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Em um subúrbio de Copenhague (Dinamarca), uma sala de aula da quinta série está tendo seu encontro semanal voltado exclusivamente para comer bolo, uma tradição comum nas escolas públicas dinamarquesas. Enquanto as crianças comem bolo de chocolate, a professora projeta um infográfico em um quadro branco: um gráfico de barras gerado por uma plataforma digital que coleta dados sobre como elas estão se sentindo. Construído para monitorar a “atmosfera emocional” semanal da sala de aula, os dados mostram que a média da classe foi de 4,4 em 5, e as crianças avaliaram muito bem sua vida familiar. “Isso é ótimo!” a professora exclama, levantando dois polegares no ar.
Ela então passa para um infográfico sobre higiene do sono. Aqui, os dados apontam que os alunos estão tendo dificuldades e a professora os convida a pensar em maneiras de melhorar seus hábitos de sono. Após conversarem brevemente entre si, as crianças sugerem “menos tempo de tela à noite”, “meditação antes de dormir” e “tomar um banho quente”. Eles então se comprometem coletivamente a implementar essas estratégias. Na hora do bolo da próxima semana, eles serão questionados se as seguiram ou não.
Esses tipos de inspeção baseadas em dados sobre o bem-estar estão se tornando cada vez mais comuns nas salas de aula da Dinamarca. O país há muito tempo é líder em infraestrutura e serviços online, classificando-se como a nação mais desenvolvida digitalmente na Pesquisa sobre Governo Eletrônico promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU). Nos últimos anos, suas escolas também receberam grandes investimentos nesse tipo de tecnologia: em 2018, estima-se que o governo dinamarquês tenha destinado para a aquisição de plataformas digitais de US$ 4 a US$ 8 milhões, um quarto do orçamento do ensino médio para material didático. Em 2021, investiu cerca de US$ 7 milhões a mais.
Esses investimentos estão enraizados na tradição nórdica de educação que centraliza a experiência da criança e incentiva o aprendizado interativo. Alguns pesquisadores educacionais escandinavos acreditam que a tecnologia pode ajudar a atrair as crianças para participarem de forma lúdica e ativa na educação. “A tecnologia é como se fosse uma extensão do lápis e, ao mesmo tempo, um bloco de desenho. É uma ferramenta que está ligada à oportunidade da criança de se expressar”, disse Mari-Ann Letnes, cientista da educação na Noruega, em uma entrevista de 2018. Em um relatório de progresso de 2019 sobre o uso de tecnologia nas escolas, o Ministério da Educação dinamarquês afirmou que “a criatividade e a autoexpressão com tecnologias digitais são elementos-chave na construção da motivação e no desenvolvimento versátil dos estudantes”. Agora, alguns professores e administradores esperam que a tecnologia também possa ser usada para cuidar da saúde mental.
Os alunos dinamarqueses estão no meio de uma crise de saúde mental desafiadora, igualada “à inflação, à crise ambiental e à segurança nacional”, segundo um dos maiores partidos políticos do país. Ninguém sabe por que, mas em apenas algumas décadas, o número de crianças e jovens dinamarqueses com depressão mais do que sextuplicou. Um quarto dos alunos do nono ano relatam que já tentaram se automutilar. (O problema não é exclusivo da Dinamarca: episódios depressivos entre adolescentes americanos aumentaram cerca de 60% entre 2007 e 2017, e as taxas de suicídio entre adolescentes também aumentaram cerca de 60% no mesmo período.) Uma carta aberta recente assinada por mais de 1.000 psicólogos escolares dinamarqueses expressaram “sérias preocupações” sobre o estado mental das crianças que eles atendem e alertaram que, se uma ação não for tomada imediatamente, eles “não veem esperança de reverter a tendência negativa”.
Para resolver o problema, algumas escolas dinamarquesas estão adotando ações para abordar o bem-estar das crianças por meio de plataformas como a Woof, aquela usada na sala de aula da quinta série. Construída por uma startup com sede na Dinamarca, ela frequentemente promove pesquisas com crianças em idade escolar focando em uma variedade de indicadores de bem-estar e usa um algoritmo para sugerir questões específicas para a turma focar.
