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“Ligar” e “desligar” são operações de fácil execução nos hardwares, até mesmo por comandos de Inteligência Artificial (IA), mas têm se tornado cada vez mais desafiadoras para o organismo humano. Se um telefone celular é conectado a uma fonte de energia, por exemplo, ele pode continuar em uso sem um prejuízo significativo de desempenho no curto prazo. O problema, para as pessoas, é que condições fisiológicas e neurológicas fazem com que a “bateria biológica” só seja recarregada se houver, de fato, um tempo off. E há horário para isso.
No centro da hiperestimulação da sociedade contemporânea, a tecnologia tem sido, paradoxalmente, uma alternativa para o tratamento de insônias. Soluções baseadas em Inteligência Artificial e terapias digitais fazem frente a intervenções que perpassam por remédios controlados, homeopatia, tinturas, florais, fitoterápicos e uma gama de outros produtos disponíveis no mercado.
A insônia é um tipo de distúrbio do sono caracterizados pela dificuldade de adormecer ou de manter um ciclo de sono noturno sem interrupções, com manifestações agudas ou crônicas. Segundo os dados mais recentes divulgados pela Associação Brasileira do Sono (ABS), datados de 2021, cerca de 73 milhões de pessoas no país sofrem de insônia, sendo 22% de maneira crônica.
As origens do distúrbio são variadas e podem estar associadas a outras questões clínicas e comportamentais, como depressão, ansiedade, estresse, excesso de exercício físico antes de dormir, consumo de álcool e drogas, entre outras. Contudo, o entendimento de médicos e especialistas é que o chamado “mundo 24 horas”, onde serviços, atividades e pessoas “nunca desligam”, tem impulsionado um número cada vez maior de pessoas para a ausência parcial ou total de sono.
A médica Letícia Azevedo Soster, neurofisiologista e especialista do sono no Hospital Israelita Albert Einstein, avalia que a mudança comportamental para o enquadramento em uma dinâmica social pautada no imediatismo tem causado adoecimento.
“No consultório, o que percebo é que as pessoas têm dormido menos e cada vez pior. Vivemos em uma sociedade que se coloca como ‘24 horas’, mas somos animais sincronizados com o meio. Nosso corpo não é programado para isso [ausência de sono]. O normal é repouso no escuro e atividade no claro”, afirma.
A pressão por produtividade acaba levando uma mensagem distorcida ao cérebro. Geralmente, os casos de insônia apresentam um padrão clássico: ansiedade para conseguir dormir e, diante da dificuldade, preocupação com o rendimento no dia seguinte. “As pessoas não entendem que não têm um botão de ligar e desligar”, avalia Letícia.
No fim, um quadro clínico de insônia acaba causando danos que prejudicam, justamente, o desempenho de atividades. Além dos fatores neurológicos, há uma explicação simples para a falta de energia: “É comum as pessoas sustentarem um jejum de oito horas quando se está dormindo, mas é muito mais difícil durante o dia. Conseguimos dormir oito horas seguidas à noite, mas de dia é mais difícil”.
O uso desregulado de medicamentos na tentativa de corrigir distúrbios do sono gera preocupação e pode desencadear problemas mais graves. Em busca de soluções rápidas, pacientes podem acabar entrando em uma espiral de remédios: para dormir, para acordar e para estabilizar o humor ao longo do dia.
“Não é o correto. É como uma pessoa que come tudo o que quer, engorda 10 quilos, marca uma festa e quer entrar em uma roupa menor que o corpo. Um remédio não vai resolver o problema da noite para o dia”, diz.
A médica cita como um exemplo extremo a experiência vivida pelo cantor Michael Jackson, que sofria de insônia crônica e acabou falecendo, em 2012, em decorrência do uso abusivo de medicação anestésica para adormecer.
“Precisamos ter um limite social, e cada vez mais as pessoas estão querendo medicamentos. A primeira coisa é se conhecer, saber o quanto de sono precisa, aprender a ouvir os sinais do corpo, da cabeça, de estafa. Tem que olhar para si, para dentro, para conseguir procurar ajuda”, orienta a médica.
Para ter um sono de qualidade, é preciso respeitar o organismo e criar hábitos saudáveis. “É importante estabelecer regras como não mexer no telefone, não consumir conteúdos negativos e não acessar redes sociais, que estimulam um raciocínio veloz e não permitem que o cérebro relaxe”, recomenda. “O tipo de coisa que consumimos nos mantém mais alerta”, finaliza a especialista do Einstein.
Inteligência Artificial para reeducar
Se em alguns casos a tecnologia pode prejudicar o sono, ela também dá vida a novas soluções. Aplicativos como os desenvolvidos pelas startups Vigilantes do Sono e SleepUp, ambas apoiadas pela Eretz.bio, que é a incubadora de startups do Einstein, são exemplos dessa abordagem.
