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Algoritmos de Inteligência Artificial (IA) podem ser capazes de detectar com rapidez e precisão os achados mais comuns em exames de radiografias de tórax para auxiliar no diagnóstico de doenças pulmonares ou cardiovasculares. Além de otimizar a avaliação dos médicos radiologistas, essa inovação tecnológica pode ser utilizada para suprir necessidades em locais nos quais faltam profissionais especializados, sobretudo no sistema público. Entretanto, essas aplicações potenciais ainda requerem alguns cuidados importantes.
Um dos problemas é que achados utilizados para treinar os algoritmos nem sempre são representativos da população na qual serão aplicados, e a ausência de dados regionalizados pode colocar a acurácia da IA em xeque. Isso porque, geralmente, algoritmos desse tipo são desenvolvidos e testados a partir de bases de dados internacionais limitadas, embora as populações que podem ser beneficiadas com seu uso sejam mais abrangentes e possuam características distintas.
Como, então, ter certeza de que um software de IA desenvolvido no exterior realmente funcionará no contexto brasileiro? Desde janeiro deste ano, essa verificação tornou-se possível e acessível a qualquer pesquisador interessado. O Brasil foi o primeiro país da América Latina a ter um conjunto de dados abertos de imagens de raio-x de tórax coletadas em território nacional.
O BRAX, como foi chamado esse banco de dados inédito, agrega 24.959 estudos de radiografia de tórax de pacientes, somando 40.967 imagens. A partir do processamento de informações dos laudos radiológicos, foram criados 14 rótulos que servem para que um algoritmo identifique com qual ou com quais deles o caso em análise é compatível.
O resultado foi divulgado após dois anos de trabalho de pesquisadores brasileiros do Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE) em parceria com pesquisadores do Massachusetts Institute of Technology (MIT). O projeto passou pela aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) e foi financiado pelo Global Seed Founds for MIT-Brazil.
À frente da equipe que criou o BRAX, o médico radiologista Eduardo Pontes Reis explica que um dos objetivos da iniciativa é contribuir para a redução de populações sub-representadas no processo de desenvolvimento tecnológico. As imagens no conjunto de dados brasileiro foram moduladas com as mesmas características de bases internacionais, portanto também poderão ser somadas a dados de diferentes países, beneficiando especialmente as populações latino-americanas.
“Para desenvolver qualquer algoritmo de IA, é necessário um grande volume de dados ou de imagens. Existem alguns bancos internacionais, mas não havia nenhum disponível no hemisfério sul. É muito importante você ter diversidade de dados para tornar o algoritmo mais genérico a diferentes populações. Precisávamos de uma base brasileira para saber se algoritmos desenvolvidos com dados dos Estados Unidos são aplicáveis à nossa população”, explica.
Eduardo Reis afirma que projetos como esse contribuem para a redução de vieses nas pesquisas científicas, tornando-as mais democráticas. O médico radiologista cita ainda o clássico exemplo da indústria de medicamentos, na qual a maior parte dos dados clínicos de medicamentos novos registrados no Brasil é validada com dados produzidos no exterior.
“Projetos como esse permitem a incorporação do conhecimento de países em desenvolvimento, reduzindo algum tipo de viés relacionado à população, seja para a criação de um medicamento, seja para a criação de um algoritmo. Se não houver diversidade de dados, muitos países ficam sub-representados. Iniciativas como essa permitem que a pesquisa em saúde seja mais democrática”, avalia.
O projeto foi estruturado conforme a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), garantindo a anonimização das informações nas publicação do BRAX. Nessa etapa da pesquisa, foi fundamental a atuação da equipe jurídica e de segurança do Einstein.
Todas as imagens contidas no banco de dados foram desidentificadas e passaram pela revisão de radiologistas do grupo para preservar a privacidade dos pacientes. “Nós precisamos olhar imagem por imagem para garantir a privacidade de informações pessoais”, relata o pesquisador.
IA na prática médica
E como isso pode beneficiar o sistema de saúde como um todo? Em um país com dimensões territoriais continentais como o Brasil, onde diversas regiões carecem de médicos especialistas, as inovações tecnológicas são ferramentas pensadas para equacionar assimetrias do sistema de saúde. Na ausência de um médico radiologista, um clínico-geral pode ser auxiliado por um algoritmo para diagnosticar um paciente a partir de suas radiografias, por exemplo.
“O uso é vantajoso principalmente em regiões nas quais há pouca disponibilidade de radiologistas. Você tem a população precisando de uma análise radiológica, um clínico-geral pede o exame e muitas vezes precisa interpretar, mas ele não é especialista. Então é possível que, apenas com uma foto da radiografia tirada por um smartphone através de um aplicativo, o algoritmo entregue para ele as maiores possibilidades de alterações que tem aquele exame de imagem”, exemplifica Eduardo Reis.
Na alta complexidade, área em que se enquadra o hospital, a tecnologia otimiza o atendimento médico de urgência e emergência. Antes mesmo que haja elaboração de um laudo pelo radiologista, é possível identificar quais exames têm mais alterações de acordo com o que o algoritmo detecta. O processo facilita, ainda, a elaboração do laudo pelo profissional especializado e sua interpretação para o diagnóstico.
Regulação
No Brasil, o mercado de softwares ainda é tímido, e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), responsável por regular esse tipo de ferramenta, não tem um levantamento consolidado sobre o número de registros de produtos que utilizam IA. “Esse recorte metodológico não é objeto de interesse principal para a atuação regulatória e sanitária”, informa a agência.
Atualmente, segundo a Anvisa, existem 427 softwares enquadrados como dispositivos médicos com regularização válida. Desse total, 67 são de fabricação nacional. Ainda com base na totalidade, 57 produtos são de classe de risco maior e, portanto, passíveis de registro.
Quando identifica a presença de IA em softwares que foram submetidos à regularização e as aplicações não foram exaustivamente consolidadas, a Anvisa pede informações adicionais aos desenvolvedores, por exemplo: descrição das bases de informação utilizadas para as atividades de aprendizado; verificação de IA contendo origem, quantidade e descrição de dados; relatório contendo racional justificando técnica de IA aplicada; e tamanho das bases utilizadas relatando histórico de treinamento.
Segundo a reguladora, aplicações típicas de softwares que usam tecnologia de IA regularizados no país são, por exemplo, para a análise de imagens radiológicas ou ressonância para marcação de regiões de interesse, como ortopédicas, de tecidos moles ou odontológicas. Elas são utilizadas com o intuito de auxiliar na identificação de fraturas, indicativos odontológicos, infecções, nódulos e outros. Também são comuns softwares com IA para classificações de amostras para posterior verificação de diagnóstico ou marcação de regiões em eletrocardiograma (ECG) ou eletroencefalograma (EEG).
A agência reforça que, em todos os casos, as ferramentas devem ser utilizadas apenas de forma auxiliar. “Todas as aplicações nos softwares com tecnologia IA já regularizados requerem a confirmação e classificação por profissional médico, dos dados gerados”, informa.
Este artigo foi produzido por Manoela Albuquerque, repórter e editora de Saúde na MIT Technology Review Brasil.