Um dia antes, na quarta-feira (29), legisladores dos Estados-membros integrantes do Parlamento Europeu já tinham aprovado o Transfer of Funds Regulation (ToFR), uma regulação sobre Transferência de Fundos popularmente conhecida como regra de viagem (travel rule), que impõe padrões de compliance aos criptoativos para reprimir riscos de lavagem de dinheiro no setor.
Diante deste cenário, é preciso explorar essas duas legislações que, devido a sua ampla abrangência, além de regularem a indústria cripto nos 27 países da União Europeia, podem servir de parâmetro para os demais integrantes do GAFI.
Neste artigo, abordaremos o que você precisa saber sobre “Markets in Crypto- Assets” (MiCA) e “Transfer of Funds Regulation” (ToFR). Veremos o que motivou a regulação europeia, os principais tópicos aprovados, quem são os atores atingidos, possíveis impactos na indústria cripto.
Como sempre é bom compreender não só os resultados, mas principalmente as razões que nos guiaram ao momento atual, vamos voltar alguns anos atrás.
A relação entre o FATF e as recém-aprovadas legislações pela UE
A Força-Tarefa de Ação Financeira (FATF), que no Brasil é mais conhecida como Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI), é uma organização intergovernamental global. Seus membros incluem a maioria dos principais estados-nação e a UE.
O GAFI não é um órgão eleito democraticamente; é composto por representantes nomeados dos Estados-Membros. Estes trabalham para desenvolver recomendações (diretrizes) sobre como cada país devem formular políticas de combate à lavagem de dinheiro e outras políticas de vigilância financeira.
Embora essas chamadas recomendações não sejam vinculativas, se um país membro se recusar a implementá-las, podem ocorrer graves consequências diplomáticas e financeiras.
Nessa linha, o GAFI lançou suas primeiras diretrizes sobre criptoativos em documento publicado no ano de 2015, mesmo ano em que o Congresso Brasileiro começou a debater o primeiro projeto de lei sobre criptomoedas.
Este primeiro documento, de 2015, que espelhava as políticas existentes do regulador americano AML FinCEN, foi reavaliado em 2019 e, em outubro de 2021, sobreveio um novo documento, intitulado “Updated Guidance for a risk-based approach to virtual assets and VASPs”, com as diretrizes atuais do GAFI sobre ativos virtuais. Eis uma das principais razões para Brasil, União Européia, Estados Unidos e demais integrantes do GAFI se empenharem em regular o mercado de criptoativos. Se olharmos, por exemplo, para as 29 das 98 jurisdições cujos Parlamentos já legislaram sobre a “regra de viagem”, todas seguiram as recomendações do GAFI no sentido de garantir que os prestadores de serviços envolvendo criptoativos verifiquem e reportem às autoridades monetárias quem são seus clientes.
Note que esta recomendação do GAFI já é exigida no Brasil desde 2019, através da Instrução Normativa 1888, cujo teor determina que as corretoras de criptomoedas do Brasil precisam mensalmente passar à Receita Federal informações sobre as operações realizadas pelos seus clientes. Ou seja, dados como titulares envolvidos na transação, quantidade de criptoativos, valor da operação e valor das possíveis taxas de serviço devem ser reportados à autoridade tributária do Brasil, sob pena de multa.
E é nesta mesma linha que os diferentes projetos de lei sobre criptoativos , atualmente em trâmite na Câmara e Senado brasileiro, estão seguindo.
O Pacote Financeiro Digital europeu
MiCA é uma das propostas legislativas elaboradas dentro do âmbito do Digital Finance Package (DFP), uma espécie de Pacote Financeiro Digital lançado pela Comissão Europeia (CE) em 2020 e que tem como principal objetivo, facilitar a competitividade e inovação do setor financeiro na União Europeia (UE), estabelecer a Europa como um criador de padrões globais e fornecer proteção ao consumidor para finanças digitais e pagamentos modernos.
Neste contexto, duas propostas legislativas – o Regime Piloto sobre DLTs e o Regulamento dos Mercados de Criptoativos (MiCA) – foram as primeiras ações tangíveis realizadas no âmbito do Pacote Financeiro Digital europeu.
