Nosso sistema alimentar atual continua a ter muitas implicações em nossa sociedade globalizada. Talvez o mais significativo seja o fato de que a produção e distribuição de alimentos tornou-se tão distante do consumidor que a maioria de nós quase não tem ideia de onde vem nossa comida.
Com a disseminação da informação e a velocidade de transformação da sociedade atual, a percepção das pessoas sobre a comida e o que ela deveria constituir está em constante mudança. O desconhecimento sobre a origem de nosso alimento e como verificá-la, como seus alimentos são cultivados, como são transportados ou quem é o agricultor que está cultivando é totalmente incompatível com a transformação do novo consumidor.
A cadeia global de abastecimento de alimentos carece de um ingrediente essencial: confiança, e o blockchain pode revolucionar isso.
Cadeia do alimento e sua ineficiência
A cadeia de abastecimento alimentar refere-se às etapas necessárias para fornecer alimentos saudáveis aos consumidores. Essas etapas, ou processos, incluem cultivo, produção, distribuição, varejo e, finalmente, o consumidor. À medida que os alimentos se movem do agricultor para o consumidor, o dinheiro se move simultaneamente na direção oposta na mesma cadeia. Várias pessoas e recursos são empregados como parte de cada um desses processos, incluindo agricultores, embaladores, logística e pessoal de varejo. O tempo de distribuição e os métodos implementados dependem do alimento a ser manipulado, mas é fato que nossa cadeia atual é uma rede complexa e ineficiente em seus mais diversos pontos.
– Desperdício da cadeia
A FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations) estima que cerca de um terço de todos os alimentos produzidos para consumo humano seja perdido ou desperdiçado globalmente a cada ano, devido a problemas que vão desde o uso impróprio de insumos até a falta de armazenamento pós-colheita, processamento ou transporte adequado. Isso equivale a aproximadamente 1,3 bilhão de toneladas de alimentos e o valor global é estimado em US$1 trilhão. Esses números são simplesmente insustentáveis em um mundo onde, segundo a própria FAO, cerca de 870 milhões de pessoas não têm o suficiente para comer. O desperdício é tanto que se estima que se apenas um quarto dos alimentos perdidos ou desperdiçados fosse economizado, poderia acabar com a fome global.
Junte a isso uma questão econômica básica: quando um evento impacta um dos processos ao longo da cadeia, muitas vezes se manifesta como um aumento de preço ao longo do restante da cadeia. Ao mesmo tempo, quando esse alimento é desperdiçado, também o são toda a energia e recursos, como terra e água, usados para cultivá-lo ou produzi-lo (3,3 gigatoneladas de CO2 equivalente por ano, e a produção deste total de alimentos que é perdido responde por 8% das emissões de gases de efeito estufa). Em um mundo que precisa dobrar a produção de alimentos para atender à demanda de uma população que deve aumentar para nove bilhões em 2050, essa perda colossal de alimentos durante a cadeia produtiva e de consumo é trágica.
A saída? Acredito fielmente que a transparência e a rastreabilidade podem trazer a confiança de volta, aumentar a eficiência dessa enorme rede que nos sustenta e é precisamente aqui que o blockchain prova seu valor.
Aplicação à agricultura e suas vantagens
Blockchain e cadeias de valor são uma combinação perfeita. A transparência e a rastreabilidade necessárias para uma cadeia de valor preparada para o futuro são elementos-chave da tecnologia blockchain.
O blockchain nada mais é do que um registro digital descentralizado e público de transações, organizadas em blocos encadeados uns aos outros. Essa tecnologia oferece segurança, transparência e confiabilidade, permitindo que as transações sejam registradas de forma imutável e verificável sem a necessidade de uma autoridade central. Uma vez que uma transação é registrada em um bloco do blockchain, ela se torna praticamente impossível de ser alterada, tendo sido validada pelos seus participantes e totalmente criptografada. Mas como efetivamente o blockchain e nossa cadeia de alimentos se encontram?
Rastreabilidade: o blockchain permite que cada etapa da cadeia de alimentos seja registrada e rastreada de forma transparente. Isso significa que é possível rastrear a origem dos alimentos, desde o produtor até o consumidor final. Cada transação, como o cultivo, embalagem, transporte e distribuição, pode ser registrada em um bloco no blockchain, criando um histórico completo do alimento. Isso torna mais fácil identificar a origem de qualquer problema, como surtos de doenças ou produtos falsificados.
Segurança alimentar: é possível criar um registro imutável das condições de armazenamento e transporte dos alimentos. Sensores IoT (Internet das Coisas) conectados a produção, transporte e armazenamento podem ser usados para monitorar parâmetros como temperatura e umidade, tendo esses dados registrados em cadeia e utilizados para uma produção mais eficiente (função bastante utilizada em fazendas indoor).
