Durante a era de ouro das ferrovias, uma lenda americana provou a força do homem em comparação às máquinas.
John Henry era um homem de costas largas e braços poderosos, que se orgulhava de ser o melhor naquilo que fazia: furar grandes rochas com golpes de marreta para que fossem inseridas dinamites, um processo necessário na criação de túneis ferroviários. Quando um agente engravatado de uma empresa trouxe uma “furadeira a vapor” para vender aos gestores da obra, John não pensou duas vezes: desafiou a máquina para uma disputa. Ganharia quem furasse mais durante um dia inteiro de trabalho. Certo da vitória, o agente aceitou.
A máquina trabalhava de forma feroz. Seu pistão subia e descia sem parar na montanha, abrindo buracos metodicamente. O que John não possuía de precisão era compensado com força e vigor. Em cada marretada, o peso de uma vida inteira de trabalho era depositado na cabeça da broca, ferindo a montanha e inflando o orgulho machucado de seus companheiros de trabalho. A disputa durou horas e horas e, no fim, a máquina acabou quebrando, tamanho o desgaste do trabalho. John seguiu fazendo mais furos, até se certificar de que tinha conquistado a vitória. Mas seu corpo não suportou a batalha: ali, no pé da montanha, ele morreu de pé, ainda com seu martelo nas mãos.
Essa é uma das várias versões da lenda do John Henry, um herói folclórico americano. Apesar de detalhes diferentes, todas as versões trazem o que pode parecer uma história gloriosa e trágica de superação de um homem que se recusou a aceitar ser trocado por uma máquina e lutou pela crença de que a humanidade sempre estaria à frente.
Aqui cabe um exercício de imaginação: e se John Henry tivesse sobrevivido? O que teria acontecido?
Provavelmente, dois meses depois da disputa, o agente chegaria com uma nova máquina, talvez com redesign da broca ou mesmo uma mudança nas batidas do pistão inspirada na forma como John Henry manejava sua marreta. John seria desafiado de novo e talvez venceria! Mas e mais dois meses depois? E quatro? E seis? Até quando John, com toda a sua força, seria capaz de frear o avanço da máquina? E, depois de perceber essa curva evolutiva, será que John Henry continuaria aceitando arriscar sua vida nessa luta ou penduraria a marreta na parede em sinal de desistência?
Essa história diz muito sobre a nossa relação com a tecnologia desde sempre, e ainda mais hoje em dia, no meio da transformação digital — onde as novas tecnologias evoluem cada vez mais rapidamente, graças à exponencialidade das leis do digital. Como, então, manter colaboradores engajados, criativos e produtivos em um ambiente profissional que parece crescentemente dominado por máquinas, e diante da ameaça da tecnologia e da Inteligência Artificial substituir muitas de nossas capacidades cognitivas e, ao final, empregos?
A verdade é que até hoje nenhum grande especialista conseguiu encontrar uma resposta satisfatória. O problema pode estar na maneira como construímos a pergunta. Talvez seja hora de pensar em um novo paradigma.
Nem hard, nem soft: as Human Skills como resposta à dicotomia atual
Seguimos debatendo a contraposição genérica entre as habilidades técnicas e as habilidades comportamentais há tanto tempo que quase não percebemos que desenvolvimentos tecnológicos rápidos estão tornando essa dicotomia obsoleta. Estamos ainda na infância do mundo 4.0, uma revolução digital que mal começou e já está mudando absolutamente tudo, mas onde, a cada ano, as aplicações possíveis para redes neurais, Inteligência Artificial e outras soluções tecnológicas exponenciais — fruto da inexorável Lei de Moore — estão colocando boa parte das Hard Skills em cheque.
Suba alguns parágrafos e você vai reler os exemplos: dirigir um carro, operar uma metralhadora, montar um relatório logístico. Hoje, tudo isso e muito mais pode ser feito por softwares e IA, com agilidade e precisão superior ao mais dedicado e bem treinado dos seres humanos. Avance alguns anos e a enorme maioria (senão todas) das Hard Skills serão operadas ou potencializadas por máquinas e sistemas, tornando o treinamento profundo nessas habilidades uma opção quase artesanal frente à eficiência e reprodutibilidade de resultados dos robôs.
Para muitos, é uma batalha que não pode ser vencida. Para mim, nunca deveria ter sido uma batalha. Se a encararmos como tal, seremos destinados inexoravelmente ao fracasso. Yuval Noah Harari, historiador e autor best-seller do livro “Sapiens – Uma breve história da humanidade“, nos apresentou sua visão sobre o impacto das novas tecnologias no mercado de trabalho:
“A Inteligência Artificial irá tirar os seres humanos para fora do mercado de trabalho da mesma maneira que a revolução industrial do século XIX criou uma nova classe massiva: a classe trabalhadora urbana, ou seja o proletariado. É assim que no século XXI, uma nova revolução industrial criará uma nova classe massiva: a classe inútil. Trabalhadores que não têm utilidade econômica porque a Inteligência Artificial os supera em quase todas as tarefas e trabalhos. Pessoas que não estão apenas desempregadas: elas não são empregáveis pois não há empregos para elas. Para começar com um exemplo simples, dez anos atrás era relativamente aceito que os computadores e a Inteligência Artificial nunca teriam sido capazes de dirigir carros e veículos melhor do que os seres humanos. Talvez em um laboratório, sob condições neutras, mas não em condições reais, ou em uma cidade como Londres. Hoje, mais e mais especialistas estão chegando à conclusão oposta: que é apenas uma questão de tempo — e não muito tempo, talvez em 10, 20, 30 anos — e os seres humanos não irão mais dirigir veículos, porque a Inteligência Artificial será muito melhor ao dirigir táxis, ônibus e caminhões e assim por diante, do que os seres humanos”.
