O diagnóstico de demência pode mudar instantaneamente a forma como o mundo vê alguém. O estigma também tem um longo alcance: familiares e amigos de pessoas com demência também podem descobrir que o mundo se afastou deles.
A melhor coisa sobre a Internet é que ela pode ajudar a tornar mais visível a realidade de viver com demência. E para alguns, a internet é o único lugar onde eles podem se conectar com outras pessoas que passam pela mesma coisa.
Mas a Internet nem sempre oferece o seu melhor. A hashtag #Dementia no TikTok tem 2 bilhões de visualizações. Lá, os criadores produzem toneladas de conteúdo sobre suas experiências cuidando de alguém com demência em estágio avançado. Muitos dos vídeos mais populares são inspiradores ou educacionais. Mas entre eles, é fácil encontrar vídeos virais em que os seus cuidadores zombam de pacientes com demência e discutem com eles frente às câmeras.
Os criadores de conteúdo ainda não concordaram sobre a questão ética por trás de fazer conteúdo público sobre alguém que não pode mais consentir em ser filmado. Enquanto isso, pessoas que tem demência estão levantando debates sobre consentimento e enfatizando os danos causados pelo conteúdo viral que perpetua estereótipos ou deturpa a natureza completa da condição.
“Essa é uma conversa que as pessoas com demência vêm tendo há algum tempo”, diz Kate Swaffer, cofundadora da Dementia Alliance International, uma organização cujos membros convivem com o transtorno. Swaffer foi diagnosticada com demência semântica de início precoce em 2008, quando tinha 49 anos.
De certa forma, essas conversas refletem discussões em andamento sobre sharenting (compartilhamento excessivo de dados e fotos dos filhos pelos pais), familiares vloggers e pais influencers. Crianças que já foram estrelas involuntárias dos feeds das redes sociais de seus pais crescem e têm opiniões sobre como foram retratadas. Mas os adultos com demência não são crianças e, embora as crianças desenvolvam a capacidade de consentir à medida que envelhecem, a deles diminuirá permanentemente com o tempo.
Legalmente, um cuidador ou membro da família com procuração pode consentir em nome de uma pessoa incapaz de fazê-lo. Mas os militantes dizem que isso não é suficiente para proteger os direitos e a dignidade daqueles que vivem com demência em estágio avançado.
Na opinião de Swaffer, a norma deveria ser: ninguém deve compartilhar conteúdo sobre alguém nesses estágios de demência, seja no Facebook, em uma exposição de fotografia ou no TikTok, se essa pessoa não consentiu explicitamente antes de perder a capacidade cognitiva de fazê-lo.
Ela disse que contou à sua família que se “um dia publicarem coisas sobre mim quando eu não puder consentir, vou voltar dos mortos para assombrar vocês”.
Cuidado virtual
Muitos dos vídeos mais populares do TikTok sobre demência apresentam momentos isolados de inspiração. Em um deles, um pai que costuma ser não-verbal sussurra “eu te amo” para a filha: 32 milhões de visualizações. Em outro, uma filha ri enquanto seu pai “não se lembra de como somos parentes”, mas lembra de toda a letra da música “White Woman’s Instagram” do comediante Bo Burnham.
A primeira vez que Jacquelyn Revere entrou em um grupo de apoio para cuidadores de familiares com demência, ela sabia que não havia encontrado seu grupo. Revere, então com 20 e poucos anos que acabara de deixar sua vida em Nova York para cuidar de sua mãe e avó na Califórnia, era décadas mais jovem do que qualquer outra pessoa na sala.
“As pessoas estavam falando sobre coisas como hipotecar suas casas e suas aposentadorias”, diz ela. “Acabei me sentindo pior. Eu não tinha nada disso. Eu não tinha recursos”.
Eventualmente, Revere começou a postar como @momofmymom, um nome que, segundo ela, resumia a mudança dinâmica entre ela e sua mãe, Lynn. Naquela época, sua mãe podia manter uma conversa e consentir em ser filmada. Parecia mais como se elas estivessem comandando o canal juntos. Ela agora tem mais de meio milhão de seguidores no TikTok, incluindo muitos millennials que também são cuidadores.
Revere tenta fazer o conteúdo que ela gostaria que estivesse disponível para ela quando ela estava apenas começando. Em um vídeo, ela e a mãe passam um dia juntas, indo a uma aula de ginástica ao ar livre e saindo com amigos no parque. Em outro, Revere está emotiva, sentada sozinha no carro, falando sobre como está lidando com a deterioração das capacidades de sua mãe. Ela tenta filmar sua mãe “quando ela acaba de sair do banho e seu cabelo está arrumado, e ela fica tipo ‘Ooh, eu sou aquela garota”, diz Revere. Mas ela fala sobre as coisas mais difíceis quando sua mãe está longe da tela.