Essas plataformas estão ganhando espaço rapidamente. A Woof, por exemplo, foi implementada em salas de aula em mais de 600 escolas em toda a Dinamarca, com mais endereços em vista. Seus fundadores acreditam que a Woof preenche um nicho importante: eles afirmam que os professores expressaram insatisfação generalizada com as ferramentas existentes, em particular uma pesquisa governamental de bem-estar. Essa pesquisa em questão avalia as escolas uma vez por ano e entrega os resultados com atraso. Ela até pode fornecer uma visão geral para os legisladores, mas dificilmente é útil para os professores, que precisam de feedbacks regulares para ajustarem seus trabalhos.
“Existe simplesmente uma necessidade da existência de ferramentas para checar [junto as crianças] onde você não precisa se preocupar”, diz Mathias Probst, cofundador da Woof. “Uma que ajude você a perceber que você não precisa falar com todas as 24 crianças antes de começar uma aula, porque antes que você perceba, 15 minutos dela já se passaram”. E os professores poderiam se beneficiar, ele sugere, de “algo que pode esquematizar em dados tudo isso”.
A Woof não está sozinha em sua tentativa de quantificar em dados o humor das crianças. Algumas outras plataformas foram adotadas por escolas dinamarquesas e, além disso, escolas na Finlândia e no Reino Unido também estão usando softwares de monitoramento de humor. Nos Estados Unidos, a tecnologia pode ir além da coleta de autorrelatos para uma busca mais ativa de indícios de comportamento preocupante, vigiando os e-mails dos alunos, mensagens de bate-papo e o histórico de pesquisas em dispositivos fornecidos pela escola.
Várias pessoas dizem que a tecnologia de monitoramento de humor tem um grande potencial. “Podemos usar ferramentas digitais para avaliar o bem-estar das crianças 24 horas por dia. Como está o sono? Como estão as atividades físicas, como é a interação com os outros? … Como o tempo de tela [da criança] se compara ao tempo sem elas? Isso é fundamental para entender o que realmente é o bem-estar”, disse o falecido Carsten Obel, professor de saúde pública na Universidade de Aarhus (Dinamarca) e líder no desenvolvimento de outra ferramenta de pesquisa de estudantes chamada Moods, em um vídeo de 2019.
Mas alguns especialistas são extremamente céticos em relação a esta abordagem. Eles dizem que há poucas evidências de que a quantificação desse tipo de métrica possa ser usada para resolver problemas sociais, e que promover o hábito de autovigilância desde tenra idade pode alterar fundamentalmente o relacionamento das crianças consigo mesmas e entre si de uma forma que faz com que elas se sintam piores, em vez de melhores. “Dificilmente pode-se ir a um restaurante ou ao teatro sem que perguntem como nos sentimos sobre a experiência e depois marcando opções aqui e ali com base no que você respondeu”, diz Karen Vallgårda, professora adjunta da Universidade de Copenhague (Dinamarca) que estuda história familiar e da infância. “Há uma onda de análise quantitativa de emoções e vivências que está crescendo, e é importante nos perguntarmos se essa é a abordagem ideal quando se trata do bem-estar das crianças”.
Outros se perguntam o quanto as crianças e seus pais realmente sabem sobre quais dados estão sendo coletados, e, mais importante, como estão sendo usados. Enquanto algumas plataformas afirmam que estão coletando o mínimo ou nenhum dado de identificação pessoal, outras exploram profundamente os estados mentais individuais das crianças, suas atividades físicas e até mesmo grupos de amigos.
