Q+A Angélica Carlini – Nova lei para antigos problemas da saúde suplementar
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Q+A Angélica Carlini – Nova lei para antigos problemas da saúde suplementar

Modernizar a Lei dos Planos de Saúde, de 1998, é transpor questões que perduram na história da saúde suplementar. Além das divergências dentro do setor, um grande desafio é convencer a sociedade de que medidas impopulares visam à sustentabilidade do sistema. 

Depois de chegar aos 60 anos, uma beneficiária de plano de saúde no Brasil tem o valor da sua mensalidade congelado, no que diz respeito ao reajuste de preço por faixa etária, ficando sujeita a pagar apenas o aumento decorrente do reajuste anual ao longo do restante da vida. Mas, provavelmente ao contrário da maior parte da população idosa do país, ela estaria disposta a pagar um pouco mais com o intuito de baratear o custo do acesso à saúde suplementar para os mais jovens.   

Por ter maior probabilidade, em razão da idade, de usar serviços que custam mais caro para a operadora que administra o produto contratado, como a realização de exames mais complexos, internações hospitalares e tratamentos de alto custo, ela acredita que essa seria uma das soluções viáveis para a garantia da sustentabilidade do setor no futuro, considerando o cenário de envelhecimento populacional.   

A visão é baseada na lógica do mutualismo, um pilar sustentador desse sistema. De maneira simplificada, funciona como um ciclo: os usuários pagam uma mensalidade para terem acesso ao serviço assistencial, as operadoras dos planos de saúde pagam os prestadores desse serviço – como hospitais, clínicas e laboratórios – e o custo é diluído entre os usuários. Quase 50 milhões de pessoas são beneficiárias de planos de assistência médica no Brasil, segundo dados mais recentes divulgados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), em julho deste ano.   

Outro caminho possível, para essa mesma beneficiária, seria o da subsegmentação da cobertura ofertada pelas operadoras, permitindo a prática de preços menores quando houver a contratação planos mais limitados. Nesse caso, em vez de pagar pela assistência completa, da atenção primária à alta complexidade, um jovem saudável poderia pagar apenas por um pacote básico. Em compensação, uma pessoa mais velha poderia ter de recorrer a um pacote mais robusto.   

Além de ser uma idosa economicamente ativa, Angélica Carlini, que expôs as ideias descritas acima, é uma entusiasta da modernização da Lei 9656/98, conhecida como Lei dos Planos de Saúde. Dos seus 62 anos, mais de 25 foram dedicados à área da saúde. Atualmente, ela é professora na Universidade Paulista (Unip) e coordenadora de Direito da Escola de Negócios e Seguros, cujas mantenedoras são entidades representativas do setor de seguros.  

Em entrevista à MIT Technology Review Brasil, a advogada avalia que uma nova lei para regulamentar a saúde suplementar precisará superar, além de novos desafios trazidos pela digitalização acelerada dos últimos dois anos, os problemas resultantes da sua própria criação. No entanto, para isso, a sociedade terá de encarar questões difíceis de serem compreendidas – a exemplo do debate sobre a taxatividade do rol de procedimentos de cobertura obrigatória, cuja impopularidade teve destaque nas redes sociais recentemente, com o uso da hashtag “rol taxativo mata”. Caberá ao setor agir para explicá-las.   

“Talvez seja preciso conversar de uma forma mais desarmada, porque há uma certa tendência à demonização do setor de saúde suplementar, a tratá-lo como um setor que não deve ser respeitado porque ganha dinheiro com saúde, o que é uma inverdade. O setor não ganha dinheiro com saúde. Para que você não compre individualmente, o setor organiza um grupo que compra junto, e aquilo que você paga de mensalidade é infinitamente mais barato do que você pagaria se você fosse comprar sozinho. Então, o setor ganha dinheiro com a racionalidade da prestação de serviço”, afirma.  

A alteração da Lei dos Planos de Saúde continua em fase de discussão no Congresso Nacional. Em 2021, foi criada uma comissão especial na Câmara dos Deputados para debater o Projeto de Lei 7419/06 e mais 248 projetos apensados, o que representa mais um capítulo de uma longa história.   
 

MIT Technology Review Brasil: O quão urgente é a modernização da Lei 9656/98?  

 Angelica Carlini: É urgente, mas ser urgente não significa que ela deve ser feita de forma precipitada. É preciso respeitar todo o arcabouço técnico que sustenta a operação de saúde suplementar no Brasil e em todo o mundo, porque ela não funciona de uma forma no Brasil e de forma diferente na Alemanha, que tem saúde suplementar; na Inglaterra, que tem ótimos serviços de saúde pública, mas tem seguros privados, digamos assim, funcionando na sustentação de uma mutualidade formada a partir de cálculos atuariais que olham para as estatísticas do passado e calculam as probabilidades para o futuro.  

