Nem todo mundo lembra, mas houve época em que o usuário era obrigado a trocar o número de celular se quisesse mudar de operadora. Hoje, praticamente ninguém desconhece a portabilidade em telefonia, que, instituída em 2008, trouxe mais liberdade e flexibilidade para o cliente, ao mesmo tempo em que consolidou a competição no setor. Estamos caminhando, mas ainda estamos longe desse cenário no que se refere a serviços financeiros. Falta informação e, principalmente, sobram burocracia e entraves, mostrando que ainda há muito a fazer no processo de modernização do país.
Os números são reveladores dessa realidade. Pesquisa Datafolha encomendada pela Zetta – associação que representa empresas de tecnologia que oferecem serviços financeiros digitais – detectou que apenas 16% da população bancarizada do Brasil já tentou fazer portabilidade de crédito (6%) ou de salário (10%). Nessa última modalidade, apesar de mais comum, 44% disseram nunca ter ouvido falar nisso e, entre os 56% restantes, 40% afirmaram não saber como fazer a portabilidade.
Sim, burocracia e entraves. Metade dos entrevistados afirmou que considera o processo muito complicado ou dificultado pelos bancos. O que é parte mito e parte verdade: 2% dos entrevistados na pesquisa sabem que é possível fazer a solicitação de portabilidade de salário pela plataforma ou aplicativo do banco em muitos casos; ao mesmo tempo, e ainda segundo o estudo da Zetta, 50% dos pedidos de portabilidade desse tipo foram recusados pelos bancos entre 2019 e 2022. Histórico de inadimplência, documentação incompleta, restrições de crédito são alguns dos possíveis fatores.
O papel da tecnologia
Para o bem da população, o avanço da tecnologia tem desempenhado um papel fundamental no desenvolvimento e na melhoria da portabilidade em diversos setores, incluindo financiamentos, benefícios e previdência. A disseminação da internet e o aumento da conectividade permitiram a troca rápida e segura de informações entre diferentes instituições e sistemas, o que é essencial para facilitar a portabilidade, pois os dados podem ser transferidos eletronicamente de forma eficiente e precisa.
Um ótimo exemplo no Brasil é a criação de uma central de portabilidade numérica administrada pelos próprios participantes do mercado de celulares. Por meio da sua associação foi criado sistema centralizado responsável por gerenciar e coordenar a portabilidade de números de telefone. Um banco de dados com informações sobre os números de telefone e suas respectivas operadoras são mantidos e constantemente atualizados com as solicitações de portabilidade e as informações sobre os números transferidos.
Nessa evolução, a computação em nuvem tem sido um fator-chave. Ela permite o armazenamento seguro e acessível de grandes quantidades de dados, tornando possível o acesso e o compartilhamento dessas informações de forma ágil e flexível. Com a computação em nuvem, os usuários podem acessar seus dados e serviços de qualquer lugar e a qualquer momento, independentemente do dispositivo que estão usando.
Na ponta do usuário, os aplicativos móveis, que revolucionaram a forma como interagimos com diversos serviços, fornecem acesso instantâneo e conveniente às informações, permitindo realizar transações, monitorar benefícios e gerenciar contas de forma simples e eficiente, diretamente de um smartphone. Isso facilita a portabilidade, uma vez que os usuários podem acessar e gerenciar suas informações de qualquer lugar.
Os avanços na tecnologia de identificação digital, como biometria e autenticação multifatorial, têm contribuído para a segurança e a confiabilidade dos processos de portabilidade. Agora é possível realizar transações financeiras e acessar benefícios por meio de métodos seguros de autenticação, como impressão digital, reconhecimento facial ou códigos de segurança gerados dinamicamente. Esses recursos ajudam a garantir a autenticidade e a proteção dos dados dos usuários.
Por fim, a interoperabilidade entre os sistemas é um elemento-chave para a portabilidade. O desenvolvimento de padrões e protocolos de comunicação facilitou a integração entre diferentes instituições e plataformas, permitindo a transferência de dados e a sincronização de informações de maneira eficiente. Com as tecnologias atuais, órgãos do Estado e empresas mantêm bancos de dados centralizados contendo informações que permitem a transferência de informações por meio de padrões de comunicação, como o XML (Extensible Markup Language) ou o JSON (JavaScript Object Notation), o que permite que os dados sejam compreendidos e interpretados corretamente pelas diferentes instituições envolvidas.