“A prática deles é muito parecida com o que acontece no Vale do Silício. Eles pregam a transparência de dados, mas não é bem assim”, diz Jesper Balslev, consultor de pesquisa da Copenhagen School of Design and Technology, sobre algumas dessas plataformas. Balslev diz estar preocupado com o fato da Woof e outras plataformas estarem sendo lançadas rápida e ingenuamente sem regulamentação, testes ou esforços adequados para garantir que o ambiente escolar possibilite que as crianças se abstenham de participar dessas pesquisas. “Nossas ferramentas regulatórias para lidar com isso são terríveis”, diz ele. É possível que isso mude, acrescenta, “mas agora tudo está acontecendo ao mesmo tempo”.
A Woof é administrada de um escritório subterrâneo nos arredores de Copenhague, com uma pequena equipe de três funcionários que trabalham em tempo integral. Os fundadores, Mathias Probst e Amalie Danckert, tiveram a ideia de fundar a empresa depois de trabalhar como professores de escolas públicas por meio da Teach First Denmark, organização semelhante à Teach for America nos Estados Unidos.
Quando Probst e Danckert começaram a trabalhar no sistema público de ensino, dizem eles, perceberam rapidamente que as escolas em bairros de baixa renda enfrentavam um ciclo vicioso. Situações difíceis em casa podem tornar os alunos dessas escolas mais difíceis de ensinar. Além disso, as taxas de rotatividade de pessoal são altas devido ao estresse e esgotamento, com alguns professores ansiosos para mudar para escolas “mais fáceis”. Os pais com boas condições financeiras muitas vezes transferem seus filhos para outro lugar, de modo que as crianças com mais problemas representam uma proporção ainda maior no número daqueles que permanecem, exacerbando o estresse vivido pelos professores e a probabilidade de eles irem embora. Tudo isso agrava a crise de bem-estar que as crianças estão enfrentando em outros lugares fora da escola.
“Vi muitas crianças passando por situações difíceis que poderiam ter sido evitadas se medidas tivessem sido tomadas mais cedo”, diz Danckert, que antes de sua experiência como professora, trabalhou como analista na seção de crianças e jovens da Administração de Serviços Sociais de Copenhague.
Danckert e Probst, que tem experiência em consultoria, decidiram criar uma maneira de ajudar as escolas a lidar com essas situações antes que se transformem em sérios problemas de saúde mental que os sistemas de aconselhamento das escolas, já sobrecarregados, podem não detectar até que seja tarde demais.
A solução que eles desenvolveram, Woof, é um aplicativo web que as crianças podem acessar em computadores ou telefones (um estudo de 2019 descobriu que 98% das crianças dinamarquesas entre 10 e 15 anos têm acesso a um smartphone). Sua interface de usuário apresenta principalmente a imagem de um cachorro de desenho animado, que pergunta uma série de coisas às crianças sobre suas vidas. A ferramenta foi projetada para ser usada semanalmente, gerando uma “atmosfera emocional” para a turma, solicitando que as crianças avaliem como estão se sentindo emocionalmente e outros aspectos de suas vidas em uma escala de 1 a 5. O resultado visa fornecer uma imagem abrangente do bem-estar das crianças naquela sala de aula ao longo do tempo.
Professores e funcionários administrativos podem ler relatórios semanais sobre o humor geral autorrelatado de uma turma e como fatores como higiene do sono, interação social, desempenho acadêmico e atividade física afetam as crianças. Então, é traçado um perfil das salas de aula e intervenções são recomendadas para melhorar as pontuações nas categorias que tiveram um desempenho ruim. Por fim, o professor e as crianças analisam os dados juntos e ajudam uns aos outros com ferramentas e estratégias para melhorar esses pontos críticos.
“É preocupante que haja tantos dados pessoais identificáveis em plataformas que trabalham com crianças.”
Mathias Probst, cofundador da Woof
Os dados da Woof são anonimizados. O aplicativo informa as médias da sala de aula em vez de apontar para crianças individuais. Danckert diz que isso ocorre porque a empresa não estava disposta a ir até o limite do que era legal e eticamente viável de acordo com as leis de privacidade de dados. Probst também descreve sentir uma sensação de desconforto ao pensar que a coleta de dados individuais das crianças possa criar uma narrativa e aprisioná-las nela, em vez de ajudá-las a romper padrões negativos. “É preocupante que haja tantos dados pessoais identificáveis em plataformas que trabalham com crianças”, diz ele.