É necessário atualizar a Lei 9656/98 e talvez até — se me permite a ousadia — corrigir algumas falhas que ela tem desde o seu nascimento. Não precisamos encontrar culpados por essas falhas, porque a situação era difícil para o legislador. Até 1998, o único setor regulado em saúde era o de seguros, regulamentado pelo Decreto-lei 73/66 e fiscalizado pela Susep [Superintendência de Seguros Privados]. Os demais setores que já existiam, de medicina de grupo, cooperativas, autogestão, filantrópicas, não eram regulados. O legislador de 1998 teve que colocar todo mundo no mesmo o mesmo invólucro, sendo que alguns players não eram regulados e outros eram hiper-regulados. Os seguros já tinham, inclusive, a necessidade dos ativos garantidores para montar a seguradora, para garantir que poderiam sustentar sua operação. Essa operação tinha solvência e sustentabilidade, e os outros não tinham isso. Imagina dizer para as empresas de medicina de grupo, que já trabalhavam desde 1950, que elas precisavam ter ativos garantidores e seguir regras? O legislador fez o que ele podia fazer de melhor naquele momento, mas já não era bom naquela época.   

Depois desse tempo, de 1998 para cá, a saúde mudou. Quem era o médico de 1998 e quem é o médico agora? Como era o hospital em 1998 e como é o hospital agora? Como eram os equipamentos, a tecnologia, o conhecimento? Decididamente, nós precisamos de uma nova lei. Já precisávamos antes da pandemia, agora, então, com aquilo que a pandemia trouxe, como a telessaúde, por exemplo, nós precisamos muito. Mas, vale reforçar: embora a mudança seja urgente, ela não pode ser feita de maneira açodada. Nós precisamos respeitar os aspectos técnicos, os aspectos jurídicos e os aspectos de equilíbrio econômico-financeiro que devem reger as operações na área de saúde suplementar.    


MIT Technology Review Brasil: Que aspectos a lei não resolve e poderia resolver? Você citou a questão da telessaúde, que é mais atual, mas quais gargalos permanecem ao longo de todos esses anos? 

Angelica Carlini: Eu tenho a sensação concreta de que a segmentação é um dos grandes problemas que nós temos na Lei 9656/98. Ela criou uma segmentação bastante engessada. E por que ela fez isso? Porque o Brasil havia adotado, em 1988, na Constituição Federal, o sistema de saúde universal e para todos. Saúde gratuita, aparentemente sem restrições. Você teria, então, as coberturas de atenção primária, de atenção secundária e as coberturas mais complexas no guarda-chuva do Sistema Único de Saúde (SUS). Bom, se houver uma segmentação muito grande na área de saúde suplementar — pensou o legislador — pode ser que existam operadoras de planos de saúde que forneçam apenas o básico, por exemplo, a atenção primária à saúde, e entreguem aquele beneficiário para fazer o atendimento mais complexo no SUS. Na visão dele, isso não seria bom, porque as operadoras ficariam, supostamente, com a parte mais fácil e entregariam a parte mais difícil para o SUS. Então, nada feito. A saúde suplementar tem que oferecer tudo. Qual foi o resultado? Se você pegar números da ANS [Agência Nacional de Saúde Suplementar], há em torno de 730 operadoras de planos de saúde no Brasil. As 10 primeiras, sem dúvida, são muito poderosas. Mas, se você olhar para as outras 720, você vai encontrar operadoras que têm 5 mil vidas, 8 mil vidas, 10 mil vidas. Como é que uma operadora com 10 mil vidas, no Brasil profundo, vai oferecer tudo o que está na pauta do chamado plano referência, que tem atenção primária, secundária e de alta complexidade? Tudo o que está no CID 11 [Catálogo Internacional de Doenças] da Organização Mundial da Saúde (OMS) terá que ser coberto pelas 10 maiores operadoras e por todas as outras.  