No início de setembro de 2020, as propostas “vazaram” e foram adotadas pela CE no final daquele mês, assim como a regulação de Transferência de Fundos (ToFR)
Tais iniciativas legislativas foram criadas em consonância com a União Europeia dos Mercados de Capitais, uma iniciativa de 2014 que visa estabelecer um mercado único de capitais em toda a UE, um esforço para reduzir as barreiras aos benefícios macroeconômicos.
Note-se que cada proposta é apenas um projeto de lei que, para entrar em vigor, precisa ser apreciada pelos 27 países integrantes do Parlamento Europeu e pelo Conselho da UE.
Bem por isso, nos dias 29 e 30 de junho dois acordos “provisórios” sobre o ToFR e o MiCA, respectivamente, foram celebrados pelas equipes de negociação política do Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia. Tais acordos ainda são provisórios, pois precisam passar pelo Comitê de Assuntos Econômicos e Monetários da UE, seguido por uma votação em plenário, antes que eles possam entrar em vigor.
Principais tópicos “aprovados” da Regulamentação de Transferência de Fundos” (ToFR)
No dia 29 de junho, as equipes de negociação política do Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia acordaram sobre disposições do Regulamento de Transferência de Fundos no continente europeu (ToFR), também conhecidas como regras de viagem.
Tais regras detalharam requisitos específicos para transferências de criptoativos a serem observados entre provedores como exchanges, carteiras não hospedadas (como ledger e Trezor) e carteiras auto hospedadas (como MetaMask), preenchendo uma grande lacuna existente no quadro legislativo europeu sobre lavagem de dinheiro.
Dentre o que foi aprovado, seguindo a linha de recomendação do GAFI, os principais tópicos são os seguintes:
1) Todas as transferências de criptoativos terão de estar ligadas a uma identidade real, independentemente do valor (rastreabilidade com limiar zero).
2) Os provedores de serviços envolvendo criptoativos – que a legislação europeia chama de CASPs – terão que coletar informações sobre o emitente e o beneficiário das transferências que eles executam.
3) Todas as empresas que prestam serviços relacionados a criptos em qualquer paíse integrante da União Europeia se tornarão entidades obrigatórias nos termos da Diretiva de Combate à Lavagem de Dinheiro (AML) existente. 4) Carteiras não hospedadas (isto é, wallets não custodiadas por terceiros) serão atingidas pelas regras, porque os CASPs serão obrigados a coletar e armazenar informações sobre a transferências de seus clientes.
5) Medidas de compliance aprimoradas também serão aplicadas quando os CASPs da UE interagirem com entidades de países não integrantes da UE.
6) Proteção de dados: os dados das regras de viagem estarão sujeitos a requisitos sólidos da lei de proteção de dados europeia – GDPR. 7) O Conselho Europeu de Proteção de Dados (EDPB) será encarregado de definir as especificações técnicas de como as exigências da GDPR devem ser aplicadas à transmissão de dados de regras de viagem para transferências criptográficas.
8) Os CASPs intermediários que realizam uma transferência em nome de outro CASP serão incluídos no escopo e serão obrigados a coletar e transmitir as informações sobre o originador inicial e o beneficiário ao longo da cadeia.
Importante destacar que a regulação de transferência de fundos européia (ToFR) parece ter seguido na íntegra a recomendação consagrada na Recomendação 16 do GAFI.
Ou seja, não é suficiente que os provedores de serviços de criptoativos (CASPs) compartilhem dados de clientes uns com os outros. É preciso que seja realizada a devida diligência sobre outros CASPs, com que seus clientes fazem transações, como por exemplo, checar se outros CASPs executam verificações de KYC e possuem uma política de AML/CFT, ou facilitam transações com contrapartes de alto risco.
Ainda, este acordo sobre a regulação das transferências de fundos (ToFR) deve ser aprovado, em paralelo, pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho, antes da publicação no Diário Oficial da EU, e terá início impreterivelmente 18 meses após sua entrada em vigor – não sendo necessário aguardar a reforma das Diretrizes sobre Combate à Lavagem de Dinheiro e ao Terrorismo em andamento.
