A visão de mundo mecânica e componentizada foi o paradigma dominante científico dos últimos dois séculos e esta visão de mundo influenciou (e ainda influencia) todas as esferas de conhecimento e de produção humana.
Essa visão de mundo tradicional criou no consciente coletivo da humanidade a “certeza” que um dia com o método científico clássico seria possível “dissecar” tudo que nos cerca e explicar o mundo e todas as suas leis e interações, pois o mundo seria como um relógio, bastaria entender como funcionam as engrenagens que conheceríamos as leis e tudo seria previsível, como os cálculos balísticos que preveem com precisão onde um projétil vai cair ou prever com precisão a posição de um planeta no sistema solar nos próximos anos.
Essa visão científica tradicional (e ainda vigente) passa a ter a concorrência de uma nova visão científica que “emerge” no século passado com uma série de descobertas, em especial como resultado dos estudos do comportamento imprevisível das partículas que compõe a matéria.
Como diz Thomas Kuhn, a ciência é uma arena de conflitos entre visões de mundo, onde a visão vigente ou paradigma vigente é sempre pressionado pelas novas visões e paradigmas, ou resumidamente, a ciência tradicional é sempre pressionada pela ciência revolucionária. E tudo indica que estamos vivendo este momento de transição, em que a visão científica clássica e vigente passa a ser pressionada por uma nova visão científica de mundo. Neste caso, a visão de um mundo não linear e imprevisível.
E assim como a visão de mundo atual foi revolucionária em seu passado histórico, com destaque para as pressões sofridas por Galileu, a visão científica revolucionária atual será um dia o paradigma científico vigente e também sofrerá pressão de novas visões de mundo e paradigmas, em um ciclo contínuo e evolutivo da Ciência.
No atual e novo paradigma cientifico, ao contrário do tradicional, a incerteza é seu maior fundamento, e este paradigma novo nos apresenta uma interpretação de mundo complexa e não linear, baseada em princípios com alta singularidade como auto-organização, emergência, caoticidade.
Ao contrário da visão científica clássica de mundo, em que seria possível montar um catálogo de leis que nos permitiria um dia entender tudo que nos cerca, no novo paradigma científico o mundo é incerto a ponto de novas leis serem criadas a todo instante. Essas novas leis são criadas, seja ao estudar as relações sociais que ocorrem em uma organização ou ao estudar as interações químicas de uma nova vacina.
Para a nova ciência, novas leis, regras e conhecimentos são criados e gerados a todo instante e não necessariamente com relações entre si. Em resumo, vivemos em um universo de universos. E nesse tecido complexo que nos é apresentado pela nova ciência, a auto-organização, a emergência, o caos e a fractalidade são fenômenos constantes, sendo resultado padrão da interação de muitos com muitos.
Nesse mundo de interações paralelas de muitos com muitos, a auto-organização é um dos fenômenos que mais impressionam: no lado físico é algo que pode ser observado, por exemplo, na interação entre os grãos de areia na praia, que à medida que são banhados pelas ondas vão se auto-organizando e formando linhas bem definidas pela simples interação dinâmicas entre as bilhões de partículas de areia.
No lado social, um exemplo de auto-organização pode ser visto em uma estação de metrô ou trem de grande movimentação, onde as pessoas dentro do horário tendem a formar uma fila parada no lado direito da escada rolante e deixam o lado esquerdo livre para as pessoas com pressa possam subir as escadas rolantes em movimento. E este processo auto-organizado ocorre sem a intervenção humana, é algo, como o nome diz, capaz de criar do “caos” estruturas ou ações organizadas sem intervenção ou controle externo.
O exemplo acima da escada rolante mostra como os fenômenos complexos regem o nosso dia a dia, a pressão do inesperado do não planejado, a pressão da mudança e do caótico. Não existe nada mais caótico e imprevisível que a vida humana, suas relações e interações e isso leva para o tema principal, como lidar com essas forças da natureza da melhor maneira possível, em especial nos projetos pessoais e profissionais que estamos envolvidos.
Como o melhor recurso que temos para entender a realidade é a Ciência, cabe a ela (e nesse caso específico com a nova visão paradigmática e não mais com a visão tradicional) nos guiar para entender melhor a natureza complexa e como navegá-la.
A ciência moderna nos mostrou, por exemplo, que no processo evolutivo das espécies, a natureza avança aos poucos com o menor gasto de energia possível. Considere um casal de mosquitos. A prole desse casal será uma combinação genética de ambos, mas não será a melhor versão de ambos. A prole pode ter defeitos, uma prole sem defeitos exigiria muita energia e um risco alto para espécie caso essa custosa prole “especial” sem defeitos viesse a sofrer predação.
Logo, a natureza tem uma estratégia para mitigar o alto custo energético de uma prole especial sem nenhum defeito. Ela opta, no caso dos mosquitos, pela grande quantidade de indivíduos a cada nova geração, sem se importar se parte da prole contém defeitos, como se cada nova prole dos mosquitos fosse sempre um teste, onde aqueles que sobreviverem são as hipóteses genéticas validadas.
