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Os ovários contêm centenas de milhares de óvulos subdesenvolvidos mantidos em uma espécie de animação suspensa. A cada mês, quando amadurece e é liberado, um óvulo tem o potencial de ser fertilizado pelo espermatozoide e criar um embrião. Pela primeira vez, os cientistas dizem que conseguiram retirar óvulos dos ovários de homens transgêneros e prepará-los para a fertilização em um processo concluído inteiramente fora do corpo.
A conquista, realizada por uma equipe liderada por Evelyn Telfer, bióloga reprodutiva da Universidade de Edimburgo, no Reino Unido, sugere que óvulos viáveis podem ser obtidos de homens transgêneros mesmo após anos de terapia com testosterona, que pode interromper a ovulação.
Isso permitiria que homens transgêneros que desejam ter filhos evitassem ter que interromper os cuidados médicos de afirmação de gênero, além de evitar sondas vaginais, clínicas de saúde feminina e tratamentos baseados em hormônios femininos, evitando incômodos físicos e emocionais. Telfer discutiu suas descobertas, que ainda não foram revisadas por pares, em uma apresentação virtual para a Society for Reproductive Investigation, em sua reunião anual, realizada em Denver, no Colorado (EUA), em março.
“É um trabalho muito emocionante, muito importante. E será um avanço tremendo, que potencialmente ajudará muitos pacientes”, diz Samir Babayev, endocrinologista reprodutivo da Clínica Mayo em Rochester, Minnesota (EUA), que não esteve envolvido na pesquisa, mas participou da reunião em que Telfer apresentou seu trabalho.
Opções limitadas
Homens transgêneros foram designados como mulheres no nascimento, mas se identificam como homens. Alguns homens trans passam por tratamento com o hormônio testosterona para desenvolver traços mais masculinos, como pelos faciais e corporais e uma voz mais profunda. O curso do tratamento varia e depende das próprias preferências do indivíduo, bem como da idade em que começaram os cuidados médicos de afirmação de gênero.
Há várias opções para pessoas que escolhem esse tratamento, mas querem a opção de ter filhos biológicos algum dia. Adultos podem congelar seus óvulos, por exemplo, mas isso geralmente envolve interromper o tratamento com testosterona e fazer com que o ciclo menstrual retorne, o que pode levar meses.
Drogas à base de hormônios são usadas para estimular os ovários a liberar vários óvulos maduros, que são coletados em um procedimento cirúrgico que envolve sondas vaginais. O procedimento pode ser particularmente incômodo para homens transgêneros, diz Babayev. Além disso, pausar a terapia com testosterona por meses pode causar fadiga, alterações de humor e problemas de sono.
Muitos homens transgêneros gostariam de ser capazes de criar suas próprias famílias sem tais interrupções, diz D. Ojeda, organizador nacional sênior do Centro Nacional de igualdade transgênero em Washington.
As opções são ainda mais limitadas para os jovens que querem começar os cuidados médicos de afirmação de gênero antes de atingirem a puberdade, o que significa que eles não podem congelar seus óvulos porque ainda não terão começado a ovular. Eles podem optar por ter parte ou todos os seus ovários removidos e congelados, caso em que o tecido poderia teoricamente ser reimplantado mais tarde, mas poucos homens trans optariam por esse procedimento, porque aumentaria os níveis de estrogênio no corpo, diz Kenny Rodriguez-Wallberg, oncologista reprodutivo do Instituto Karolinska, na Suécia, que também viu Telfer apresentar seu trabalho.
A alternativa na qual Telfer e seus colegas estão trabalhando envolve tirar óvulos dos ovários e amadurecê-los fora do corpo, em um laboratório. A equipe já teve algum sucesso em fazer isso com óvulos retirados dos ovários das mulheres, mas ainda não sabiam se poderiam amadurecer óvulos dos ovários de pessoas que já haviam começado os cuidados médicos de afirmação de gênero.
Ovários rígidos
A primeira tarefa de Telfer foi descobrir o que a terapia com testosterona faz aos ovários, o que é uma questão controversa entre os médicos.
Para se ter uma ideia mais precisa, a Telfer se uniu a duas clínicas de afirmação de gênero no Reino Unido. Homens transgêneros que estavam tomando testosterona, e foram submetidos à cirurgia que inclui a remoção de seus ovários, foram questionados se queriam doá-los para a pesquisa. No total, quatro pessoas doaram oito ovários. A equipe comparou partes dos ovários com oito amostras, doadas por mulheres submetidas a cesarianas, que tinham idades semelhantes.
Os ovários de homens transgêneros eram, de fato, diferentes, com mais colágeno e menos elastina, tornando o tecido mais rígido. Essa rigidez pode dificultar o crescimento dos folículos e a liberação de óvulos maduros e prontos para fertilizar.
Telfer e seus colegas também avaliaram 4.526 folículos de pedaços dos oito ovários expostos à testosterona. Cerca de 94% dos folículos não estavam crescendo, contra 85% em pedaços de ovário de mulheres que não haviam tomado testosterona.