Você pode pensar que uma operadora de saúde com 8 mil vidas não é economicamente viável. Mas, então, o que fazer no Brasil profundo, onde o SUS chega de forma precária? Aquela estrutura, que tem às vezes um hospital, é a mais solicitada, porque tem um clínico, um pediatra, um cardiologista, um ortopedista. É um único hospital que tem esses profissionais, mas que é obrigado a atender um caso de neuropediatria, por exemplo, ou um caso de oncologia. Como fazer? Se não houver possibilidade de uma subsegmentação, não será possível atender de maneira satisfatória aquele que quer contratar. Precisamos segmentar, oferecer aquilo que as pessoas mais necessitam e aquilo que elas podem pagar. Por exemplo, uma pessoa com idade entre 25 e 30 anos está mais preocupada com o atendimento ambulatorial do que com internação hospitalar, já uma pessoa de 40 a 60 anos está muito mais preocupada com o atendimento hospitalar do que com atendimento ambulatorial. Em uma idade mais avançada, tudo causa alguma preocupação, então a pessoa é imediatamente carente de um hospital.   

Outro ponto que precisamos pensar com clareza é que o Brasil estabeleceu que 60 anos é a idade para alguém ser considerado idoso. A partir de uma regra do Consu [Conselho de Saúde Suplementar], que depois foi substituída por uma regra da ANS, você pode fazer aumentos de mensalidade dos planos de saúde, a partir dos 18 anos do beneficiário, a cada cinco anos. O aumento aos 59 anos é o último permitido, porque aos 60 anos a pessoa é considerada idosa. Prevalece a aplicação do Estatuto do Idoso, que é posterior à Lei 9656/98 e é uma lei que retroagiu. Eu estou com 62 anos e o meu último reajuste por idade foi aos 59. Meu pai morreu com 74 anos, e a minha mãe está viva com 94 anos. Supondo que eu viva até os 85 anos, serão mais de 23 anos de assistência. Eu ficarei dos 59 anos aos 85 anos sem ter reajuste por idade e usando, sem dúvida, cada vez mais. Obviamente, para que o beneficiário de 60 anos não pague mais por faixa etária, o de 20 anos está pagando mais do que ele deveria pagar. Isso se chama pacto intergeracional. É uma solução da economia para que as coisas possam dar certo, para que possa haver equilíbrio econômico-financeiro. Mas será que a geração mais jovem quer pagar para os mais velhos? Será que não seria possível criar faixas de aumento de 65 anos, 70 anos, por exemplo? A Itália, de uma forma muito realista — embora não se possa comparar um país como a Itália, no centro da Europa, com países de economia emergente, como é o Brasil —, chegou à conclusão de que 75 anos é a idade para considerar alguém idoso. Nós precisamos ter coragem de encarar essa situação e também fazer diferenciações, é claro, porque uma pessoa que faz um trabalho intelectual chega aos 60 anos de uma forma, uma pessoa que faz um trabalho exclusivamente braçal chega de outra. Precisamos conversar sobre esses aspectos com mais clareza, de forma mais transparente.   

   

MIT Technology Review Brasil: Caberia propor, na nova lei, soluções para a regulação de inovações tecnológicas? 


Angélica Carlini: Eu tenho estudado bastante as novas tecnologias, e o meu principal viés de estudo é a regulação. Todos os que gostam do tema estão às voltas com o pensamento sobre como vamos regular a Inteligência Artificial (IA), de como vamos regular machine learning, de como vamos regular deep learning. Essas essas tecnologias todas têm uma característica muito desafiadora, que é a opacidade. Nós não sabemos como elas funcionam. Quando era mecânica e passou a ser eletrônica, quando passou a ser mecatrônica, nós sabíamos como funcionava. Nós conseguimos ver como funciona um braço robótico, mas como funciona a IA? Não sabemos. É uma programação de camadas de algoritmo, mas, lá dentro do computador, como é? O uso das novas tecnologias tem essa problemática. Elas não são transparentes. Portanto, qual vai ser a saída do regulador?  

Na Europa, está todo mundo apostando nos princípios e na ética. Não tem como fiscalizar. Você pode fiscalizar um veículo autônomo, dizer que ele vai ter que ter gestão de risco, por exemplo, mas uma parte foge ao nosso comando porque esses recursos tecnológicos aprendem sozinhos. Como regular algo que tem autonomia? É preciso estudar com profundidade esses princípios, essas diretrizes éticas que já estão sendo oferecidas pela OCDE [Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico], pelo parlamento europeu, que tem um estudo de diretrizes para o uso de robôs e tem um núcleo de experts que trabalha nisso.   