Principais pontos “aprovados” do “Markets in Crypto- Assets” (MiCA)
MiCA é a proposta legislativa chave que regulamenta o setor cripto na Europa, conquanto não seja a única dentro do Pacote Financeiro Digital europeu. Trata-se do primeiro marco regulatório da indústria de criptoativos em escala global, já que sua aprovação impõe regras a serem seguidas por todos os 27 países membros do bloco europeu. Há alguns dias, negociadores do Conselho, da Comissão e do Parlamento Europeu, sob a Presidência francesa, chegaram a um acordo provisório sobre a supervisão dos Mercados de Criptoativos (MiCA), durante o trílogo político de 30 de junho.
Os pontos-chave aprovados neste acordo são os seguintes: 1) Tanto a European Securities and Market Authority (ESMA), equivalente à CVM brasileira, quanto a European Bank Authority (EBA) terão poderes de intervenção para proibir ou restringir a prestação de serviços criptoativos pelos CASPs, bem como a comercialização, distribuição ou venda de criptoativos, em caso de ameaça à proteção do investidor, integridade do mercado ou estabilidade financeira.
2) ESMA também terá um papel de coordenação significativo para assegurar uma abordagem consistente à supervisão dos maiores CASPs com uma base de clientes acima de 15 milhões.
3) ESMA será encarregada de desenvolver uma metodologia e indicadores de sustentabilidade para medir o impacto dos criptoativos no clima e no meio ambiente, bem como classificar os mecanismos de consenso usados para emitir criptoativos, analisando seu uso de energia e estruturas de incentivo.
Aqui, importante destacar que, recentemente, a Comissão de Assuntos Econômicos e Monetários do Parlamento Europeu decidiu excluir do MiCA (por 32 votos a 24) proposta de disposição legal que tentava proibir, nos 27 países membros da EU, o uso de criptomoedas alimentadas pelo algoritmo da “prova de trabalho”.
4) O registro de entidades, com sede em terceiros países, operando na UE sem autorização será estabelecido pela ESMA, com base nas informações submetidas pelas autoridades competentes, supervisores de terceiros países ou identificados pela ESMA. As autoridades competentes terão poderes de longo alcance contra entidades listadas.
5) Os provedores de serviços em criptoativos (CASPs) estarão sujeitos a robustas salvaguardas de Combate à Lavagem de dinheiro (AML).
6) Os CASPs da UE terão que ser estabelecidos e ter gestão substantiva na UE, incluindo um diretor residente e escritório registrado no Estado-Membro onde solicitam autorização. Haverá verificações robustas na administração, as pessoas com participações qualificadas no CASP ou pessoas com vínculos estreitos. A autorização deve ser recusada se as salvaguardas da AML não forem cumpridas.
7) Corretoras de criptoativos (exchanges) terão responsabilidade por danos ou perdas causadas a seus clientes devido a hacks ou falhas operacionais que eles deveriam ter evitado. Quanto às criptomoedas, tais como Bitcoin, a corretora terá que fornecer um white paper e ser responsável por qualquer informação enganosa fornecida.
Aqui, é importante saber a diferença entre as espécies de criptoativos. Tanto criptomoedas como tokens são espécies de criptoativos, e ambos são utilizados como uma forma de armazenar e transacionar valor.
A principal diferença entre eles é lógica: criptomoedas representam transferências de valor “incorporadas ou nativas”; tokens representam transferências de valor “personalizáveis ou programáveis”.
Uma criptomoeda é um ativo digital “nativo ou incorporado” em determinada blockchain, que representa um valor monetário. Você “não” consegue programar uma criptomoeda; isto é, você não consegue alterar as características de uma criptomoeda, que são determinadas em sua blockchain nativo.
Já os tokens são um ativo digital “personalizável/programável” que rodam em um blockchain de 2ª ou 3ª geração que admite contratos inteligentes (códigos de software) mas avançados como o ethereum, tezos, rostock (RSK), solana, dentre outros.