A equipe, então, tentou amadurecer óvulos dos ovários dos homens trans. O método envolve cortar o tecido ao redor de cada folículo e depois esticá-lo em um prato. Isso desencadeia vias de sinalização dentro dos tecidos que faz com que os folículos liberem óvulos maduros.
Como resultado, os pesquisadores conseguiram amadurecer um pequeno número de óvulos até o ponto de estarem prontos para serem fertilizados pelo esperma.
Em teoria, a equipe poderia usar técnicas de fertilização in vitro para criar embriões com os óvulos, e esses embriões poderiam ser transferidos para o útero de um parceiro ou substituto. Para fazer isso no Reino Unido, a equipe precisa obter uma licença da Autoridade de Fertilização Humana e Embriologia (HFEA). Nenhuma dessas licenças é necessária nos EUA.
A técnica atrairá alguns homens transgêneros, diz Ojeda: “quanto mais opções [para começar uma família] tivermos para pessoas trans, melhor”.
Telfer e seus colegas ainda não chegaram tão longe. Os primeiros óvulos que a equipe amadureceu no laboratório não pareciam completamente normais. Quando os óvulos amadurecem, eles normalmente passam por um tipo especial de divisão celular que reduz pela metade o número de cromossomos, preparando-os para a fertilização. Os cromossomos que não são usados são separados em uma pequena célula chamada corpo polar. Esses corpos polares pareciam extraordinariamente grandes.
Um grande corpo polar tem potencial de ser completamente inofensivo, mas a equipe está aprimorando o fluido no qual os óvulos ficam até maturarem por precaução. Tentativas mais recentes resultaram em óvulos de aparência mais típica, conta Telfer. A equipe maturou cerca de 10 até agora, mas o projeto ainda está em andamento. “Eu gostaria que nosso sistema de cultura fosse mais robusto antes de arriscarmos a fertilização”, diz Telfer.
A pesquisadora quer testar o procedimento em ovelhas antes de tentar em pessoas, e os experimentos estão programados para ocorrer ainda neste ano. Se forem bem-sucedidos, Babayev prevê que a técnica será sucesso entre as clínicas. A maioria dos tratamentos de fertilidade ignora os ensaios clínicos antes de se tornarem amplamente oferecidos pelas clínicas.
“Claramente, as imperfeições terão que ser trabalhadas. Se bem sucedida, não acho que levará muito tempo para outros a implementarem rapidamente”, diz Babayev. Mas ele está esperando por mais evidências para se convencer de que a técnica funcionará clinicamente. “Quero ver um bebê de verdade”, diz ele.
Se puder ser usado para ajudar homens trans a conceber bebês saudáveis, a técnica também pode ser útil em muitas outras circunstâncias, diz Rodriguez-Wallberg. As crianças que enfrentam tratamentos contra o câncer, e correm risco de ter seus ovários danificados, poderiam ter partes deles congeladas primeiro, oferecendo-lhes uma maneira de ter seus próprios filhos biológicos quando forem mais velhos.
O método também pode ajudar outras pessoas que lutam para conceber, diz Kutluk Oktay, endocrinologista reprodutivo e especialista em preservação da fertilidade da Escola de Medicina de Yale, nos Estados Unidos. O congelamento ovariano pode ser uma alternativa ao congelamento de óvulos: fazer uma única biópsia de um ovário pode ser preferível às muitas etapas envolvidas na recuperação de óvulos.
E, enquanto a recuperação de óvulos tende a resultar em cerca de 10 óvulos de cada vez, um pequeno pedaço de ovário pode ser usado para produzir 100 óvulos. “Uma pequena biópsia dos ovários pode ser o suficiente para se ter muitos bebês”, diz Oktay. “Se pudermos descobrir como fazer isso com eficiência, poderá ser amplamente utilizado”.
A pedido da MIT Technology Review Brasil, especialistas do Hospital Israelita Albert Einstein comentam sobre a pesquisa. Rita de Cássia Sanchez, obstetra e especialista em Medicina Fetal, avalia que o processo investigado é complexo, mas que há expectativas positivas em torno dos resultados iniciais.
“Além da saúde, temos a questão do desejo da constituição da família. Apesar de ainda ser em um nível experimental, pode ser de grande valia para a recuperação de óvulos em transgêneros masculinos”, diz.
Ana Beck, médica do Departamento Materno-Infantil e coordenadora da Pós-Graduação de Consultório de Alta Performance, entende que o estudo considera aspectos importantes do cuidado a pessoas transgêneros e reforça que ainda há poucos dados sobre o impacto do uso da testosterona na fertilidade de homens trans.
“As recomendações atuais sugerem que as melhores práticas ainda contemplam oferecer aconselhamento sobre fertilidade antes do início da hormonização, já que existem vários fatores que interferem na fertilidade de uma pessoa, inclusive a idade”, afirma.