Atualmente, nós temos no Brasil uma comissão de juristas notáveis, presidida pelo ministro do STJ [Superior Tribunal de Justiça] Ricardo Villas Bôas Cueva, que tem como secretária uma jurista fabulosa, que é a professora doutora Laura Schertel Mendes. Eles estão comandando uma comissão formada pelo Senado Federal para discutir uma lei para a Inteligência Artificial no Brasil. É um estudo que está bem avançado, está crescendo, está sendo amadurecido. Lá, com toda certeza, estarão essas diretrizes e princípios, e nós vamos ter que adotar quando se tratar de tecnologia na área de saúde, fora a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), claro, que já tratou de proteger os dados sensíveis. Em relação ao timing, o que percebemos? O debate em torno da Lei de Inteligência Artificial está mais avançado do que o debate em torno de uma nova Lei dos Planos de Saúde, então devemos ficar sob o guarda-chuva das diretrizes gerais da Lei de Inteligência Artificial, como aconteceu com a LGPD.   

 

MIT Technology Review Brasil: Você disse que não se deve fazer mudanças precipitadas na Lei dos Planos de Saúde, mas ela já está sendo discutida no Congresso há muitos anos. Por que existe essa dificuldade de consenso?  

Porque, muito provavelmente, a cadeia de suprimentos da saúde suplementar é uma das mais complexas do setor econômico. Na cadeia produtiva da saúde suplementar, você tem desde o fornecimento de soro fisiológico, com o valor do litro em torno de R$ 16 a R$ 20, até o fornecimento de medicamentos que custam mais de R$ 6 milhões. Você tem os hospitais, você tem os médicos, você tem os laboratórios clínicos, você tem os laboratórios de imagem, você tem o fornecedor de oxigênio, você tem o fornecedor de dispositivos médicos implantáveis. Eu diria que a cadeia da saúde suplementar é coordenada pelo Buzz Lightyear: ao infinito e além! Não tem como mensurar. Todo mundo tem interesses e esses interesses são, basicamente, contrapostos. Fora isso, tem a introdução de novas tecnologias. Uma das coisas pelas quais o setor briga muito é pela a avaliação de tecnologia em saúde. As operadoras de planos de saúde administram recursos para comprar insumos dessa cadeia de fornecimento e, se essa administração de recursos não for muito bem feita, não tem como comprar ou tentar comprar. É isso que me parece, desesperadamente, que as pessoas precisam entender. Aliás, nem o SUS consegue dar tudo para todos. Tanto na saúde pública quanto na saúde privada há o mesmo problema quando se trata do fornecimento de insumos dessa cadeia, que, na minha avaliação, é uma das mais complexas do mundo econômico. Então, como é que se faz uma lei que agrade o médico e o hospital, que agrade a indústria farmacêutica, que agrade o fornecedor de oxigênio, que agrade o fornecedor de dispositivos médicos?    

 

MIT Technology Review Brasil: Qual deve ser a participação da ANS nesse processo, já que existem tantas divergências? 

O meu sonho é que a participação da ANS seja cada vez mais técnica e cada vez menos política. E começa com a indicação dos diretores. Sabemos que elas nem sempre obedecem ao requisito primordial, que é o conhecimento técnico. Passa por ter um quadro de funcionários em número suficiente e com a especificação técnica adequada, porque sem isso não vamos a lugar nenhum. Passa por ter uma política de transparência e de maior diálogo com a sociedade, inclusive para colocar claramente essas questões mais agudas, como a necessidade de ter limites no rol para que se possa fazer cálculos seguros para a mutualidade, para a solvência do fundo mutual. E passa por gerenciar, liderar de uma forma mais ativa a incorporação de novas tecnologias. Não só com o rol, mas com a intermediação na negociação entre os diferentes players, que muitas vezes poderiam comprar juntos. Por exemplo: “Qual é o medicamento necessário? Todas as operadoras vão ofertar o mesmo tipo de tratamento porque esse medicamento vai ser implementado, então vamos fazer um compartilhamento de risco aqui, mas eu estou liderando para que todas as operadoras venham e atuem juntas”. Nesse caso, seria para um produto específico, muito mais caro, que tem um forte impacto econômico-financeiro.   

Eu fico otimista em pensar que a agência caminha para isso. Temos uma Lei das Agências Reguladoras que é interessante, porque ela fala em abuso regulatório, fala da necessidade de análise de impacto regulatório. Ou seja, nós temos os instrumentos. A sociedade brasileira tem instrumentos para exigir, cada vez mais, um comportamento técnico da agência. Não é algo para ser feito apenas pelas operadoras. É preciso que a sociedade entenda porque nós temos que fazer essa discussão. E, nesse aspecto, eu não tenho dúvidas de que ainda temos muito o que melhorar na comunicação com todas as formas de mídia, com a sociedade, com os próprios fornecedores. Ainda temos muita saliva para gastar, muito diálogo para construir. Não se pode ter preguiça para conversar todos os dias, em todas as ocasiões.   

