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Imagem conceitual da bactéria em uma placa de Petri. MICHAEL SCHIFFER / UNSPLASH
Imagine projetar o dispositivo perfeito para a Internet das Coisas. Que funções deve ter? Para começar, ele deve ser capaz de se comunicar, tanto com outros dispositivos quanto com seus mestres humanos. Deve ser capaz de armazenar e processar informações. E deve monitorar seu ambiente com uma gama de sensores. Finalmente, será necessário algum tipo de motor embutido.
Existem inúmeros dispositivos que possuem muitos desses recursos. A maioria é baseada em dispositivos de baixo custo amplamente disponíveis, como Raspberry Pis, placas Arduino e semelhantes.
Contudo, segundo Raphael Kim e Stefan Poslad, da Queen Mary University de Londres, no Reino Unido, um outro conjunto de máquinas com funções semelhantes existe em um número muito maior: as bactérias. Eles destacam que elas se comunicam de maneira eficaz e têm motores e sensores integrados, bem como uma poderosa arquitetura de armazenamento e processamento de informações.
De acordo com eles, isso levanta uma possibilidade interessante. Por que não usar bactérias para criar uma versão biológica da Internet das Coisas? Agora, eles expõem algumas das ideias e tecnologias que podem tornar isso possível em uma chamada para a ação.
A forma como as bactérias armazenam e processam informações é uma área emergente de pesquisa, muitas das quais são voltadas para o burro de carga bacteriano Escherichia coli. Essas (e outras) bactérias usam estruturas de DNA em forma de anel, chamadas de plasmídeos, para armazenar informações, que são transmitidas de um organismo a outro em um processo chamado conjugação.
Em 2018, Federico Tavella, da Universidade de Pádua, na Itália, e seus colegas construíram um circuito no qual uma cepa de E. coli imóvel transmitia uma simples mensagem de “Olá, mundo” a uma cepa móvel, que transportava a informação para outro local.
Esse tipo de transmissão de informações ocorre o tempo todo no mundo bacteriano, criando uma rede incrivelmente complexa. Entretanto, o experimento de prova de princípio de Tavella e equipe mostra como isso pode ser explorado para criar uma espécie de bio-Internet, segundo Kim e Poslad.
A E. coli é um meio perfeito para essa rede. Ela é móvel, tem um motor embutido na forma de apêndices ondulantes e semelhantes a fios chamados flagelos, que geram impulso. Ela possui receptores em suas paredes celulares que detectam aspectos de seu ambiente como a temperatura, luz, substâncias químicas, etc. Ela armazena informações no DNA e as processa usando ribossomos. E é minúscula, permitindo que exista em ambientes nos quais as tecnologias feitas pelo homem têm dificuldade de chegar.
A E. coli também é relativamente fácil de manipular e projetar. O movimento de raiz da biologia DIY (faça você mesmo, em português) está fazendo com que as ferramentas de biotecnologia fiquem mais baratas e mais acessíveis. O Amino Lab, por exemplo, é um kit de engenharia genética para crianças em idade escolar, que permite a reprogramação de E. coli para brilhar no escuro, entre outras coisas.
Esse tipo de biohacking está se tornando relativamente comum e mostra o potencial notável de uma bio-Internet das Coisas. Kim e Poslad falam sobre uma ampla gama de possibilidades. “As bactérias podem ser programadas e implantadas em diferentes ambientes, como no mar e nas ‘cidades inteligentes’, para detectar toxinas e poluentes, coletar dados e realizar processos de biorremediação”, dizem eles.
As bactérias podem até ser reprogramadas para tratar doenças. “Por exemplo, uma bactéria abrigando DNA que codifica hormônios úteis pode nadar para um destino escolhido dentro do corpo humano, [e] produzir e liberar os hormônios quando acionada pelo sensor interno do micróbio”, eles sugerem.
Obviamente, existem várias desvantagens. Enquanto a engenharia genética torna possível todos os tipos de experimentos divertidos, possibilidades mais sombrias deixam os especialistas em biossegurança sem dormir. Não é difícil imaginar bactérias agindo como vetores de várias doenças desagradáveis, por exemplo.
Também é fácil perder bactérias. Uma coisa que elas não têm é um equivalente ao GPS. Portanto, é difícil rastreá-las. Na verdade, pode ser quase impossível rastrear as informações que elas transmitem depois que são liberadas na natureza.