Autenticidade e qualidade: o blockchain pode ajudar a garantir a autenticidade e a qualidade dos alimentos. Ao registrar informações sobre a origem, método de produção, certificações e testes de qualidade, os consumidores podem ter acesso a um histórico transparente e confiável do alimento que estão comprando (isso é especialmente útil em casos de produtos orgânicos).
Eficiência e redução de custos: simplificar e automatizar processos ao longo da cadeia de alimentos, eliminando intermediários desnecessários e reduzindo a papelada. Contratos inteligentes podem ser usados para automatizar acordos e pagamentos entre fornecedores, produtores e distribuidores, eliminando a necessidade de reconciliação manual de dados e reduzindo erros e atrasos.
Melhoria da confiança do consumidor: a transparência e a rastreabilidade proporcionadas pelo blockchain podem ajudar a aumentar a confiança dos consumidores nos alimentos que estão comprando. Ao poder verificar a autenticidade, qualidade e origem dos produtos, os consumidores podem tomar decisões informadas e se sentirem mais seguros em relação aos alimentos que estão consumindo.
Todas as vantagens citadas acima já podem ser observadas em cases de grandes redes varejistas internacionais. A principal prioridade dessas tecnologias aplicada à agricultura é a sustentabilidade e a segurança alimentar. Não poderia fazer mais sentido em um mundo onde a segurança alimentar está se tornando uma questão cada vez mais crítica.
Case Walmart & Carrefour
O foco central da tecnologia blockchain é confiança, imutabilidade e transparência; tudo isso acontece sob os livros contábeis descentralizados e compartilhados. Por meio da Hyperledger Fabric Technology, o Walmart conseguiu realizar testes de aplicação de rastreamento de blockchain em relação a dois produtos: manga e carne suína. No teste das mangas, um executivo da empresa comprou um pacote de mangas fatiadas e pediu para sua equipe identificar, o mais rápido possível, de que fazenda elas vinham. Com o sucesso da tecnologia blockchain da Hyperledger Fabric, o tempo necessário para rastrear a localização das mangas fatiadas diminuiu de sete dias para 2,2 segundos.
O Walmart agora pode rastrear a origem de mais de 25 produtos de 5 fornecedores diferentes usando um sistema desenvolvido pela Hyperledger Fabric. Na verdade, a empresa recentemente anunciou que em um futuro próximo começará a exigir que todos os seus fornecedores de verduras frescas rastreiem seus produtos usando o sistema.
No Brasil, o Carrefour é pioneiro no uso do blockchain na cadeia alimentar, estratégia que está alinhada ao propósito da companhia de educar o consumidor para uma alimentação mais saudável e sustentável. As informações fornecidas pelo QR Code asseguram que a produção é monitorada pela empresa e que se tratam de produtos com alto valor agregado.
Melhorias e desafios para o futuro
Vale lembrar, contudo, que muitas questões devem ser abordadas antes que a tecnologia blockchain possa realmente se integrar ao mundo agrícola.
Primeiro: não acredito em inovações disruptivas sem a reconstrução educacional. Claramente a infraestrutura envelhecida e a alfabetização digital serão dificultadores dessa implementação. Este é, sem dúvidas, o maior desafio em minha concepção.
Segundo: a tecnologia blockchain deve ser incluída em estratégias de segurança alimentar mais amplas para garantir que seja passível de valores sociais e ambientais críticos, e lidar com eficiência com o problema de insegurança alimentar entre diversos grupos.
Por fim, essas inovações devem ser implantadas de forma equitativa para que todas as partes interessadas possam se beneficiar de seu valor. A introdução de um novo mecanismo deve gerar mais eficiência e competitividade, não o aumento da desigualdade.
À primeira vista pode parecer pouco, mas esses entraves são, infelizmente, suficientemente grandes para afastar a massa não só dessas, mas também de outras tantas inovações necessárias ao nosso futuro. Aqui não há fórmula mágica: governo e grandes players devem atuar em conjunto e movimentar o setor em direção a uma maior eficiência.
Blockchain como aliada no combate ao desperdício
Acredito que a inovação é mais importante na agricultura moderna do que nunca antes na história da humanidade, especialmente após a pandemia de 2020.Precisamos repensar nossos sistemas de produção e distribuição de alimentos para refletir as necessidades, cultura e condições globais de nossa sociedade.
A redução de perdas e desperdícios em toda a cadeia de abastecimento alimentar deve ser considerada uma solução necessária e urgente. Reduzir os impactos ambientais da agricultura, melhorar a renda e a subsistência dos atores da cadeia e melhorar a segurança alimentar e nutricional dos consumidores (principalmente os de baixa renda).
Fato é que o blockchain por si só não conseguirá solucionar todos os nossos problemas milenares da cadeia de alimentos. Mas agora, ao menos, possuímos uma grande aliada a esse desafio latente e complexo.