Futuro do trabalho: mais tempo para quê?
Inteligência artificial

Futuro do trabalho: mais tempo para quê?

De forma similar à máquina de lavar, a Inteligência Artificial está promovendo mudanças comportamentais importantes, da vida pessoal ao mundo profissional. Com mais tempo e auxílio mais eficiente para desempenhar as atividades do dia a dia, o que o profissional do presente fará com o tempo que sobrará no futuro?

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Hans Rosling no palco

Hans Rosling foi médico e estatístico; professor de Saúde Internacional no Instituto Karolinska, na Suécia; cofundador da Fundação Gapminder; destacado como uma das cem pessoas mais criativas nos negócios pela Fast Company, em 2011; e como uma das cem personalidades mais influentes do mundo pela revista Time, em 2012. Ele ficou conhecido mundialmente por suas aulas e palestras divertidas no TED, em que apresentava gráficos animados e intrigantes em forma de narrativas para capturar a atenção da plateia, levando-a de forma didática e criativa à total compreensão dos dados apresentados.

Visionário dos dados, Hans Gosling (1948-2017) é a pessoa que me vem à mente — por sua história e legado — ao refletir sobre como o desenvolvimento de tecnologias pode tornar o trabalho mais inteligente e mais eficiente, convertendo tempo desperdiçado em tarefas desgastantes e repetitivas em maior disponibilidade para aspectos prioritários e satisfatórios de nossas vidas.

Como um homem empolgante que cultuava os dados e sua riqueza de informações, me impressionou com sua simplicidade ao explorar o tempo como um recurso em “A mágica máquina de lavar roupas”, palestra na qual discorre sobre como esse eletrodoméstico colaborou para a construção de um mundo melhor — aumentando o tempo dedicado pelos pais à educação dos filhos, além de abrir caminho para uma partilha mais igualitária das responsabilidades domésticas, levando-nos em direção a um mundo que desejamos: no qual homens e mulheres lavam roupa.

Bem, ainda não estamos vivendo assim globalmente, em sociedades totalmente igualitárias. Mas certamente muitos países são sociedades bem mais igualitárias do que já foram. Nesta mesma palestra, Hans Gosling estabelece de maneira bem-humorada uma divisão do mundo em “abaixo ou acima da linha de lavagem” e avalia o quanto a máquina de lavar interferiu em sua história pessoal levando-o a ser a pessoa que se tornou.

Apesar de seu vídeo ter mais de uma década de postado, nos traz uma reflexão válida para os dias atuais. Afinal, estamos desbravando uma nova tecnologia que promete, de maneira nunca vista, transformar a forma como nos relacionamos com o mundo, modificando as relações de trabalho, acelerando processos, suprimindo etapas e estabelecendo novos paradigmas com os quais teremos de nos adaptar — de maneira análoga à máquina de lavar, que trouxe avanços ao liberar tempo das mães para dedicar à educação dos filhos e aumentou a equidade na divisão de tarefas entre gêneros. Seria, portanto, a AI generativa uma aliada que vai nos colocar de frente e ao mesmo tempo nos auxiliar a solucionar os problemas sistêmicos e complexos que nos afligem atualmente?

Prefiro pensar que sim. Prefiro pensar que, assim como aquela mãe que nos anos 50 dedicou-se a ensinar a leitura para seu filho, agora, pais esforçados se dedicarão a resgatar suas crianças e adolescentes da terceirização da educação e do sequestro dos meios digitais; educadores se dedicarão a repensar o sistema de ensino e capacitação; cientistas se dedicarão a ampliar as fronteiras do conhecimento humano e a restaurar o equilíbrio do nosso planeta; profissionais competentes se dedicarão a elevar saúde, educação, cultura e a vida em sociedade a outro patamar de satisfação e bem-estar.

No entanto, a realidade é mais complexa. A IA é uma ferramenta poderosa que pode, sim, transformar o mundo para melhor de diversas formas. Mas é fundamental que a utilizemos com responsabilidade e ética, garantindo que ela beneficie o todo, não apenas grupos privilegiados, evitando uma nova divisão ‘abaixo ou acima da linha da IA’.

O que podemos aprender com as máquinas de lavar roupa

A alocação de investimentos em pesquisa e desenvolvimento de IA, como em qualquer outro campo, tende a se concentrar em áreas de interesse econômico, militar e político, em que o retorno financeiro e o poder são os principais motivadores. Isso implica em riscos já observados no uso da IA e com tendência a escalar, tais como:

  • Ampliação das desigualdades sociais: o aumento da automatização de tarefas e a substituição de mão de obra pode levar ao aumento do desemprego, da pobreza e à perda de dignidade, principalmente entre os grupos mais vulneráveis.
  • Uso prevalente para fins militares: a utilização desenfreada da IA para desenvolvimento de armas autônomas e sistemas de vigilância já está levando a uma corrida armamentista e a um aumento da instabilidade global.
  • Concentração do poder nas mãos de poucos: o controle da IA por grandes empresas e governos levando à manipulação da informação, à violação da privacidade e à polarização da sociedade.