A startup lançou a versão completa da Woof há menos de um ano, em meados do terceiro trimestre de 2022. De acordo com dados de testes beta coletados em 30 escolas antes de seu lançamento completo, 80% das turmas que usavam o aplicativo viram o humor melhorar em média 0,35 pontos na escala de 1 a 5 em um mês. A empresa da Woof afirma que a plataforma não pretende substituir a interação professor-aluno. O aplicativo deve antes ser entendido como uma ferramenta de apoio aos professores, fornecendo planos de ação estruturados e feedback do humor das crianças.
Mas alguns especialistas têm dúvidas sobre a eficácia dos métodos da plataforma Woof. Eles são particularmente céticos quanto à precisão desses dados autorelatados coletados.
De acordo com Balslev, os aplicativos educacionais não provaram que funcionam melhor do que as intervenções analógicas, como ter professores aconselhando as crianças a desligarem seus computadores e perguntando como elas dormiram na noite passada. Ele aponta para lições históricas, como um estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) de 2015 que constatou que a digitalização em escolas de diversos países exacerbou uma série de problemas que supostamente ela deveria melhorar, ocasionando um efeito geral negativo nos resultados de aprendizagem.
“Confiamos mais intuitivamente em dados ou na estrutura quantitativa do que em humanos”, diz ele. “Não encontrei nenhum estudo, ou muito poucos, que examinem o uso de tecnologia educacional em ambientes controlados”.
E há uma boa razão para tomar cuidado com os dados de bem-estar autorrelatados: as crianças podem estar mentindo. Balslev afirma que, quando a tecnologia é inserida em um contexto social, não se pode presumir que os alunos ajam de acordo com regras estabelecidas de forma ideal e cooperem com as intenções pretendidas. Por exemplo, em entrevistas que ele fez com alunos do ensino médio, Balslev diz que eles relataram manipular sistemas digitais para fazer coisas como obter mais tempo para uma tarefa ou fazer com que um exercício de escrita pareça mais longo do que realmente é.
Embora respostas desonestas sejam obviamente possíveis, Probst e Danckert argumentam que a abordagem anônima de Woof torna as respostas autênticas mais prováveis do que poderiam ser de outra forma. “Muitos estudantes de áreas de baixa renda têm plena consciência se estão ou não anônimos. E eles também estão muito atentos do que é divulgado sobre a vida de suas famílias”, diz Danckert. “Os alunos não querem falar sobre o que está acontecendo em casa, porque temem que isso dê brecha para a iniciação de um processo [com um órgão de serviços sociais]”, acrescenta Probst. Ele e Danckert acreditam que a abordagem anônima cria confiança e promove o compartilhamento honesto de informações, pois os alunos podem ter certeza de que isso não desencadeará a obrigação legal do professor de relatar possíveis problemas às autoridades superiores no sistema educacional.
A Woof não é a única plataforma de bem-estar que está ganhando espaço nas escolas dinamarquesas. Plataformas como Bloomsights, Moods e Klassetrivsel (palavra em dinamarquês para “bem-estar na sala de aula”) também estão ganhando destaque. Cada uma adota uma abordagem mais intensiva quanto ao uso de dados e também menos anônima do que a Woof, monitorando e identificando individualmente crianças em idade escolar. A Bloomsights e Klassetrivsel vão além e chegam até mesmo a gerar “sociogramas”, diagramas de conexões sociais que exibem detalhadamente os relacionamentos das crianças entre si.
A Bloomsights converte em indicadores os dados autorrelatados dos mesmos indivíduos ao longo do tempo, separando-os em segmentos como “sinais de solidão”, “comportamento acadêmico” e “sinais de bullying”. A Bloomsights também é usada nos EUA, onde alguns distritos escolares a incluem como parte de um “sistema de alerta antecipado” para identificar suspeitos de atos violentos em ambiente escolar.