Mas prosseguindo com os pontos chaves do MiCA recém-aprovados na União Européia.
8) Os CASPs terão que segregar os bens dos clientes e isolá-los. Isto significa que os criptoativos não serão afetados em caso de insolvência de uma corretora.
9) CASPs terão de dar avisos claros aos investidores sobre o risco de volatilidade e perdas, totais ou parciais, associadas aos criptoativos, bem como cumprir as regras de divulgação de informações privilegiadas. As operações com informações privilegiadas e a manipulação de mercado estão estritamente proibidas.
10) As stablecoins ficaram sujeitas a um conjunto de regras ainda mais restritivo:
● Os emissores de stablecoins serão obrigados a manter reservas para cobrir todas as reivindicações e fornecer um direito de resgate permanente dos detentores.
● As reservas serão totalmente protegidas em caso de insolvência, o que teria feito a diferença em casos como a Terra/Luna.
● Foram impostos limites máximos para evitar a expansão de stablecoins como meio de pagamento.
Apresentado pela primeira vez em 2020, o MiCA passou por várias iterações antes de chegar a este ponto, sendo que algumas disposições legislativas propostas se mostraram mais controversas do que outras, como é o caso dos NFTs que permanecem fora do escopo, mas podem ser reclassificados pelos supervisores caso a caso.
Isto é, os tokens não fungíveis que são oferecidos ao público a um preço fixo, como para ingressos para um evento ou como um item dentro de um videogame, ficaram fora das novas regras — embora nas discussões do acordo sobre o MiCA tenha sido ressaltado que NFTs podem ser introduzidos no escopo da MiCA em uma data posterior. Na mesma linha, DeFi e empréstimos cripto ficaram fora neste acordo sobre o MiCA, mas um relatório com possíveis novas propostas legislativas terá que ser apresentado até 18 meses após sua entrada em vigor.
Quanto às stablecoins, foi cogitada sua vedação. Mas ao final, permaneceu o entendimento de que proibir ou limitar totalmente o uso de stablecoins dentro da União Europeia não seria
consistente com os objetivos definidos no nível da UE para promover a inovação no setor financeiro.
Diferentes visões sobre o tema
Logo depois que a celebração dos acordos sobre o ToFR e o MiCA foi noticiada, houve manifestações de todo o tipo.
Alguns criticaram o ToFR, apontando, por exemplo, que apesar dos legisladores terem cumprido seu papel, as medidas de identificação da origem e destinatário aprovadas só conseguirão alcançar as moedas digitais dos Bancos Centrais, mas não as redes blockchain com foco em privacidade como Monero e Dash.
Outros defenderam a necessidade de uma estrutura harmonizada e abrangente como o MiCA, que traz clareza regulatória e limites para que os players da indústria consigam operar seus negócios com segurança nos diversos países integrantes da União Europeia.
Você acredita que os formuladores de políticas europeus conseguiram usar essa oportunidade para construir uma estrutura regulatória sólida de ativos digitais, que promova a inovação responsável e mantenha os maus atores à distância? Ou pensa que novos meios de transações surgirão para impedir a rastreabilidade dos criptoativos com limiar zero? Enxerga a necessidade de uma regulamentação para se evitar a perda de mais de US$ 1 trilhão em valor da indústria de ativos digitais nas últimas semanas, causado pelo risco anunciado das stablecoins algorítmicas? Ou acredita que a auto-regulamentação do mercado é suficiente?
É verdade que o ajuste do mercado está sacudindo muitos golpistas e fraudadores. Mas infelizmente, também está prejudicando milhões de pequenos investidores e suas famílias.
Independente do posicionamento que se adote, como uma indústria, o setor de criptoativos precisa estar atento à responsabilidade perante os usuários, que podem abranger desde sofisticados investidores e tecnólogos até aqueles que pouco sabem sobre instrumentos financeiros complexos.
Este post foi produzido por Tatiana Revoredo, Membro fundadora da Oxford Blockchain Foundation, representante no European Law Observatory on New Technologies e colunista do MIT Technology Review do Brasil.