Esses impactos já estão sendo percebidos e discutidos, mas ainda não estão sendo endereçados com a urgência que o tema demanda. Existe até mesmo um cenário geopolítico da IA que está se favorecendo da falta de organização e de diretrizes globais para avançar em todas as direções antes que haja o estabelecimento de políticas e marcos legais a respeito do tema — o que concordamos ou não fazer com a IA, quais os limites éticos que determinam benefícios e prejuízos, assim como responsabilizações.

Por isso, precisamos acelerar essa discussão e avançar sobre os temas:

  • Marco regulatório global para a IA: estabelecer um marco para definir princípios éticos para o desenvolvimento e uso da IA, garantindo que ela seja utilizada de forma transparente, responsável e justa.
  • Pesquisa e o desenvolvimento de IA para o bem social: financiamento e promoção de pesquisas que busquem soluções para problemas sociais e ambientais, como pobreza, fome, doenças, meios de comunicação e mudanças climáticas.
  • Participação da sociedade civil no debate sobre a IA: é fundamental que a sociedade civil tenha voz e participe ativamente da discussão sobre o futuro da IA, garantindo que seus valores e preocupações sejam considerados.
  • Educação da população sobre os riscos e benefícios da IA: é importante que as pessoas entendam como a IA funciona e quais são seus potenciais impactos, para que estejam incluídas nas transformações, que possam ser capazes de tomar decisões e aplicá-las para seu uso e benefício.

Como uma boa curiosa, fico tentando imaginar os insights que Hans Gosling nos traria a respeito dessa que promete ser a nova revolução cognitiva. Imagino que ao menos devemos tomar as lições básicas das máquinas de lavar roupa como um aprendizado. No Brasil, nem todas as mães que compraram essas máquinas desde seu lançamento, nos anos 50, puderam dedicar tempo extra exclusivamente a seus filhos, porque muitas tiveram que sair para trabalhar. Mas, de maneira curiosa, as máquinas de lavar contribuíram para a educação quando, por iniciativa de educadores, foram trazidas para a escola, ajudando a aumentar a frequência e a reduzir faltas de crianças carentes que deixam suas roupas para serem lavadas enquanto assistem às aulas.

Como nos beneficiar mais igualitariamente da IA?

Já não sendo, há muito tempo, a estrela da vez, em 2022 a máquina de lavar roupa perdeu mais espaço em seu status de item doméstico revolucionário. Ela deu lugar ao computador e ao celular, que despontou como o item mais imprescindível nos domicílios do país. Se considerarmos que a máquina de lavar demorou cerca de 70 anos para atingir 70% dos lares brasileiros (IBGE 2022), enquanto o smartphone demorou pouco mais de 30 anos para chegar a quase 100% dos domicílios do país (ao menos um morador com o aparelho), já podemos estimar a velocidade de penetração e cobertura da IA generativa em nossa sociedade.

FONTE: IBGE 2022

Pela lógica, a próxima pergunta, então, seria: como nos beneficiar mais igualitariamente da IA? E a resposta que temos, nesse momento, é que, apesar de todos já utilizarmos IA de várias formas, a IA generativa vai causar mudanças profundas nas estruturas sociais e no trabalho que demandarão adaptações e habilidades que nos darão domínio sobre essa ferramenta e que devem ser desenvolvidas agora. É o que dizem especialistas, desenvolvedores, empreendedores e investidores que estiveram presentes na última edição da WebSummit Rio, em abril.

No trabalho, há um consenso de que funções repetitivas devem ser substituídas rapidamente, criando espaço para atividades que demandam outras habilidades. E mais que isso, o nosso valor como profissional residirá em um conjunto de habilidades e competências diversificadas que, quando combinadas, serão cruciais para empregar com IA, mas que não serão substituídas por ela. Isso não somente leva a uma profunda transformação, mas à emergência de uma nova lógica de trabalho que demanda adaptações aos profissionais de todas as áreas e que deve ser iniciada agora.

Habilidades técnicas: básico essencial, mas não suficiente

As habilidades técnicas específicas dos especialistas, antes consideradas os pilares fundamentais do sucesso profissional, agora dividem espaço com novas capacidades essenciais para prosperar na era da IA. O pensamento lógico e analítico torna-se fundamental para compreender e interpretar os dados gerados pela tecnologia, possibilitando a tomada de decisões estratégicas e a extração de insights importantes.

Aprendizagem contínua e resiliência

A capacidade de aprender continuamente assume um papel central nesse novo panorama. A rápida evolução das tecnologias e a constante criação de novas ferramentas exigem que os profissionais estejam em um processo permanente de aprendizado, buscando se atualizar e adquirir novas habilidades. A adaptabilidade torna-se crucial para navegar em um ambiente em constante transformação, absorvendo as mudanças e encontrando novas oportunidades em cenários desafiadores.

Relação colaborativa com IA

A colaboração com a IA torna-se uma habilidade essencial para o sucesso — ao invés de temê-la, como uma ameaça, enxergá-la como uma aliada poderosa. A capacidade de trabalhar em conjunto com a IA, aproveitando seus recursos e explorando suas potencialidades, abre possibilidades de otimizar processos, aumentar a produtividade e alcançar melhores resultados.