As operações da empresa nos Estados Unidos estão localizadas no estado do Colorado (EUA). O cofundador Adam Rockenbach diz que a esperança de trazer a Bloomsights para os EUA era espalhar os valores escandinavos de bem-estar e comunidade no solo americano. Ele afirma que o aplicativo não pretende ser um “Big Brother” distópico, mas uma extensão do que os professores já fazem.
“Você vê o aluno entrando na sala de aula, e talvez ele esteja chegando atrasado com mais frequência do que antes e parece estar um pouco desgrenhado”, diz ele. “Um bom professor vai reservar dois ou três minutos para falar com aquele aluno: ‘Ei, parece que tem algo errado. Eu posso ajudar você de alguma forma?’”
Citando suas experiências como professor em escolas do centro da cidade de Los Angeles (EUA) por seis anos, Rockenbach diz que pode ser um desafio saber o que realmente está acontecendo com crianças que vivem em um ambiente que pode ser marcado pela violência de grupos criminosos e pobreza. Ele diz que a Bloomsights pode ajudar em situações em que os sinais não são tão claros.
Esse é um dos motivos pelos quais Rockenbach acredita que os dados anônimos apenas dificultam a intervenção precoce uma vez que acabam dando mais trabalho para professores e educadores que precisarão tentar identificar quem exatamente está enfrentando problemas e precisa de ajuda. Por isso, ele acha que coletar dados individuais é uma necessidade.
O programa, que opera por meio de um aplicativo web, realiza medições de autorrelato semelhantes às da Woof: pesquisas mensais com alunos, medindo vários indicadores de bem-estar mental e físico, bem como coletando a avaliação dos alunos sobre seu ambiente de aprendizado.
Mas a Bloomsights se destaca pelo uso de sociogramas, construídos a partir dos relatos dos alunos sobre quem são seus amigos, com quem eles se conectam e com quem passam o tempo.
Rockenbach diz que esses sociogramas são ferramentas cruciais para identificar casos de isolamento social e podem até ajudar a detectar crianças vulneráveis aos ataques de bullying. Ele aponta para os depoimentos das escolas como um indicador de que a plataforma ajuda a melhorar o bem-estar. Mas, acrescenta, “não conduzimos um projeto de pesquisa completo que pudesse comparar, por exemplo, uma escola que usa Bloomsights contra uma escola que não usa. Isso é algo que estamos procurando fazer”.
De fato, alguns professores se perguntam o quão útil, ou mesmo ético, o uso desses aplicativos é. “São perguntas muito íntimas, e elas [as crianças] não sabem necessariamente quem vai ver”, diz Naya Marie Nord, professora de uma escola localizada nos arredores de Copenhague que usa o Bloomsights. “É claro que eu, no papel de educadora, acho importante compreender como meus alunos se sentem. Contudo, eu prefiro que essa comunicação ocorra de forma confidencial entre mim e o aluno, em vez de ser algo transmitido a um computador”. Nord está preocupada com quantos professores que não trabalham diretamente com as crianças ainda têm acesso aos dados delas. Ela acredita que o aplicativo ultrapassa os limites éticos, considerando o quanto ele se intromete na vida privada dos alunos.
“Eles [as crianças] não têm chance de entender o que está acontecendo. Não é como se fizéssemos uma longa apresentação explicando como o aplicativo é usado e quem tem acesso [aos dados]”, diz Nord. “E se o fizéssemos, não obteríamos respostas honestas. Se eles realmente entendessem a quantidade de dados que posso ter acesso sobre eles e quantos outros professores também podem, acredito que responderiam de maneira diferente”.