À medida que a demência de sua mãe progride e Revere aprende mais sobre que tipo de história ela quer contar, seus TikToks se tornam mais educativos. Veja como ela resolve a mania de sua mãe de coletar e guardar toalhas de papel e guardanapos. Veja por que é importante criar um sistema de apoio para você e a pessoa de quem você está cuidando. Aqui ela explica o porquê de precisar pensar cuidadosamente sobre como reagir às mudanças nas habilidades cognitivas de sua mãe.
Vídeos como o de Revere podem ajudar os cuidadores a entender como lidar com os desafios significativos de ajudar um ente querido com demência ou simplesmente fazer com que eles se sintam menos sozinhos, diz Teepa Snow, uma educadora e terapeuta ocupacional que ensina cuidadores e profissionais de saúde a trabalhar com aqueles que vivem com demência. Mas para cada criador como Revere, há muitos que usam as redes sociais para zombar de alguém com demência ou desabafar sobre a pessoa de quem estão cuidando.
Danos virais
Às vezes, membros da família, e até profissionais de saúde, publicam em suas contas pessoais de rede social por frustração, documentando um momento ruim em um vídeo e compartilhando-o no Facebook, talvez com a intenção de que sua família ou amigos vejam com o que estão lidando.
Os cuidadores postam vídeos como este quando “se sentem julgados pelo jeito que cuidam de uma pessoa que tem demência ou [sentem] que a pessoa que tem demência é perigosa ou agressiva”, diz Snow. Mas um vídeo da perspectiva de uma pessoa não conta a história completa. “Há duas narrativas que ouvimos com bastante frequência: ‘mas ela ficou muito agressiva!’”, diz Snow. “E quando você vê aos vídeos, fica tipo, ‘Hm, você a provocou! Ela lhe deu cinco oportunidades para parar.’”
Alguns dos primeiros vídeos virais que Snow se lembra de ter visto sobre pessoas com demência se basearam nesses estereótipos e foram criados para argumentar que a pessoa filmada não deveria viver de forma independente. Esses vídeos nocivos migraram ao longo do tempo da Internet pré-social para o Facebook, YouTube e agora TikTok. Uma conta do TikTok associada a uma organização canadense de cuidados de longo prazo tornou seus vídeos privados no verão passado depois de postar vídeos que mostravam trabalhadores zombando de pacientes com demência.
Swaffer também está preocupada com a forma como os vídeos virais refletem a infantilização de pessoas com demência que ela notou na vida real. Ela se lembra de ter participado de grupos de apoio presenciais nos quais foi “empurrada para uma sala de atividades” e tratada como se tivesse poucas capacidades cognitivas, apesar de ter se formado em três cursos e iniciado um doutorado após o diagnóstico. No meio online, ela vê esse estereótipo reforçado em vídeos extremamente populares que mostram pacientes com demência brincando com brinquedos e bonecas infantis.
Os estereótipos perpetuados por meio de conteúdo viral têm um impacto negativo palpável em quem vive com demência. Christine Thelker, uma ativista e autora canadense, foi diagnosticada com demência vascular há oito anos. Quase imediatamente, pessoas próximas a ela começaram a questionar sua capacidade de trabalhar, dirigir um carro e morar sozinha.
Thelker ainda vive sozinha. Um voluntário vem uma vez por semana para ajudá-la com coisas que estão se tornando mais difíceis ao longo do tempo. Mas, ela diz, “Eu ainda posso dirigir e posso cozinhar. Eu não perdi todas as minhas habilidades da noite para o dia”.
Swaffer sofreu hostilidade online por tentar desafiar narrativas prejudiciais sobre demência.
“Há um longo debate sobre a linguagem respeitosa nos nossos casos. Pessoas sem demência dizem regularmente que sofremos ou que somos sofredores de demência”, diz ela. “Fui intimidada duas vezes nas redes sociais por grupos de cuidadores por ousar dizer: ‘Por favor, não nos chame de sofredores’”.
Thelker teve experiências semelhantes. “Eles não gostam que desafiemos esse status quo”, diz ela. Ela se deparou com isso com frequência ao falar sobre práticas de cuidados que não são necessariamente apropriadas para aqueles nos estágios iniciais da demência. “Esse status quo foi baseado em pessoas sendo diagnosticadas quando já estão no estágio final. Não quando eles estão nos estágios iniciais e ainda podem funcionar bem por 20 anos”, ressalta.