   

MIT Technology Review Brasil: E o setor, como deve se comportar?  

Olha, se tem uma coisa muito positiva e muito bonita de se ver é o quanto o setor se dispõe a dar esclarecimentos e a dialogar. Recentemente, foi criada uma comissão na Câmara dos Deputados, com vistas a discutir as mudanças na Lei 9656/98, e foram convocadas várias audiências públicas, um trabalho pesado. O setor estava presente em todas elas, apresentou números, apresentou dados, apresentou sugestões, apresentou a pauta que considera importante para o aprimoramento da lei. Talvez seja preciso conversar de uma forma mais desarmada, porque há uma certa tendência à demonização do setor de saúde suplementar, a tratá-lo como um setor que não deve ser respeitado porque ganha dinheiro com saúde, o que é uma inverdade. O setor não ganha dinheiro com saúde, o setor ganha dinheiro com prestação de serviços contratados para prevenção e tratamentos de saúde. Para que você não compre individualmente, o setor organiza um grupo que compra junto, e aquilo que você paga de mensalidade é infinitamente mais barato do que você pagaria se você fosse comprar sozinho. Então, ele ganha dinheiro com a racionalidade da prestação de serviço. Ele tem que fazer a prestação de serviço ser racional, mas mesmo assim tem gente que não entende isso. Rol taxativo mata? Ninguém sabe muito bem qual é o fundamento, mas usou a hashtag. Mas mata mesmo? Como mata? A incorporação sem análise mata, um rol exemplificativo mata. Por quê? Dessa forma, o médico tem liberdade para prescrever o que ele quiser e ele pode nem sempre prescrever o mais seguro. Nós somos o país da fosfoetanolamina, a chamada pílula do câncer. Ninguém sabia nada sobre isso e houve prescrição. Surgiu uma lei obrigando o fornecimento, houve decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) e até hoje não há uma evidência de que a fosfoetanolamina tem capacidade de resolver qualquer problema de portadores de células cancerígenas. Aliás, nos Estados Unidos, ela é apenas um suplemento alimentar. Então, nós precisamos conversar, a sociedade precisa conversar. Nós precisamos parar com tanta retórica quando se diz que saúde é um bem de todos. O direito não pode ser retórico. Precisamos de pessoas que decidam com base em evidências científicas, com base em racionalidade, de uma forma serena, pensando no coletivo. Compartilhar a responsabilidade com a sociedade faz parte disso.  

   

MIT Technology Review Brasil: Por fim, como a lei desatualizada impacta o beneficiário? 

Talvez a Lei 9656/98 seja a lei menos aplicada no Brasil. Quando chega no Judiciário — e infelizmente chega muita coisa no Judiciário —, na maioria dos casos, as decisões são com base no Código de Defesa do Consumidor ou na Constituição Federal. A Lei 9656/98 é pouquíssimo aplicada. Também são pouquíssimo aplicadas as resoluções normativas da ANS. Aliás, quase nunca você vai encontrar uma decisão judicial com base em uma resolução da ANS. Bom, a cada vez que você deixa de lado a lei e determina que alguém tem direito a alguma coisa que não estava prevista, você acaba de impactar economicamente o plano de saúde, porque houve retirada de um recurso do fundo mutual que não estava previsto, e ele vai ter que repor. E como ele vai repor? Aumentando a mensalidade. Então, ano a ano, a mensalidade aumenta em função da chamada sinistralidade. A sinistralidade é a utilização. Vou usar como exemplo um dos casos que acompanhei. Na Lei 9656/98 há uma previsão expressa de que a fertilização in vitro não é coberta. Quando uma decisão judicial diz que uma mulher de 48 anos tem direito a fertilização in vitro, quantas vezes ela quiser, quem está pagando por isso? Todas as outras pessoas que compõem o fundo mutual. É razoável? Há equilíbrio nessa decisão? Toda vez que desprezamos as regras, em um caso tão técnico, causamos prejuízo. Causamos prejuízo para quem está usando o plano e para quem vai contratar, porque vai ficar mais caro. E eu garanto que também causa prejuízo para quem nem vai conseguir contratar porque estará muito mais caro. O prejuízo é enorme quando há descumprimento das regras, as diretrizes que dão sustentação aos planos saúde. É muito ruim, triste e péssimo para a sociedade. O impacto é grande. 


Este artigo foi produzido por Manoela Albuquerque, repórter e editora de Saúde na MIT Technology Review Brasil.

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