Do ponto de vista dos protocolos de segurança, já é comum a garantia da segurança das informações durante a transferência utilizando protocolos criptográficos, como SSL/TLS (Secure Sockets Layer/Transport Layer Security), que fornecem criptografia e autenticação dos dados em trânsito. Todas essas comunicações se dão via APIs (Application Programming Interfaces) que são disponibilizadas para permitir a integração de sistemas e a troca de informações de forma automatizada. As APIs fornecem métodos e estruturas de dados padronizados para acessar e atualizar as informações.
Crédito e Previdência
Em que pese todo esse ferramental, ainda patinamos. No que se refere a crédito, o estudo A Portabilidade Aumentou a Competição Bancária?, do Banco Central, mostra que ele ocorre quase que exclusivamente na modalidade empréstimo consignado, da qual participam cerca de 75% dos segurados do INSS e funcionários públicos – ou seja, é inacessível para a maioria da população. Ainda segundo o estudo, a competição resultante provocou uma queda de 5% no spread médio nesse universo reduzido, em que as taxas de juros são naturalmente menores por baixo risco de inadimplência.
Outra modalidade de portabilidade relativamente conhecida é a que permite migrar o plano de previdência privada para outras instituições, sem resgatar os valores e reinvestir, evitando a cobrança de tributos. Isso é importante porque dá ao cliente a oportunidade de procurar taxas mais atraentes, além de liberdade para escolher quem vai gerir os seus recursos. Mas há, claro, uma série de prazos e regras a cumprir, como a necessária compatibilidade entre planos, por exemplo. Outro fator limitante é o fato de que a portabilidade só pode ser feita no período de acumulação, o que exclui quem já está recebendo o benefício.
Tudo muito cheio de obstáculos, tudo muito moroso, tudo pedindo modernização. Nós temos tecnologias que permitem, a partir de uma chave – o CPF, por exemplo –, ter a possibilidade de transitar ativos, barateando o custo das transações, permitindo mais competição e, principalmente, dando poder ao tomador certo de decisão, que é o usuário. Mecanismos como o Open Banking, que promove o compartilhamento de dados financeiros entre instituições por meio de APIs padronizadas e seguras, são inovadores sobretudo na maneira como levam a tecnologia mais perto da realidade das pessoas. Não por acaso, o estudo da Zetta mostra que a facilidade é um dos segredos para a portabilidade decolar: 70% dos entrevistados afirmaram que a fariam se o processo fosse tão simples quanto fazer um Pix, este ovo de colombo da praticidade.
De outra parte, há notícias animadoras. O Banco Central pretende atuar contra os juros altos do crédito rotativo do cartão de crédito promovendo a portabilidade nesse tipo de empréstimo – comum, por exemplo, nos Estados Unidos. É um público imenso: estima-se que o número de cartões tenha quase dobrado nos últimos três anos, atingindo a marca de 200 milhões de unidades ativas. A lógica se repete: com a portabilidade, permite-se que o cliente compare as taxas de juros e escolha a instituição que ofereça as melhores condições.
Já a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) incluiu na sua agenda regulatória de 2023 a portabilidade e a custódia de ativos, identificando medidas para um procedimento eficiente: permitir que o investidor solicite a transferência apenas para o custodiante de destino; melhor monitoramento do processo por parte do investidor; redução de prazos; digitalização do processo; centralização e automatização de informações.
VR e VA
E há mais a fazer do que divulgar e facilitar a portabilidade de salário, crédito e previdência. Ela pode e deve ser estendida a produtos, por exemplo, como o vale-refeição e o vale-alimentação, que hoje são definidos pela empresa que emprega uma pessoa, sem possibilidade de escolha por parte do usuário. Como não define o que quer usar, a consequência prática é que historicamente as empresas de benefícios focaram em ter algo interessante para a empresa (rebate, ou seja, pagar para ganhar um contrato). Enquanto isso, o desenvolvimento para o usuário foi baixíssimo nos últimos 10 anos. Basta lembrar que até as startups entrarem no mercado, aumentando a concorrência, usava-se no setor um cartão para cada serviço, não se permitia migrações de benefícios, além da perda do cartão implicar em dias até se receber um novo… Isso tudo está mudando com as recentes alterações legais.
A portabilidade ainda é um desafio para as empresas, que precisam acelerar a sua própria modernização. Lembrando que o aperfeiçoamento do mecanismo nos serviços financeiros também é importante para permitir uma abertura para novos agentes no mercado, além do inegável benefício que traz para a vida do cidadão. Em um futuro não muito distante, é imperativo que tudo seja tão corriqueiro quanto portar o número do telefone.