Segundo as políticas de dados da Klassetrivsel, uma das plataformas que coletam informações identificáveis, não é necessário o consentimento dos pais ou das crianças antes que o aplicativo seja usado em sala de aula. A empresa alega que, como o aplicativo é uma ferramenta integrada usada para “fins de bem-estar” em uma instituição pública, ele se enquadra em uma cláusula legal dinamarquesa que isenta as autoridades públicas da exigência sobre a obtenção de consentimento para coleta de dados. Além disso, como as plataformas não são classificadas como “serviços da sociedade da informação” como Facebook ou Google, não é necessário o consentimento dos pais conforme as regras do Regulamento Geral de Proteção de Dados, a abrangente lei de privacidade de dados da União Europeia.
Precedentes legais parecem apoiar as alegações da Klassetrivsel sobre como a lei de dados se aplica ao trabalho da empresa. Em 2019, um pai registrou uma queixa na Agência Dinamarquesa de Proteção de Dados, alegando que uma plataforma de bem-estar baseada em dados na escola de seu filho estava realizando um monitoramento forçado da criança. O pai argumentou ainda que “mensurar e monitorar o bem-estar não é sinônimo de melhorá-lo”. A decisão do órgão foi favorável à instituição: o aplicativo foi considerado uma ferramenta crucial para a manutenção de tarefas de “fundamental interesse social” de responsabilidade das escolas.
“Normalmente, a base legal pela qual esses aplicativos de terceiros operam é a de estarem oferecendo um serviço em nome das autoridades públicas”, diz Allan Frank, advogado de TI da agência. Mas, mesmo assim, eles ainda devem armazenar os dados corretamente e não coletar mais do que o necessário. Eles também devem operar sob a supervisão das autoridades governamentais, diz ele: “Se houver um professor aleatório ou uma escola que tenha sido convencida a configurar um aplicativo repentinamente, sem a supervisão da prefeitura ou do Ministério da Educação, então isso seria um problema”.
Na Dinamarca, os pais têm a possibilidade de escolherem a opção opt-out, ou seja, de privarem seus filhos de terem os dados coletados por meio desses aplicativos. Segundo a Bloomsights, esse também é o caso nos EUA: embora as práticas variem, Rockenbach diz que os pais normalmente assinam um documento uma vez por ano onde são listados todos os diferentes serviços que a escola usa.
Mas como os aplicativos são usados em um contexto educacional e são apresentados como se fossem altruístas, tanto os pais quanto as autoridades políticas tendem a baixar a guarda. “Existem muitos outros aplicativos em que limito o uso do meu filho, mas não estou preocupada com os usados na escola da mesma forma que estou com o TikTok e o YouTube, por exemplo”, diz Janni Hindborg Christiansen, mãe de uma das crianças na sala de aula de quinta série que usa Woof. “Pelo menos a Woof é usada em um ambiente controlado e tem um bom propósito. Eu confio nele mais do que em muitos outros aplicativos para os quais eu seria mais crítica”.
E para os pais que não querem que seus filhos usem essas plataformas, desistir nem sempre é fácil.
Henriette Viskum, a professora da quinta série onde a Woof é utilizada, descreve as interações da Woof como parte fundamental de suas aulas, assim como a matemática, e afirma que os pais precisam conversar com os professores antes de tirarem seus filhos do programa. “Se for um grande problema, encontraremos uma solução e a criança não precisará participar”, diz Viskum. “Mas então eu, como professora, questionaria por que os pais se opõem tão veemente contra a trabalhar com uma ferramenta focada no bem-estar. Eu ficaria um pouco preocupada e curiosa em relação a isso”.
A proximidade entre professores e alunos também pode tornar a questão do anonimato um pouco confusa. Viskum me disse que, se quase toda a turma marca altas pontuações na categoria sobre a vida familiar, mas uma criança não, geralmente ela pode intuir quem é essa pessoa e tentar tomar medidas para ajudar sem chamar muita atenção.
Para Balslev, a adoção de soluções inteligentes baseadas em dados se deve em parte ao seu apelo político. Na Dinamarca, a tecnologia às vezes tende a ser apresentada como a solução para tudo que está ligado ao ensino e à educação. Ele afirma que os infográficos simples que as empresas de tecnologia educacional oferecem têm um atrativo para os funcionários do governo que enfrentam questões sociais e pedagógicas complicadas.
