar integralmente e, consequentemente, atingir um estado de bem-estar físico, mental, social e financeiro.
Esse é um enorme desafio das áreas de Recursos Humanos das empresas, num esforço contínuo de transformar a cultura das organizações junto com as lideranças. Um desafio e uma oportunidade. O antigo paradigma de separação entre vida pessoal e profissional foi desconstruído com o trabalho de casa. É impossível não considerar todos os papéis que um colaborador cumpre na sua vida. Compreender as relações recíprocas entre as áreas da vida e do trabalho é fundamental para projetar intervenções para melhorar a saúde integral, o bem-estar e a segurança no trabalho. Além disso, compreender o ecossistema e suas áreas de impacto e as relações entre vida e trabalho é importante para encontrar maneiras de intervir e promover a saúde mental e o bem-estar nas organizações. Sem essa visão holística, os pontos de alavancagem para otimizar o bem-estar podem ser inadequados por uma ênfase exagerada nos sintomas. A Southwest, por exemplo, fez uma pesquisa para ouvir os colaboradores e entender o que era diversidade e inclusão para eles no trabalho. A empresa entendeu que as pessoas queriam ter “seu lugar de participação assegurado” e desenhou processos de tomada de decisão com mais representatividade de sua população.
O mundo está longe de desacelerar. As variáveis que afetam os negócios não vão diminuir. A velocidade e as mudanças continuam adiantando o futuro que chega mais rápido do que nunca, acelerando tendências e ditando como o mundo vai funcionar. A pandemia de Covid-19 é só o reforço da incerteza. A liderança precisa se adaptar e estar confortável com a incerteza.
Experimente
Portanto, voltar às perguntas mais fundamentais que endereçam as necessidades humanas em relação ao trabalho e como o trabalho está desenhado para nutrir tais necessidades. Por exemplo, como a dimensão de conexão social do bem-estar é nutrida por meio do trabalho? As reuniões são rotinas corporativas que podem propiciar confiança, respeito e equidade e promover a conexão no trabalho e com o trabalho. Então, algumas perguntas podem ajudar a refletir sobre as práticas de conexão para criar um ambiente com uma cultura de cuidado.
o Eu tenho clareza do objetivo de todas as reuniões em que estou presente?
o Todos os presentes têm a mesma clareza?
o Todos têm clareza de seu papel ou o que é esperado de cada um?
o Todos se sentem confortáveis em contribuir?
o A reunião é desenhada para acolher os diferentes estilos de comunicação e criação e ouvir todos os participantes?
Estas simples perguntas endereçam as condições sociais, psicológicas, e físicas no ambiente de trabalho que afetam o bem-estar dos indivíduos e times. Ao investir os esforços em criar rituais organizacionais para promover continuamente essas condições, o trabalho deixa de ser um fardo. O segredo está na cultura organizacional e nas relações humanas no trabalho, que são muito mais poderosas do que um app para a promoção da saúde mental nas empresas.
Este artigo foi produzido por Heloisa Jardim, pesquisadora em Harvard, empreendedora, Mestre em Saúde Pública e em Economia e Sustentabilidade; em parceria com Tonia Casarin, empreendedora, palestrante e pesquisadora em liderança, comportamento organizacional e bem-estar.