Habilidades socioemocionais: preservar a essência humana em um mundo digital

A inteligência emocional assume um papel fundamental para navegar nas complexas relações interpessoais e nos desafios emocionais que surgem nesse novo ambiente de trabalho. A empatia, a comunicação eficaz e a capacidade de gerenciar conflitos são habilidades cruciais para construir um ambiente onde relacionamentos saudáveis e produtivos, tanto com colegas de trabalho quanto com clientes e parceiros, possam florescer.

Criatividade, um potencial humano

A criatividade se torna um diferencial crucial para se destacar nesse mundo cada vez mais automatizado. A capacidade de imaginar e pensar de forma inovadora, gerar novas ideias e encontrar soluções criativas para problemas sistêmicos e complexos é o grande trunfo do ser humano em relação à máquina. A criatividade permite a criação de valor agregado, a identificação de novas oportunidades e a construção de um futuro promissor.

A comunicação construindo pontes

A comunicação e os relacionamentos interpessoais se tornam essenciais para garantir uma interação eficaz tanto entre equipes como entre humanos e máquinas. A capacidade de se expressar de forma clara, concisa e objetiva, tanto verbalmente quanto por escrito, é fundamental para transmitir ideias, instruções e informações de forma precisa e eficiente.

O futuro do trabalho é aqui e agora

No último dia do WebSummit tomei a decisão de mergulhar o mais fundo possível no tema e me preparei para entrevistar as diversas camadas de profissionais envolvidos com IA presentes no evento. Extremamente rica e produtiva, minha exploração trouxe novas perspectivas, confirmações e insights. E, claro, conversas interessantíssimas com pessoas interessantíssimas.

Além de conhecer jornadas inspiradoras, um destaque foi encontrar um ponto em comum entre esses atores, que é um determinado perfil de quem já colocou a IA para jogo: profissionais nem tão jovens assim, com boa experiência na bagagem e em várias áreas também; formação extensa em áreas diversas; espírito de empreendedor e mindset de crescimento (“o apreendedor”) no melhor estilo “vou usar tudo o que tenho e, se precisar mais, vou buscar até conseguir ter o que preciso”.

Um desses casos é o de Mauro Favoretto Jr, founder e CTO da startup PostSucesso. Seu segundo empreendimento de sucesso é uma IA que constrói posts para o Instagram. Favoretto tem a IA como principal parceira para o desenvolvimento e otimização de seu trabalho, construiu a ferramenta de sua atual empresa em seis meses, programando somente em parceria com a IA, o que permitiu a ele fazer o trabalho de três ou quatro pessoas, ter soluções de forma rápida e clara. Além disso, quando já não vinha com a solução pronta, a AI apontava uma direção para que ele pudesse encontrar a resposta rapidamente.

Favoretto é, aos 42 anos, um expoente do profissional do momento: formado em Física pela USP, é programador e desenvolvedor com experiência e atuou na área de marketing por cinco anos. Em sua visão, o seu blend de conhecimentos lhe permite, junto com a IA, percorrer de ponta a ponta a cadeia de processo: enxergar os problemas, encontrar caminhos para solucioná-los, construir ferramentas e disponibilizá-las no mercado. Ele reconhece que foi a IA que o permitiu integrar suas diversas áreas de conhecimento, aperfeiçoar sua escrita e possibilitar que ele voltasse a programar. E foi essa potencialização de experiências, habilidades e conhecimento diversificados — um Clash de Domínios — que viria a viabilizar e tornar realidade seus projetos e empreendimentos. Em sua visão, a IA não pode mais ser ignorada, porque não está restrita ao mundo do TI, é preciso que profissionais de todas as áreas rompam a passividade e busquem conhecimento e desenvolvimento de habilidades para lidar com ela.

A provocação aqui é sobre o chamado “futuro do trabalho”, que não está no futuro, mas no aqui e agora. A transformação que vislumbramos já está em curso e quem ainda está discursando sobre o “futuro” não entendeu o movimento dinâmico transformador do presente.

As gerações Y e Z, dia após dia e de forma determinada, estão reconfigurando as relações de trabalho, rejeitando tudo o que pensam não ser mais aceitável, justo, equilibrado ou que não construa um mundo melhor para eles. O quiet quitting não está acontecendo com eles, mas a partir deles em direção aos antigos modelos: morte aos antigos padrões na medida em que já vão instalando os novos, de acordo com o que faz sentido para eles.

Como mencionei gerações Y e Z, finalizo com a boa notícia para todas as gerações: com a incorporação da IA, estaremos todos partindo para uma nova construção, portanto, aprendendo, expandindo, desenvolvendo habilidades, misturando conceitos, combinando e recombinando, potencializando e otimizando. Se você é Baby Boomer ou da Geração Z, provavelmente também tem seu repertório de conhecimentos e experiências para trazer para o jogo. A questão é entrar com a perspectiva de que em breve não responderemos mais ao atual modelo, mas criaremos um novo, do qual certamente todos seremos mestres e aprendizes.

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