Snow sente que o pior conteúdo que ela vê online decorre parcialmente da falta de um bom suporte para os cuidadores familiares. “Acho que o maior problema vem lá no início de tudo, ou seja, os médicos não estão vendo a demência como uma condição de duas pessoas”, diz ela, a segunda pessoa é a que presta os cuidados.
Esses parentes não são treinados para serem especialistas em demência. Nem todo mundo tem recursos financeiros para ver um terapeuta profissional. E alguns cuidadores vão recorrer aos grupos de Facebook, preenchendo uma lacuna deixada pelos médicos. “Eles se sentem sobrecarregados, derrotados e frustrados”, diz Snow. Mas esses grupos podem reforçar algumas das piores narrativas sobre demência, pois os membros desabafam sobre suas experiências e compartilham fotos de seus entes queridos em seus piores momentos.
Isso é algo que Snow encontra regularmente em seu próprio trabalho. “Vamos ver se podemos reconhecer e acolher seus sentimentos e depois ensiná-lo a realizar cuidados melhores”, diz ela. “Porque se não pudermos fazer com que você cuide de alguém de maneira diferente, a vida dessa pessoa e sua vida serão uma droga”.
Fazendo melhor
Muitas pessoas começaram a fazer planos para deixar sua marca digital depois de morrer. Sites como Facebook e Instagram possuem ferramentas que permitem aos usuários especificar como sua conta deve ser preservada e quem pode acessá-la. Mas menos pessoas pensam no que aconteceria com sua presença online se perdessem a capacidade de gerenciá-la por conta própria enquanto ainda estivessem vivas, e poucas falam com seus entes queridos sobre como gostariam que os outros os retratassem.
Não existem boas práticas estabelecidas para documentar e discutir a demência online. Mesmo aqueles com demência não necessariamente concordam com os detalhes. Mas os ativistas e cuidadores com quem a MIT Technology Review americana falou para fazer esta matéria têm algumas ideias.
Swaffer se juntou a vários grupos de Facebook para cuidadores de pessoas com demência. Ela mesma foi cuidadora de outras pessoas três vezes em sua vida. “Meu nível de sofrimento como cuidadora foi muito maior do que meu nível de sofrimento por ter um diagnóstico de demência”, diz ela. “Ver alguém perder capacidade e depois morrer é uma tarefa difícil”.
Ela vê muitos cuidadores projetando seu sofrimento em aqueles com demência, assumindo que suas experiências são as mesmas. Na realidade, há uma variedade de experiências, e essas narrativas podem criar uma ideia falsa de que só existe uma forma de ter demência: como uma progressão de perdas.
“Alguns de nós são otimistas, alguns de nós são pessimistas e alguns de nós estão em algum lugar no meio”, diz Swaffer. Um pessimista pode focar no discurso trágico e de sofrimento, “e tudo bem, porque é sua experiência pessoal”, diz ela. “Eu simplesmente não acho que essa é a única experiência que deveríamos retratar”.
Revere aprendeu com o tempo a dar nuances à imagem de sua mãe. Embora sua mãe certamente ainda esteja ciente da câmera, ela perdeu a capacidade de realmente consentir em ser filmada.
Às vezes, Revere aprende novas e dolorosas lições sobre como fazer isso bem. Seu vídeo mais viral, no qual ela demonstra como tirar o enxaguante bucal de sua mãe sem começar uma briga, é um que ela agora se arrepende de postar.
“Não sei se esse era o momento”, diz ela. Sua mãe não está no seu melhor nesse vídeo, e esse é um lado que Revere agora tende a manter privado. Quando o vídeo reaparece em seu feed, ela tem sentimentos contraditórios. Ela sabe que ajudou outros cuidadores familiares como ela. Mas, ela diz: “Eu não gosto de me sentir assim quando meu conteúdo aparece”.
Agora, Revere espera 24 horas depois de filmar um novo vídeo antes de postar qualquer coisa no TikTok. Então, ela revê o vídeo, e se ela ainda se sentir bem, ela posta.
Para que esta abordagem funcione, a pessoa que grava o conteúdo deve ver a pessoa que tem demência como um ser humano com pensamentos que merecem respeito.
Thelker, por outro lado, não está super preocupada em controlar sua presença online à medida que sua demência avança, embora ela espere que seus entes queridos postem coisas boas sobre ela. “Já tenho tanta coisa por aí, sabe? Me pesquise no Google”, diz ela.
E isso, em parte, é por causa das mudanças que ela testemunhou entre seus colegas. “Acredito que com o tempo, quando chegar a esse estágio, vou meio que sair do radar”, diz ela. “Haverá mais pessoas me substituindo. O rosto delas tomará o lugar do meu e as pessoas dirão: ‘Eu me pergunto o que aconteceu com ela’, sabe?’”