Uma evolução tecnológica, por mais disruptiva que seja, só se realiza com o fator humano. Se ao longo dos séculos as inovações técnicas moldaram a forma como vivemos em sociedade, produzimos e nos relacionamos, são as pessoas que estão no centro dessas transformações. No âmbito das empresas, isso nos lembra que não há como adotar uma nova tecnologia sem que os times envolvidos acreditem no processo, engajem-se e comprometam-se com ele.
É o fator humano que tornou bem-sucedida, por exemplo, a aposta que o iFood fez em 2018 na Inteligência Artificial, com o objetivo de criar vantagens competitivas. Numa época em que pouco se falava disso no Brasil, a empresa abraçou o desenvolvimento de ferramentas de IA para ganhar inteligência no seu processo decisório em um negócio que crescia de maneira exponencial. Isso se traduziu na transformação da cultura, numa jornada de inevitáveis erros e conflitos, mas também de muitos acertos e inovações decisivas.
Uma jornada de executivos e de cientistas, todos trabalhando cada vez mais próximos. É essa história que eu e o cientista de dados Sandor Caetano, então VP de IA do iFood, contamos no livro O Cientista e o Executivo, que acaba de chegar às livrarias. Narramos um desafio que é sobretudo de visão, comunicação e gestão, porque — não custa repetir — estamos falando de gente, não de máquinas. Foi assim que identificamos dez pontos que todo líder deve atentar no processo de evolução rumo à Inteligência Artificial.
Jogando junto
O primeiro deles refere-se à necessidade de criar uma visão simples, mas de longo prazo, que possa dar aos times uma perspectiva clara sobre o futuro – um futuro em que elas precisarão abandonar certas práticas e abarcar outras, mais ágeis e eficientes. Essa visão deve ser comunicada incessantemente por uma liderança clara, mantendo as equipes mobilizadas para a evolução. O líder precisa apontar o caminho para os demais, sem deixar a mensagem cair no vazio. Em primeiro lugar, ele deve fornecer apoio, para logo depois desafiar os times.
Além de mobilizadas, as pessoas precisam ser qualificadas. Contratar e reter talentos é fundamental. Isso foi uma dificuldade em particular do iFood, uma vez que o processo foi iniciado no fim de 2018, quando a mão-de-obra especializada era escassa. Internamente, ganhou impulso um processo permanente de upskilling e reeskilling dos talentos. Para os que resistirem, não tem jeito: o caminho é a porta de saída.
Além disso, foi criada uma certificação para formar os Business Analyst Heavy Data Users (BADHUs). Com ela, tornou-se possível dar autonomia aos times, que ganharam familiaridade com o universo tecnológico — tudo em nome da velocidade, com as pessoas habilitadas a acessar os dados, sem manter a dependência do pessoal de TI. Trata-se, ainda, de facilitar a comunicação de todos os times como os de tecnologia.
Se todos passam por um letramento de dados, os times de tecnologia precisam, de seu lado, compreender a natureza do negócio. Simplesmente, nada disso funciona se engenheiros, analistas e cientistas de dados chegarem a soluções mirabolantes, mas se absterem de tomar decisões, como se isso fosse tarefa apenas dos executivos. Esse é um muro que não pode existir. O pessoal técnico tem que se sentir como dono, precisa saber que tem algo a perder. É o chamado Skin in the game: colocar sua pele em risco.
Tudo isso precisa estar alinhado de tal forma que, pouco a pouco — ou melhor, aos saltos —, a IA acabe sendo absorvida pelo modelo de negócio, tornando-se uma engrenagem da empresa. Um dos principais pontos é evitar a todo custo a criação de um setor de excelência para atender as demandas de toda a empresa. Insisto: descentralizar dados é o único caminho, transformando todos os times em times de Inteligência Artificial.
A toda velocidade
A mudança de mentalidade é outro ponto crucial. O pessoal de tech precisa se habituar com entregas constantes, criando as peças de código que vão constituir os modelos e entrar em produção. É o mindset shippador. A capacidade de fazer entregas rápidas também faz parte da consolidação de uma nova cultura, sem que haja o risco de os times se perderem em meio a preciosismos.
Um lema, aliás, para ser lembrado sempre: a velocidade é mais importante que a perfeição. É imprescindível que ocorram conquistas rápidas, porque são elas que vão tangibilizar a visão no curto prazo. Essas quick wins vão mostrar que é possível ir ainda mais longe. O segredo é estar sempre em movimento — e. por isso. é melhor esquecer os meses de planejamento, a burocracia das planilhas e dos powerpoints: monte um squad e acelere a jornada disruptiva. Se erros ocorrerem, não há necessidade de caça às bruxas, basta corrigi-los com igual rapidez e seguir em frente.
Das quick wins, passamos a um momento de inflexão: a necessidade de entrega de um resultado transformador. Todo o desafio de um change management tem sua versão concentrada nesse ponto decisivo, em que é preciso escolher os primeiros obstáculos a enfrentar. Por mais que erros aconteçam no caminho, é preciso lembrar que processos como esses envolvem grandes investimentos, e por isso estão sujeitos às dores do negócio. Não deixe o futuro se alongar: em três anos, no máximo, a empresa deve estar transformada, sob pena de colocar tudo a perder.
No iFood, podemos citar como exemplo de resultado transformador o ETA (Estimated Time Arrival), solução que calcula com mais precisão o tempo de entrega da comida, criando uma vantagem competitiva. Outro momento decisivo em que se consolidou a percepção da transformação pode ser representado pelos modelos que revolucionaram o sistema antifraude em meio a uma grande crise de chargebacks que colocou a empresa em estado de alerta. Foi didático para todo mundo o que, sob uma gestão firme e consciente, ferramentas de IA podem trazer de ganho.
Falando em dores do negócio, é fundamental criar uma estratégia ambidestra para que a velocidade não seja incompatível com os brilliant basics, os fundamentos que fazem toda a diferença na construção de algo grandioso. Porque é preciso trocar o pneu com o carro andando. Não se pode, por exemplo, dispensar um investimento pesado em uma plataforma de dados robusta.
Com esses dez pontos, cobrimos o que é essencial numa jornada de evolução digital. Claro que eles não funcionam como receita de bolo — no dia a dia tudo é mais complexo, sujeito às armadilhas que a prática traz. Uma prática que depende das muitas pequenas decisões que o negócio exige, mas que conserva, além do horizonte, a perspectiva real de ter a Inteligência Artificial como aliada na jornada das pessoas (sempre elas) de uma empresa rumo à inovação.
1.BARRETO, Diego e CAETANO, Sandor. O Cientista e o Executivo – Como o IFood usou a inteligência artificial para revolucionar seus processos, criou vantagem competitiva e se tornou um case mundial de sucesso. Gente, 2023