A Vigilantes do Sono, desenvolvedora da Inteligência Artificial Sônia, aposta em um protocolo digital de terapia cognitivo-comportamental para a insônia (TCC-I). Com base nele, a IA sugere a adoção de horários fixos para dormir, levantar, abandonar o uso do celular na cama, entre outras recomendações.
As medidas buscam reduzir o tempo que a pessoa precisa para adormecer e aumentar o período de sono em até 60 minutos a mais por dia, segundo métricas da startup. O tratamento virtual tem um protocolo claro, com interações diárias e um material elaborado por psicólogos especializados em sono, que passa a fazer parte da rotina do paciente.
Lucas Baraças, cofundador e CEO da Vigilantes do Sono, explica que esse tipo de terapia é amplamente reconhecida internacionalmente, inclusive para outros tratamentos, como contra ansiedade, depressão e tabagismo.
“Fora do Brasil, em países da Europa e nos Estados Unidos, a terapia já é muito mais conhecida. Esse é o padrão ouro do tratamento para a insônia. A nível científico, é recomendado que se faça antes da terapia farmacológica”, afirma.
A terapia comportamental aposta em técnicas como meditação, respiração profunda e planejamento de atividades. De acordo com as bases do tratamento, essas são formas de tranquilizar o pensamento de forma que o relaxamento leve ao adormecimento.
“São aspectos diários que podem mudar, técnicas que podem ser aplicadas para dormir melhor e fazer o paciente entender o tempo ideal de sono”, detalha.
Lucas Baraças ressalta que os medicamentos não podem ser desprezados, mas que a prudência no uso deve ser observada.
“Se a pessoa tem um problema para dormir, pode tomar um remédio ou fazer uma terapia comportamental. O medicamento não é ruim, ele funciona. Mas o ponto importante é que a terapia comportamental é mais eficaz a longo prazo. O médico não tem controle sobre como o paciente usará o medicamento, e o mundo moderno exige resultados cada vez mais rápidos”, avalia.
Jornada do paciente e arquitetura do sono
A SleepUp, por sua vez, oferece terapias comportamentais e cognitivas baseadas em psicologia e medicina do sono, além de recursos de relaxamento e de meditação. A startup recebeu autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para comercializar seu tratamento para distúrbios do sono em agosto de 2021.
Na prática, a solução atua na jornada inteira do paciente e conta com o suporte de especialistas por telemedicina. A engenheira Renata Redondo Bonaldi, sócia e cofundadora da SleepUp, explica que a terapia digital é como um software médico. “Como existe uma quantidade pequena de psicólogos que trabalham com o sono, transformamos isso em um protocolo digital”, comenta.
Para ela, o uso de medicamentos pode servir para controlar os sintomas, mas não trata as causas da insônia. “O tratamento farmacológico deve ser restrito. A terapia digital pode ser uma alternativa ao medicamento porque tem mais eficácia a longo prazo. Os medicamentos trazem efeitos colaterais, tolerância e, em algum momento, eles param de funcionar”, avalia.
Estudos clínicos desenvolvidos pela empresa mostram que a terapia digital melhora a segurança e a eficácia dos medicamentos até mesmo em casos em que o tratamento farmacológico é a principal estratégia contra a insônia.
Nos próximos meses, a SleepUp lançará um monitoramento do sono em tempo real, na casa do paciente, com o objetivo de avaliar o impacto dos medicamentos na chamada “arquitetura do sono”.
“O médico, normalmente, tem uma única foto da arquitetura do sono do paciente por mês. O monitoramento através do encefalograma portátil ajudará a ter um registro mais real do que ocorre ao longo do tempo. É uma inovação para ajudar quem faz uso desse tipo de tratamento”, explica a cofundadora da startup.
A terapia cognitiva-comportamental tem o aspecto da adequação da rotina, mas não somente. “Trabalha-se o lado comportamental, mas tem também a questão cognitiva. São pensamentos, ansiedade, preocupações, medos que atrapalham o adormecer”, pondera.
Estudos da empresa revelam que 10% da população toma medicamentos para dormir todos os dias. “As pessoas estão tomando remédio, se viciando com facilidade e às vezes até sem receita médica. O uso medicamentoso está fora do controle”, alerta.
Com a terapia digital, é possível desenvolver um protocolo clínico individualizado, de forma remota, dentro de uma abordagem de medicina personalizada. Essa combinação de terapias para o tratamento de pacientes tem sido usada até mesmo pela indústria farmacêutica.
“Estamos saindo da venda de caixinha para a entrega de saúde, de valor para os pacientes. As terapias digitais estão crescendo 26% ao ano, e diante da falta de profissionais humanos nessa área, elas também tornam o tratamento acessível e democrático”, conclui Renata.