E aí está um dos problemas de uma internet biológica das coisas. A Internet convencional é uma forma de começar com uma mensagem em um ponto do espaço e recriá-la em outro ponto escolhido pelo remetente. Ela permite que os humanos, e cada vez mais dispositivos, se comuniquem uns com os outros em todo o planeta.
Por outro lado, a bio-internet de Kim e Poslad oferece uma maneira de criar e divulgar uma mensagem, mas não uma forma de controlar para onde ela acaba indo. A bio-rede criada pela conjugação bacteriana é tão assustadoramente vasta que as informações podem se espalhar mais ou menos em qualquer lugar. Biólogos já observaram o processo de conjugação que transfere material genético de bactérias para leveduras, plantas e até células de mamíferos.
A evolução também desempenha um papel. Todas as coisas vivas estão sujeitas às suas forças. Não importa o quão inofensiva uma bactéria possa parecer, o processo de evolução pode causar estragos por meio de mutação e seleção, com resultados imprevisíveis
Além disso, há o problema de atores mal-intencionados influenciando essa rede. A Internet convencional atraiu mais do que o seu quinhão de indivíduos que disseminam malware para fins nefastos. Imaginar o interesse que eles podem ter em uma internet biológica das coisas é suficiente para causar pesadelos.
Kim e Poslad estão cientes de alguns desses problemas, afirmando que a criação de uma rede baseada em bactérias apresenta novas questões éticas. “Esses desafios oferecem um terreno fértil para discussão sobre a implicação mais ampla dos sistemas da Internet das Coisas movidos por bactérias”, eles concluem com um pouco de eufemismo.
Essa é uma discussão que vale a pena ter antes que seja tarde.
Ref: arxiv.org/abs/1910.01974: The Thing with E. coli: Highlighting Opportunities and Challenges of Integrating Bacteria in IoT and HC
Impacto no mundo real
Em entrevista à MIT Technology Review Brasil, a PhD em biologia molecular e pesquisadora do Hospital Israelita Albert Einstein Patrícia Severino explica que a ideia de Bio-Internet das Coisas faz parte do movimento “do-it-yourself biology”.
“É a capacidade da humanidade, hoje, de criar a partir de organismos vivos. Isto é, de criar novas coisas e não apenas de utilizar a capacidade intrínseca desses organismos”, pontua.
Na avaliação da especialista, a interdisciplinaridade é uma das características marcantes desse processo. Por isso, há necessidade de se trabalhar com esse princípio em cursos de formação acadêmica ou mesmo de formação escolar.
“É biologia, mas também é engenharia, é ciência da computação. É a necessidade de integração de diversas disciplinas para um fim. Sem a complementaridade dessas disciplinas, não se chega a resultados”, afirma.
No bioracking, a inovação em ciência é executada por pessoas com diferentes formações e níveis de conhecimento. No Brasil, embora haja dificuldades estruturais em comparação aos Estados Unidos e a países da Europa — sobretudo em relação ao acesso a reagentes e a outros tipos de materiais —, a educação é um caminho possível para o desenvolvimento da inovação.
“Esses tipos de estruturas mais livres de criação favorecem, justamente, a questão da interdisciplinaridade, de poder juntar pessoas que não têm um conhecimento muito formal com esse intuito de criar coisas diferentes, a partir de um olhar diferenciado”, explica.
Apesar de a segurança ser uma das principais preocupações nessa área, para a pesquisadora já há discussões avançadas entre os grupos que desenvolvem as tecnologias.
“Quando falamos de trabalhos envolvendo seres vivos, a questão da segurança surge muito rapidamente. Como esses organismos serão manipulados? Que tipos de sistemas de contenção vão existir? De que forma elas se relacionariam com o meio ambiente? São questão éticas de trabalho. Dentro do do-it-yourself biology, essa discussão é frequente. Existe muita coisa em debate por esses grupos, que se organizam naturalmente e são também bem estruturados em relação à forma de trabalho, à transparência, ao respeito ao meio ambiente, ao compartilhamento de dados. Essa questão da colaboração, do Open Science, da transparência, é muito importante para esses grupos. E de fato é uma oportunidade para se gerar, rapidamente, resultados nessa área de uma forma que não traga críticas, mas sim benefícios para a sociedade”, avalia.