Quando a humanidade quis levar sua voz mais longe para atingir um maior número de pessoas, nasceu a fagulha inicial do microfone e um marco na comunicação e expressão. Dos primórdios, no alto de uma pedra podendo agora discursar para um grupo maior da espécie, passando pelo teatro grego 500 A.C. — onde havia máscaras com cones para amplificar a voz do elenco — até os microfones de carbono, líquido ou metal, foi uma jornada tecnológica milenar incrível.
Tínhamos cones feitos de ossos. Hoje todos temos à mão uma sofisticadíssima ferramenta capaz de (entre muitas coisas) transformar energia mecânica em energia elétrica; sons em eletricidade. E depois em 0 e 1. Simples e impressionante.
Essencialmente um microfone é um transdutor; transforma um tipo de energia em outro. E a transformação de uma energia em outra é algo tão fundamental que está presente em tudo – literalmente. Das partículas do átomo, ao cosmos, há uma contínua transformação de energia. E o importante: está na nossa vida cotidiana. Em cada mensagem de áudio, ligação telefônica, chamada de vídeo, lá estão os transdutores. E só expandem sua presença com a chegada do comando de voz. Outro transdutor onipresente é o alto falante. Fones, celulares, carros, tablets, laptops, tvs. Na era das telas, quase todas têm som.
Nós, humanos, também transformamos vibrações em impulsos elétricos. A porta de entrada para essa maravilha é o tímpano, um tambor esculpido pela natureza. Ele vibra com as micro variações de pressão no ar, assim como o diafragma de um microfone. No sistema auditivo a energia mecânica é transformada em eletricidade para ser recebida em nosso cérebro. Graças a esse biomimetismo considero o microfone um dos ápices da tecnologia. Artes e ciências em estado puro.
Por trabalhar gravando música, desenvolvi uma relação profunda com microfones e caixas de som. São meus transdutores favoritos (embora também chame minha atenção, antena, célula fotoelétrica, dínamo, gerador — todos presentes em nossa rotina diária).
Entre centenas de equipamentos e milhares de componentes existentes em um estúdio, o único a captar e registrar ar vibrando é o microfone. Voz, piano, violino, trompete, percussão ou qualquer instrumento acústico dependem dele para serem registrados ou transmitidos. E o mais curioso: entre todos, o único equipamento a reproduzir som é o alto falante.
Desde 1876 quando Graham Bell patenteou a invenção, o alto falante é nossa fonte sonora definitiva quando ouvimos algo que não está ao vivo. Aliás, mesmo ao vivo. Em teatros, igrejas, salas de concerto, shows, lá estão elas: as caixas de som. E os microfones. Uma transformando corrente elétrica em ondas sonoras (caixa de som) e o outro fazendo o inverso (microfone). Vale lembrar que os alto falantes mais populares do mundo são os fones de ouvido. Mesmo sendo algo invisível no dia a dia, sempre que paro pra observar fico pasmo. É muita tecnologia e inovação juntas.
Agora, o mais incrível foi quando compreendi que a música vinda do alto falante não é exatamente o que ouvimos. Nossa audição é uma ilusão perceptiva criada por nosso cérebro fruto de uma capacidade de interpretação alcançada através da evolução. Nós somos a mídia final. É na nossa cabeça que o som acontece. Charles Darwin acreditava que a música se desenvolveu pela seleção natural, ligada aos rituais humanos de acasalamento, antes da linguagem.
Avançando um pouco mais, o cérebro teve na música uma grande ferramenta de desenvolvimento. Com ela aprendemos, por exemplo, a noção de causa e efeito (ela entra no nosso corpo pelo ouvido na forma de vibrações e sai transformada em movimento — a dança); aprendemos a sincronizar e coordenar movimentos musculares (o que possibilitou mover pedras para construções, realizar plantios coletivos, controlar exércitos, etc); aprendemos também a registrar e comunicar conhecimentos fundamentais antes de sabermos falar e escrever, usando canções como memória individual e coletiva.
E registrá-la para ter sua audição dissociada da performance ao vivo se tornou uma obsessão humana — sobretudo nos últimos 150 anos. Dela nascem o microfone e o alto falante. E hoje estão em todo lugar tornando-se invisíveis.
Assim que foram inventados e aperfeiçoados por gente como Philipp Reis, Graham Bell, Thomas Edison, Hughes, Berliner e Alan Blumlein, a música os capturou, transformando-os em instrumentos. Porque os propósitos iniciais não eram exatamente musicais. Graham Bell os desenvolveu para telefonia; Edison para gravar palestras. A necessidade de inovação e sofisticação colocadas em pauta pela engenharia de áudio a serviço da música mudou o curso da história.
A evolução tecnológica foi mudando quase todos os aspectos do processo de gravação, do registro dos nossos sons — mas os microfones e alto falantes seguem fundamentais. Uma foto de um estúdio de hoje posta ao lado de outra imagem de um estúdio dos anos 70 por exemplo, atesta a ausência da obsolescência. Se bem cuidados, são para sempre. E poucas coisas hoje são para sempre.
Este artigo foi produzido por João Marcello Bôscoli, empresário e produtor musical brasileiro, e colunista da MIT Technology Review Brasil.