“O que é fantástico sobre as [iniciativas] digitais é que elas são boas em fazer os políticos parecerem ativos, como se eles quem tivessem tomado algumas decisões”, diz Balslev.
Mas a eficácia das soluções não é tão prioritária, diz ele: “É rápido e fácil produzir algumas métricas que pareçam retoricamente convincentes. O infográfico pode oferecer um pequeno vislumbre da verdade sobre a realidade [dos problemas sociais e pedagógicos], mas não chega ao cerne da situação”.
“O infográfico pode oferecer um pequeno vislumbre da verdade sobre a realidade [dos problemas sociais e pedagógicos], mas não chega ao cerne da situação”.
Jesper Balslev, consultor de pesquisa da Copenhagen School of Design and Technology
Na verdade, a tecnologia corre o risco de piorar a situação, diz Karen Vallgårda, pesquisadora da Universidade de Copenhague. Ela está preocupada de que a “estrutura de vigilância” possa ter impactos indesejados na compreensão que as crianças têm de si mesmas.
“Se nos pedirem para nos monitorarmos segundo uma lógica quantitativa, então emoções como indignação e tristeza podem aparecer como reações emocionais problemáticas, apesar de serem completamente naturais em determinados cenários da vida. As crianças podem sentir como se o que estivessem sentindo é errado ou indesejável, o que provavelmente aumentará os problemas de bem-estar em vez de melhorá-los”, diz Vallgårda.
“Quando estabelecemos uma medida de autovigilância nas crianças com base em um ideal explicitamente comunicado de como elas devem estruturar a vida cotidiana, os hábitos alimentares e como se sentir em determinados contextos, existe o risco de que elas desenvolvam ‘dupla infelicidade’ por não apenas estarem infelizes, mas também por não conseguirem atingir esses ideais.
As preocupações de Vallgårda são ecoadas por outros pesquisadores, que argumentam que um foco excessivo em saber se as crianças são felizes pode levá-las a patologizar as flutuações normais de emoções da vida. Novos estudos também indicam que o declínio do bem-estar é amplamente atribuído a pressões ambientais e sociais, e não a fatores individuais.
Vallgårda acredita que, em vez de investir dinheiro em ferramentas que promovam uma ênfase em aspectos quantitativos, as escolas deveriam priorizar os esforços para contratar e treinar profissionais como professores e psicólogos escolares.
No entanto, as plataformas digitais são significativamente mais baratas do que contratar ou treinar mais pessoas. Viskum, a professora da quinta série do início do texto, aponta que os orçamentos são apertados e as listas de espera para consultas com o psicólogo da escola são longas. Diante dessa a realidade material, é compreensível o apelo da tecnologia educacional, mesmo quando há poucos resultados para respaldá-la.
Embora a quantificação da vida das crianças possa fazer os acadêmicos hesitarem, as crianças que conheci me disseram que gostaram de usar a Woof e, especialmente, gostavam de como o aplicativo as ajudava a falar de maneira mais gentil entre si. Em uma escola que visitei em um bairro de baixa renda (a turma obteve uma pontuação de 3,4 na escala de humor), uma professora disse que estava feliz por ter uma ferramenta capaz de lhe dar uma ideia geral do que estava acontecendo com as crianças.
Quando perguntei a Probst da Woof sobre as críticas de Vallgårda, ele disse que, ao contrário dos pesquisadores que estudam crianças academicamente, aqueles que trabalham com crianças todos os dias na sala de aula não podem se dar ao luxo de pensar em termos abstratos.
“É muito bom ser um teórico e ter a opinião de que não se deve fazer certas coisas, mas também existe uma realidade lá fora, nas salas de aula”, diz ele. “Existe uma situação prática em que os professores se deparam com crianças que estão enfrentando tantos problemas que acabam chorando durante a aula. Você tem que fazer algo nessas situações”.
Arian Khameneh é um jornalista freelancer em Copenhagen.