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Sexta-feira, 18 horas. No Sul do país, Antônia, com câncer de mama em tratamento em uma rede privada de assistência, está em casa e começa a apresentar desorientação, dificuldade para falar e perda de força no braço direito. Pedro, com câncer de pâncreas em tratamento no Sistema Único de Saúde (SUS), se sente muito cansado, com náuseas intensas. O que ambos têm em comum é a dúvida sobre o que devem fazer. Procurar um hospital? Ficar em casa? Se automedicar e buscar atendimento na semana seguinte? Estando em tratamento oncológico, serão atendidos em qualquer emergência? No Norte do país, Ana, diagnosticada com câncer colorretal e atendida no SUS teve seu exame de imagem suspenso uma semana antes do procedimento cirúrgico. Ela não conseguirá ser operada na data proposta, o que atrasará todo o seu planejamento de tratamento. Essas são situações hipotéticas, mas que ocorrem com frequência na saúde e acabam gerando hospitalizações desnecessárias, subtratamento de pacientes graves, ansiedade, estresse emocional e atraso no planejamento terapêutico.
Esses cenários negativos precisam ser minimizados. E uma solução está no uso de plataformas que conectem pacientes a serviços de saúde, com triagem de sinais e sintomas, e um sistema de navegação inteligente.
Avanços tecnológicos, utilização de inteligência artificial, big data, telessaúde, aplicativos e plataformas invadiram a saúde e foram alavancadas no período de pandemia. Em paralelo, um modelo de atenção centrado no paciente é cada vez mais discutido e implementado nos sistemas de saúde. É preciso buscar formas de melhorar a interface entre o sistema e pacientes, e garantir que, uma vez no centro, a sua escuta não será deixada de lado.
É possível então usar aplicativos e plataformas digitais para diminuir a distância entre essas duas peças fundamentais? Como viabilizar a captura de dados dos pacientes fora do muro do hospital?
Além dos muros do hospital
Pensando em uma área terapêutica como a oncologia, é notado um perfil de doença que gera a necessidade de muitos cuidados, com relevante carga emocional. A maior parte do tratamento é realizada em ambiente extra-hospitalar e o modelo assistencial precisa girar em torno de um paciente que está em casa. Como poderia ser estabelecida então uma conexão que garanta a segurança e o conforto de um ambiente controlado hospitalar dentro de suas casas? Com um smartphone, essa comunicação pode ser estabelecida onde quer que o paciente esteja.
Os benefícios em potencial pareciam claros, mas faltavam evidências científicas comprovando tais melhorias. Nos anos de 2016 e 2017 começaram a ser apresentados os primeiros estudos mostrando que uma ferramenta digital, um canal entre o paciente e a equipe multidisciplinar especializada em oncologia, 100% dedicada aos casos ambulatoriais, tem o potencial de fazê-los viverem em média mais 5 meses e com melhora da qualidade de vida em 34% dos casos. Aqueles que receberam o monitoramento foram admitidos com menos frequência em emergências ou hospitalizados, reduzindo significativamente os custos para o sistema, e permaneceram por mais tempo em quimioterapia, o que permitiu que mais pacientes completassem os ciclos de tratamento.
À época das primeiras publicações, dois empreendedores já acreditavam e apostavam nesse tipo de solução, com uma plataforma de monitoramento remoto para pacientes com câncer mirando na melhora do cuidado, levando a hospitalizações evitadas e redução de custos. “César, meu sócio, e eu somos filhos de pacientes oncológicas e perdemos nossas mães em 2014. Nessa jornada, o que mais nos incomodou foi a falta de um modelo assistencial oncológico que alcançasse o paciente fora da parede dos centros de tratamento”, disse Lorenzo Cartolano, CFO e Co-fundador da WeCancer.
A WeCancer começou como uma tecnologia para identificação de frequência e intensidade de eventos adversos. Hoje, conta com uma solução completa de navegação de pacientes, incluindo todos os componentes administrativos que envolvem a jornada oncológica, classicamente muito fragmentada, e a coordenação de cuidados. Alguns pacientes chegam a frequentar três, quatro centros de saúde para a realização de consultas, exames complementares, quimioterapia, radioterapia e imunoterapia. O controle da navegação busca garantir que o paciente esteja no local certo, na hora certa, e que esteja consumindo o sistema de saúde de maneira apropriada, evitando o desperdício. A coordenação do cuidado envolve todo o componente assistencial específico à doença e cuidados multidisciplinares, com enfermeiro, nutricionista, psicólogo e farmacêutico, funcionando como uma plataforma de relacionamento com o paciente e um ambiente digital de extensão do ambulatório de uma instituição. A plataforma também permite que o paciente tenha o controle de agenda e de uso de medicamentos. Há ainda a automação de questionários de qualidade de vida e de toxicidade, e as interações ficam registradas permitindo a extração de inteligência a partir da análise de sentimentos, keywords e farmacovigilância. “A WeCancer devolve inteligência para o ecossistema. A solução em mobile na palma da mão do paciente é integrada em tempo real a um dashboard que é operado pelas equipes de saúde dentro de cada um dos hospitais. É possível contribuir proativamente para que estes pacientes vivam mais e melhor, com menor nível de ansiedade, mais qualidade de vida e menos eventos adversos”, complementa Lorenzo. Por fim, a plataforma também conta com um hub de conteúdo qualificado para o público.
