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Mais de um bilhão de pessoas, o que representa cerca de 15% da população mundial, convivem com uma doença que é facilmente confundida com seu sintoma característico: a dor de cabeça. Transportando para o Brasil, esse número chega a 30 milhões. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a enxaqueca é a segunda maior causa de incapacidade laboral e de limitações na vida social, ficando atrás apenas dos casos de Acidente Vascular Cerebral (AVC). No país, ela causa um prejuízo calculado em R$ 67,6 bilhões por ano – referente à perda de dias de trabalho (absenteísmo) e queda de produtividade (presenteísmo) –, segundo um estudo brasileiro publicado na Cephalalgia (revista da Internacional Headache Society).
Além disso, com base na literatura médica, a Sociedade Brasileira de Cefaleia adverte que pacientes com a patologia representam 4,5% dos atendimentos em unidades de emergência, atingindo ainda o quarto lugar entre os motivos mais frequentes de consulta nas unidades de urgência. Trata-se de um problema grave de saúde pública. Apesar disso, muitas pessoas ignoram a necessidade de cuidado quando sofrem com dores de cabeça constantes.
“A dor de cabeça é normalizada socialmente. Na verdade, a crise de enxaqueca começa 24 horas antes da dor. As pessoas têm o sono alterado, bocejam muito, sentem muita sede, muita fome, tem gatilhos para comer alimentos específicos, geralmente mais gordurosos. Isso já faz parte da crise, só não veio a dor de cabeça ainda, que é uma etapa da enxaqueca”, avalia a neurologista e coordenadora científica do Instituto do Cérebro do Hospital Israelita Albert Einstein, Lívia Dutra.
Diferentemente da cefaleia, a enxaqueca envolve múltiplas manifestações clínicas. A neurologista explica que a enxaqueca é uma doença caracterizada pela alteração da percepção dos estímulos sensoriais: “É um problema do funcionamento do neurônio, não é um problema anatômico do neurônio. O paciente que tem enxaqueca tem um funcionamento excessivo do neurônio em algumas regiões do cérebro”.
O também neurologista e pesquisador do Einstein, Alexandre Kaup, reforça que a enxaqueca é uma doença genética – ou seja, o indivíduo nasce com ela – e que é determinada pela “hiperexcitabilidade”. Porém, a patologia é facilmente confundida pelo seu principal sintoma: “Como ela é uma doença muito conhecida por um sintoma, que é a dor de cabeça, ela acaba sendo confundida. Isso traz uma dificuldade, porque você acaba tratando uma doença como se fosse um sintoma. A dor de cabeça do paciente que tem enxaqueca começa fraca e se torna forte, geralmente dura entre quatro horas e três dias. É uma dor que muda de lugar, que piora com movimentos rotineiros ou exercício físico, vai ser acompanhada de uma maior sensibilidade à luz e sons e tem a presença de náusea e vômito”.
De acordo com o médico há, ainda, a possibilidade da manifestação da perda do funcionamento temporário da visão, denominada de enxaqueca com aura.
O que a enxaqueca faz com o nosso cérebro?
Um estudo recente, apresentado pela Sociedade Radiológica da América do Norte no final de 2022 apontou para a existência de mudanças significativas no cérebro de quem sofre com enxaqueca crônica e episódica sem aura. Segundo os pesquisadores, esses pacientes apresentam espaços dilatados em torno dos vasos sanguíneos em uma região do cérebro chamada de centro semioval. Os autores da pesquisa levantaram a hipótese de que essas diferenças podem sugerir interrupção no sistema de eliminação de resíduos do cérebro, que utiliza canais perivasculares para ajudar a eliminar proteínas solúveis e metabólitos do sistema nervoso central. Contudo, não foi possível fazer uma relação entre as alterações encontradas no estudo como sendo resultado da enxaqueca ou se elas contribuem para o desenvolvimento da doença.
Os dois neurologistas ouvidos pela MIT Technology Review Brasil alertam para o fato de que não há evidências científicas robustas de que a crise de enxaqueca possa causar danos ao cérebro humano.
“Alterações são observadas há muitos anos em estudos de imagem. As alterações na substância branca do cérebro, por exemplo, aparecem realmente mais prevalentes nos portadores de enxaqueca. Alguns estudos demonstraram que existe uma relação com a frequência da dor, outros não comprovaram isso e não parece haver uma evolução ao longo dos anos nessas alterações. Apesar de isso ter sido notado, não sabemos o valor real desses achados. Não se sabe exatamente quais seriam os mecanismos que levam a isso, tampouco está demonstrado claramente uma relação com alterações cognitivas ou perda funcional”, explica Alexandre.
O especialista cita ainda pesquisas que revelam alterações de volume em algumas estruturas do cérebro de quem tem enxaqueca e uma maior constatação nesses pacientes de lesões que se assemelham a pequenos AVCs. “O cuidado que temos que ter é que nem tudo que se detecta tem um desdobramento clínico ou uma relação com a função. Nenhum desses estudos até agora acompanhou os pacientes a longo prazo para termos uma resposta sobre o que acontece com os pacientes de enxaqueca”, pondera o neurologista.