Esse pode parecer um discurso apocalíptico, de que à medida que perdemos muitos de nossos empregos e funções para as máquinas, estaremos relegados a uma existência secundária no planeta Terra. Há de fato alguns pensadores que acreditam nessa possibilidade. Mas não é nesse futuro que acredito, ou melhor: não é esse o futuro que me dedico a construir.
A minha crença é de que quanto mais as máquinas assumirem funções para as quais elas são ideais (que dependam de reprodutibilidade, agilidade, eficiência, precisão e leitura de grandes volumes de dados, entre outros), mais os seres humanos serão capazes (e terão o tempo e os recursos à disposição) de se reconectar com forças e características inerentes da nossa espécie.
Sim, você ainda vai poder dirigir seu carro durante um passeio com a sua família pela orla da cidade, mas também vai poder pedir à Inteligência Artificial do carro para assumir o volante enquanto você embala seu filho no colo para que ele durma tranquilo, ou roteiriza o próximo episódio do seu podcast enquanto você se desloca para o escritório no piloto automático — e ainda vai ter uma probabilidade menor de acidentes, como resultado.
Sem uma reflexão profunda sobre o que queremos fazer com o poder que virá dessa revolução tecnológica, podemos nos encontrar em um futuro terrível de se viver. Mas, como diz Harari no brilhante “21 Lições para o Secúlo XXI“, esse futuro não está determinado: ele será o resultado das decisões humanas, e não da atuação das máquinas. Afinal, toda tecnologia humana é uma extensão da visão de mundo proposta pelos seres humanos que a desenvolvem, treinam ou utilizam.
A responsabilidade é só nossa.
Por todo esse pensamento, acredito hoje que a dicotomia entre Hard Skills e Soft Skills já não faz mais sentido. Sejamos realistas: de que adianta ficarmos fissurados na comparação entre dois blocos de habilidades, técnicas ou comportamentais, como se estivessem competindo uma com a outra, enquanto já ficou claro que não temos alternativa, mas terceirizarmos uma delas (as Hard Skills) para a tecnologia e a IA, e focarmos na categoria que nos define como seres humanos (e que convenhamos, de soft, ou seja de fraco, não tem nada!).
Na medida que as Hard Skills estão cada vez mais suportadas por máquinas, isso nos abre a possibilidade de olhar para dentro e desenvolver as áreas que a IA e os robôs não conseguem captar: as que eu vou a partir de agora definir de Human Skills, e que são a base de uma pesquisa que recentemente realizei com um time de pesquisadores para o meu segundo livro, que acabou de ser publicado, com o título “Metanoia Lab”.
O “gap”de competências humanas nas empresas
E como estão as empresas brasileiras, em relação às habilidades comportamentais? A verdade é que elas podem certamente fazer muito melhor. Como preparação para este livro, realizei uma pesquisa para obter um maior entendimento sobre como as competências humanas são enxergadas e abordadas dentro das empresas. A pesquisa contou com 264 respondentes que trabalham em cargos de RH, 70% dos quais em empresas com mais de 500 colaboradores, e operantes em mais de 20 setores diferentes da economia brasileira.
Observei uma grande discrepância entre o nível de preparo das organizações no tema e as suas necessidades: 82% dos respondentes afirmam que existe um gap maior quando o assunto são as Soft Skills do que sobre as Hard Skills entre seus colaboradores, mas apenas 42% afirmam que há um programa formal de treinamento de Soft Skills dentro da empresa.
Ao mesmo tempo, ficou evidente pela pesquisa a importância cada vez maior das Soft Skills em candidatos e colaboradores: 93% dos entrevistados declararam preferir um candidato que tenha boas Soft Skills mas sem conhecimento técnico o suficiente, a um que possua considerável conhecimento técnico, mas não boas Soft Skills.
E como medir habilidades comportamentais, finalmente? Segundo 49,8% dos respondentes, a “observação de comportamentos” é a melhor forma de medir Soft Skills, confirmando a tese que proponho no livro “Metanoia Lab” de que este é o caminho para tangibilizar as habilidades comportamentais em times nas empresas.
Este artigo foi produzido por Andrea Iorio, autor Best-Selling, palestrante, escritor sobre Transformação Digital, professor de MBA e colunista da MIT Technology Review Brasil.