As plataformas digitais possibilitam uma forma proativa de cuidado, no lugar do modelo reativo. Ao invés de apenas informar ao paciente que ele procure um serviço de saúde caso tenha alguma intercorrência, o modelo proativo alinha os cuidados em uma régua de interação de comunicação automatizada que garante uma jornada com maior empoderamento do paciente. Por exemplo, se alguns eventos adversos já são previstos em bula após a quimioterapia e esse time frame já é conhecido, é possível informar isso ao paciente e fornecer, através da equipe multidisciplinar, orientações quanto ao manejo desses eventos e, principalmente, uma avaliação da gravidade.
Hoje, o público coberto pela WeCancer se divide de forma equilibrada entre o SUS e a saúde privada. O objetivo é atender aos dois setores, do topo à base da pirâmide. Dr. Diogo Bugano, oncologista clínico do Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE) e Coordenador Médico do Hospital Municipal Vila Santa Catarina acredita que “Especialmente no cenário do SUS, abre-se uma oportunidade de contato, pois o paciente geralmente não tem o telefone do seu médico, não consegue agendar uma consulta e acaba indo para a emergência do hospital. Esse suporte virtual é muito útil em evitar hospitalizações desnecessárias.” Ele diz ainda que “as intervenções precoces nesse cenário representam um grande benefício clínico para os pacientes”.
O cenário Brasil
O Brasil está entre os cinco países do mundo com maior número de usuários de smartphones. Entre a população acima de 10 anos de idade, 81% dos brasileiros são usuários de internet. Em pesquisa divulgada pela Startup Scanner, uma ferramenta da Liga Ventures com o apoio estratégico da PwC Brasil, em uma base de 3.161 startups no Brasil, 502 são healthtechs, segmentadas em 35 categorias e distribuídas em 81 cidades do país. Entre as categorias, as mais frequentes são plataformas e sistemas de gestão de processos (43), seguidas por soluções voltadas para planos e financiamento (33) e soluções em buscadores e agendamentos (32).
Sob a perspectiva do paciente, identificam-se algumas barreiras ao uso de tecnologia, como a infraestrutura de conectividade e capacidade de processamento e armazenamento de alguns smartphones. Mas o maior desafio não é tecnológico, e sim de engajamento de pacientes, que só é vencido quando se consegue mostrar a geração de valor ao longo de sua jornada.
Outro grande desafio está relacionado à institucionalização dessas ferramentas. As instituições de saúde usualmente já possuem seus protocolos e a adoção de plataformas demanda ajustes nos seus workflows. Novamente, a saída está na geração de valor para os profissionais de saúde e instituições, e no alinhamento de interesses de todos os envolvidos.
Para qualquer nova tecnologia, é esperado um período para que as pessoas se sintam seguras em fornecer seus dados de saúde, e confiar que eles serão tratados com cuidados relacionados ao sigilo. Outra barreira é a resistência de alguns conselhos de classe em relação ao uso de telessaúde, o que precisa ser superado para a garantia do acesso a todos que desejam usar, por exemplo, plataformas de telemedicina.
Segundo Dr. Guilherme Schettino, diretor do Instituto Israelita de Responsabilidade Social – HIAE, “Olhando para o sistema de saúde do Brasil, principalmente para o SUS, vemos uma oportunidade imensa para os apps de saúde, para plataformas de saúde digital. Oferecer acesso é um desafio para qualquer país, especialmente para o Brasil, com dimensões continentais, grande população e recursos escassos.”
Desafios para desenvolvedores
O Brasil conta com excelente recurso humano, ideias interessantes e um enorme campo para soluções em aplicativos e plataformas digitais. Dificuldades administrativas e financeiras podem ser limitantes nesse desenvolvimento. Para apoiar os empreendedores nesses desafios, a Eretz.bio, uma iniciativa do Einstein, nasceu com objetivo de fornecer soluções focadas em saúde, trazendo visibilidade, networking, oportunidade de parcerias, negócios e investimentos com grandes players da saúde, e tem sido um braço de apoio do Einstein para prospecção de novas tecnologias em saúde.
“O HIAE possui uma grande atuação nos setores privado e público de saúde e pretendemos ampliar ainda mais. Enxergamos que uma das maneiras de aumentar o acesso ao sistema Einstein de saúde é através de plataformas de telessaúde para ampliação de nossa atuação. Apoiamos boas ideias nessa área, seja com a participação direta do HIAE ou mesmo só com incentivo ao desenvolvimento de aplicativos. Se a ideia é boa, o Einstein aposta nela.”, finaliza o Dr. Schettino.
O caminho é a tecnologia
O que se espera para os próximos anos é um grande avanço no campo de aplicativos e plataformas digitais em saúde, reduzindo a distância entre pacientes e profissionais. Com ajuda médica especializada a poucos cliques de distância, Pedro, que assim como em 80% dos casos, tem um quadro leve, poderia ser manejado apenas com as orientações corretas obtidas pela plataforma. Já Antônia, que tem sinais e sintomas compatíveis com um acidente vascular cerebral, seria noticiada sobre a necessidade de buscar atendimento urgente. A motivação para a diminuição da distância entre pacientes e serviços de saúde e o aumento da eficiência do sistema é projetar um cenário em que todos possam ter melhores desfechos. E o caminho é o alinhamento de pacientes, profissionais de saúde, prestadores de serviço e demais atores, através da tecnologia.
Este artigo foi produzido por Roberta Arinelli, Medical Director na ORIGIN Health Co. e Editora-executiva da MIT Technology Review Brasil.