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Ame ou odeie, a tecnologia nos encanta com suas promessas de mudanças. Às vezes, são os supostos benefícios que nos despertam interesse: cura de doenças, substituição de combustíveis fósseis, aumento do suprimento de alimentos, desvendamento dos segredos do fundo do mar, colonização de Marte ou fim dos estragos da velhice. Outras vezes, são os riscos atrelados a elas que chamam nossa atenção. E se disseminarmos um vírus assassino, desencadearmos um apocalipse nuclear, bloquearmos radiação solar com produtos químicos tóxicos ou construirmos computadores que atentem contra a nossa existência?
Essa batalha entre a luz e a escuridão, na maneira como imaginamos mudanças tecnológicas, é antiga. Na mitologia grega, Prometeu agonizou por trazer fogo à Terra, e Dédalo perdeu seu filho, pois o desejo de Ícaro de voar custou-lhe a vida. As visões mais otimistas e mais pessimistas da tecnologia, contudo, se baseiam em um mesmo equívoco: que, uma vez traçado um caminho tecnológico, este terá consequências sociais inevitáveis, sejam utópicas ou distópicas.
Esta visão, conhecida como determinismo tecnológico, é historicamente falacioso, politicamente perigoso e eticamente questionável. Para alcançar o progresso, sociedades como a nossa precisam de uma compreensão mais dinâmica de por que a tecnologia muda, como mudamos com ela e como podemos ter controle sobre as poderosas e maravilhosas máquinas que criamos.
A tecnologia não é uma força autônoma independente da sociedade, nem as direções da mudança tecnológica são determinadas pela natureza. A tecnologia, em sua forma mais básica, consiste em produzir ferramentas. Insistir que os avanços tecnológicos são inevitáveis nos impede de reconhecer as disparidades de riqueza e poder que impulsionam a inovação para o bem ou para o mal.
A tecnologia é sempre um empreendimento coletivo. Ela é o que é, porque muitas pessoas a imaginaram, trabalharam para isso, assumiram riscos, a padronizaram e regulamentaram, venceram concorrentes e criaram mercados para promover suas visões. Se tratarmos a tecnologia como algo autodirigido, iremos negligenciar todas essas contribuições e corremos o risco de distribuir seus benefícios de maneira injusta. Hoje, um executivo de uma empresa de biotecnologia de sucesso pode vender ações no valor de milhões de dólares, enquanto aqueles que limpam o laboratório ou se voluntariam para estudos clínicos ganham muito pouco. Ignorar os arranjos sociais desiguais que produziram invenções tende a reproduzir essas mesmas desigualdades na distribuição de benefícios.
Ao longo da história da humanidade, o desejo de ganho econômico se sobrepõe à busca por novas ferramentas e instrumentos — em áreas como mineração, pesca, agricultura e, recentemente, a prospecção de genes. Essas ferramentas estabelecem novos mercados e novas maneiras de extração de recursos, mas o que o inovador vê como progresso geralmente traz mudanças indesejadas às comunidades colonizadas por tecnologias importadas e às ambições de seus fabricantes.
A história da Internet nos mostra que as sociedades modernas costumam ser melhores em prever as vantagens da tecnologia do que as suas desvantagens.
Por exemplo, na Bengala Ocidental, onde nasci, os tecelões perderam seu lugar na produção dos saris Baluchari durante os 200 anos de domínio britânico. De fato, a primeira revolução industrial da Grã-Bretanha, que introduziu o tear elétrico em cidades como Lancaster, mas adotou tarifas punitivas para impedir a entrada de tecidos feitos à mão na Índia, também representou o desmantelamento da outrora florescente indústria têxtil de Bengala. A recuperação das artes e cultura local só se tornou possível depois que os britânicos partiram. O custo de uma ruptura radical com o patrimônio econômico e cultural de uma nação é incalculável.
O desejo de vantagem militar é outro fator de mudança tecnológica que pode, em alguns casos, beneficiar a sociedade civil — mas as tecnologias de “uso duplo” costumam manter vínculos com as forças que impulsionaram seu desenvolvimento. A energia nuclear, um desdobramento da busca pela bomba atômica, foi vendida ao mundo pelo presidente dos Estados Unidos, Dwight Eisenhower, como “átomos pela paz”. No entanto, a energia nuclear continua intimamente ligada à ameaça de proliferação de armas nucleares.
Da mesma forma, a internet, que revolucionou o modo como vivemos hoje, deve muito à visão de uma rede de computadores imaginada pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Celebrado inicialmente como um espaço de emancipação, o mundo digital lentamente revelou suas características antidemocráticas: vigilância constante, ameaças de cibersegurança, ilegalidades da dark web e disseminação da desinformação. Uma maior conscientização pública sobre as origens da Internet poderia nos ter conduzido a um mundo cibernético mais responsável do que aquele projetado por tecnólogos renomados.
A história da Internet nos mostra que as sociedades modernas costumam ser melhores em prever as vantagens da tecnologia do que as suas desvantagens. A trajetória da inovação também é guiada, todavia, por preferências culturais mais sutis, cujas consequências são, muitas das vezes, profundas.
Na biomedicina dos Estados Unidos, por exemplo, a energia, a atenção e o dinheiro tendem a ser direcionados a soluções de alto impacto — mágicas ou inconcebíveis —, ao invés de serem aplicados em mudanças mais complexas nas infraestruturas sociais que são a origem de muitos dos problemas de saúde que a própria biomedicina busca solucionar.
Essa tendência se refletiu na decisão do Congresso norte-americano de autorizar US$ 10 bilhões para a Operação Warp Speed para lançar rapidamente no mercado uma vacina contra a Covid-19. A Moderna deve muito de seu sucesso como fabricante de vacinas a esse enorme gasto público, e tanto a Moderna quanto a Pfizer se beneficiaram enormemente de lucrativos contratos de fornecimento com o governo dos Estados Unidos.
Ao mesmo tempo, cerca de um terço de todas as mortes nos EUA devido à pandemia ocorreram em asilos, resultado de décadas de baixo investimento governamental. Coletivamente, optamos por ignorar a situação dos idosos vulneráveis e gastamos muito em tecnologia quando todos estavam em risco.
A mudança nem sempre é inevitável, mas os economistas têm razão ao se basearem na “dependência da trajetória” ou na noção de que, uma vez que um motor comece a funcionar, este seguirá um caminho pré-determinado. Os custos incorridos — fundações, maquinários, força de trabalho treinada — são, contudo, irrecuperáveis. Muitas vezes parece mais fácil ir onde os fluxos materiais e as práticas sociais já abriram canais profundos. Não é surpreendente, então, que os gastos com defesa tenham se mostrado um dos principais motivadores de inovação, embora tais investimentos perpetuem desequilíbrios de poder e raramente respeitem particularidades culturais ou éticas.
Em seu famoso poema “A Estrada Não Trilhada”, Robert Frost reflete sobre como a mente humana constrói narrativas de inevitabilidade. Chegamos a uma bifurcação na estrada, escolhemos um caminho e então, à medida que a memória nos confunde, passamos a ver essa escolha determinante de tudo o que veio depois. Confrontados com problemas crescentes de desigualdade, recursos decrescentes e uma calamidade climática iminente, devemos aprender a reconhecer as falhas em tal narrativa linear e a imaginar o futuro como um caminho ainda não percorrido de mudanças.
Sheila Jasanoff é professora de Estudos Científicos e Tecnológicos na Harvard Kennedy School.