A coordenadora científica do Instituto do Cérebro do Einstein compartilha do entendimento de que não é possível falar em danos por conta da doença e lembra que o diagnóstico não é feito com base em alterações em exames de imagem. “Temos critérios internacionais para fazer o diagnóstico de enxaqueca. Não é feito com ressonância, é feito entendendo as características da dor, seguindo o que a sociedade internacional de cefaleia determina. É um diagnóstico clínico”, diz a médica.
Contudo, a neurologista reforça que a enxaqueca oferta maior risco para outros problemas de saúde. “Sabemos que tem áreas funcionando de uma forma diferente, o que não significa que você terá um dano permanente no cérebro. Mas áreas que funcionam mal podem predispor a outras doenças. Quem tem enxaqueca descontrolada tem mais chance de ter alterações psiquiátricas, como ansiedade, e quem tem enxaqueca com aura tem mais chance, por exemplo, de ter trabalho de parto prematuro e pré-eclâmpsia na gravidez”, destaca.
Apps e hábitos saudáveis
Com quase trinta anos de experiência no atendimento clínico, Alexandre Kaup relata que vem percebendo uma mudança no perfil dos pacientes com enxaqueca crônica: “Não se via pacientes com enxaqueca crônica com 12, 14 anos de idade. Hoje, vemos bastante. Houve um certo agravamento da doença ao longo do tempo, consequência de uma série de fatores”, relata.
Segundo o neurologista, um dos componentes de cronificação da doença é o uso excessivo de analgésicos (mais do que 10 dias no mês). Apesar de cada vez mais jovens buscarem ajuda, a identificação da doença, segue sendo, de uma maneira geral, uma questão a ser resolvida.
“O grande gargalo na jornada do paciente está em ele ser diagnosticado adequadamente e receber a recomendação do tratamento adequado. Os pacientes demoram muito tempo para ter o diagnóstico. Por quê? Voltamos ao fato de que a doença é confundida com o sintoma. A pessoa se trata com analgésico, só que isso só piora”, reitera.
Kaup sugere que a tecnologia seja uma aliada para suprir essa dificuldade: “A Inteligência Artificial poderia encurtar a jornada do paciente, que é muito longa. Por exemplo, o indivíduo poderia ter acesso a uma ferramenta que ajudasse ele a entender a dor, em que ele pudesse ser educado e orientado por um profissional”.
Uma rápida pesquisa em lojas de aplicativo para smartphones mostra que já há no mercado alguns softwares direcionados para quem tem enxaqueca. A maioria tem a função de diário, onde o usuário anota os dias em que teve dor, a intensidade, duração, se teve outros sintomas, se observou um fator desencadeante, com o que se medicou etc. Alguns apps oferecem ainda a opção de criar relatórios que podem ser enviados ao médico em formato PDF.
Esse tipo de controle pode ser uma alternativa para entender os “gatilhos” da enxaqueca, tais como estresse, falta de sono e dieta. Lívia Dutra recomenda a prevenção de crise com o manejo dos hábitos, embora reforce que essa é uma ação coadjuvante: “Quando falamos que faz parte do tratamento fazer atividade física, ter uma alimentação saudável, tudo isso é uma forma não medicamentosa de diminuir a atividade do cérebro, mas quem tem enxaqueca sempre vai ter. A doença não vai acabar, mas o que você pode fazer por você? Se você está com um estilo de vida ruim, vai ter dor; se a doença for tratada inadequadamente, vai ter dor”, aconselha a neurologista.
Tratamento: inovação com uso de canabinoides
Geralmente, quem tem enxaqueca esporádica faz o tratamento com medicamentos específicos, chamados de triptanos. Já quem tem crises por mais de cinco dias no mês deve entrar na categoria de tratamento preventivo, para a qual os fármacos têm evoluído.
“O tratamento preventivo entrou em uma nova era nos últimos anos, que é a dos anti-CGRP. O CGRP é a principal molécula envolvida na crise da enxaqueca. Quem tem enxaqueca libera essa molécula. Hoje, existem medicamentos capazes de bloquear a molécula por até quatro semanas, e o paciente deixa de ter crise”, explica o neurologista Alexandre Kaup. O medicamento é injetável e já há produtos disponíveis no mercado brasileiro, mas o acesso esbarra no preço.
No Einstein, o pesquisador conduz um estudo com canabinoides (derivados da planta Cannabis sativa) para o tratamento adjuvante da enxaqueca crônica. A intenção é testar a redução na frequência, intensidade e duração das dores.
“Até onde sabemos, nossa pesquisa é inédita no mundo. Estamos testando uma formulação que contém THC, usando justamente com os pacientes que não melhoram com nada. Sabemos que os canabinoides agem em vários sistemas que estão comprometidos na enxaqueca, melhorando ansiedade, sono e fadiga crônica. Eles ajudam porque essas moléculas agem no nosso sistema endocanabinoide, que é voltado principalmente para o controle da homeostase, do equilíbrio do meio externo”, conta Kaup.
O sistema endocanabinoide é um complexo sistema de sinalização celular do nosso corpo, cuja função principal é regulação e equilíbrio de processos fisiológicos. Essa estrutura foi identificada em 1964, pelo pesquisador israelense Raphael Mechoulam.
O estudo conduzido por Kaup no Einstein é randomizado e duplo-cego com placebo, com a participação de um grupo de 110 voluntários. Segundo o pesquisador, resultados preliminares devem ser disponibilizados no início de 2024.