Um bom exemplo da eficiência dessa estratégia é que se não houvesse predação, pela taxa de reprodução dos mosquitos, estaríamos respirando e enxergando somente mosquitos. Logo cada nova geração para a natureza é um teste de uma hipótese, se a hipótese for validada por menor que seja a alteração que ocorre na nova prole, esta mudança é carregada para a “produção” levando para as próximas versões as melhorias genéticas que permitiram a sobrevivência.
Esse processo de teste de hipóteses da natureza sempre leva em consideração o menor custo energético versus a pressão ambiental. Evidências científicas como esta e muitas outras que “justificam” o fato de a Ciência ser a maior “instituição” humana, a que baliza diretamente ou indiretamente a nossa visão de mundo e modo de produção, e a área de gestão em tecnologia de software é um bom exemplo dessa influência.
Nos anos 60, 70, 80 e 90 a receita de bolo para gerir os projetos seguia uma visão baseada nos modelos paradigmáticos componentizados e previsíveis, assumindo um planejamento do começo ao fim, minimizando e mesmo desconsiderando os riscos e mudanças. É perceptível a influência da visão do pardigma científico tradicional na engenharia de sistemas dos anos 60 até meados dos anos 90, visão que influenciou por muitas décadas o chão de fábrica tradicional das indústrias e consequentemente também a gestão e produção de software.
Porém, para os gestores desse período era perceptível que o modelo em muitos casos não era o mais adequado em especial em cenários de mudança constante, algo normal na relação entres as demandas do negócio e produto, o que transformou o período nas décadas de maior incidência de problemas de entrega de projetos de sistemas, a ponto de em alguns anos em torno de 80% das entregas não atenderem a expectativa dos clientes.
Em meados dos anos 90, os modelos de gestão com ênfase na auto-organização das equipes começam a surgir. Não se deve assumir que o modelo ágil de planejamento e trabalho em equipes de tecnologia “nasce” nesse período, pois nos anos 70 Steve Wozniak e Steve Jobs já tinham entre os dois um modelo ágil de trabalhar e pensar.
O caso de Woz e Jobs é citado para exemplificar que o modelo ágil é acima de tudo uma ocorrência natural dos processos de trabalho que surgem quando os participantes são fluentes e dominam o conjunto de suas habilidades específicas e geram constantemente hipóteses válidas e geralmente de baixo custo inicial — que era a maior preocupação de Woz em seus projetos —. É como as pessoas nas escadas rolantes da estação de metrô lotada, as coisas acontecem naturalmente e de forma auto-organizada, sem a necessidade de um controle, em especial quando os envolvidos sabem desemprenhar com excelência seus papéis.
A agilidade pode ter existido desde sempre na interação entre equipes de tecnologia de alta performance, independentemente do processo ou metodologia vigente. Quando o Manifesto Ágil preconiza indivíduos e interação sobre as ferramentas e processos, estudar as relações de trabalho entre Woz e Jobs deveria ser um pré-requisito sobre como lidar com a complexidade, adversidade e poucos recursos em especial no período de garagem da Apple.
Fato é que em meados dos anos 90 que o termo “processos ágeis” é formalmente cunhado e começa a se difundir, e de forma natural e orgânica pela natureza intuitiva, uma vez que os ganhos eram percebidos pelas equipes de tecnologia “tradicionais”. Assim como o modelo ou visão científica tradicional convive com a nova visão revolucionária, os mercados internacional e nacional passam a conviver tanto com o modelo tradicional de desenvolvimento de software como com o modelo ágil, com este último avançando mais e mais para se tornar o processo vigente de gestão e desenvolvimento de software.
Por isso que estudar como Steve Wozniak e Steve Jobs trabalhavam em equipe é um bom exemplo de entender a natureza ou essência da agilidade, pois mostra como ambos abraçam a complexidade no início da Apple, com destaque para fatores não tangíveis e complexos como a união de motivações específicas de cada um para alcançar uma hipótese comum, uma vez que Woz tinha uma motivação técnica, um “drive” pessoal guiado pela obsessão em montar seu próprio computador em uma época em que não existiam computadores pessoais e o “drive” de Jobs era o de poder transformar as inovações que tinha a sua disposição em produtos vendáveis através de uma liderança inovadora.
Podemos então assumir que o processo ou metodologia ágil pode tanto ser visto como uma expressão do pensamento e cultura da nossa época, da era da informação, ou pode também ser vista como a forma que encontramos para navegar pela complexidade, e como a ciência moderna nos mostra, através de testes de hipóteses e da auto-organização orgânica de atividades e processos produtivos entre colaboradores com motivações distintas, mas capazes de formar um “drive” comum que permite navegar na complexa, dinâmica e as vezes caótica relação entre Produtos e Tecnologia.
Este artigo foi produzido por Ricardo Souza, Líder de Projetos de Tecnologia da Informação da Infobase Consultoria e Mestre em Administração pela PUC-SP.