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Quando a Lei de Inovação Tecnológica foi regulamentada no Brasil, em 2005, a expectativa era a de estabelecer medidas de incentivo à inovação e à pesquisa científica como estratégia de desenvolvimento socioeconômico. Nessa jornada, o país também alcançaria uma posição de maior autonomia do ponto de vista tecnológico e industrial.
Para a biotecnologia aplicada à área da saúde, a iniciativa não surtiu o efeito desejado ao longo dos anos. Alianças, patentes, contratos de pesquisa e desenvolvimento e joint-ventures ainda são iniciativas tímidas, assim como os dados relativos a investimentos e outros esforços nesse sentido são pouco conhecidos no país. Mas, para virar essa página, uma das apostas de instituições de referência é o incentivo ao empreendedorismo aliado à ciência.
Muitos brasileiros podem ter ouvido falar de biotecnologia recentemente, após a divulgação de informações sobre o processo de fabricação de vacinas contra Covid-19 baseadas em RNA mensageiro. Porém, o termo é aplicado há anos: desde quando foi estabelecida a estrutura do DNA, em 1953; da criação da engenharia genética, na década de 1960; e até a descoberta da insulina humana, em 1983.
Atualmente, maching learning, Inteligência Artificial, blockchain e até mesmo materiais que conseguem manipular matérias em níveis moleculares e atômicos são uma realidade dentro dos laboratórios. Por outro lado, globalmente, ainda há dificuldade para que esses processos tecnológicos sejam revertidos em produtos comercialmente viáveis, que representem ganho aos pacientes.
Dados do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) indicam que apenas 15% das patentes em biotecnologia são brasileiras. Faltam dados específicos para descobertas aplicadas à saúde, contudo, de acordo com uma análise geral feita a pedido da MIT Technology Review Brasil, as solicitações com esse foco seguem a mesma porcentagem e são provenientes de universidades e de startups.
“Além da própria dificuldade em se desenvolver biotecnologia, nem todos os pesquisadores estão preparados, conhecem as regras do sistema, entendem a importância e o potencial de proteger seus ativos e têm a visão de negócios, o que impacta no número baixo de patentes”, explica a coordenadora-geral de patentes da área de biotecnologia do INPI, Claudia Magioli.
Desde 2021, o INPI tem procurado universidades para conscientizar pesquisadores sobre a importância do uso estratégico da propriedade intelectual em todas as áreas para mudar esse, colocando o país na rota do desenvolvimento.
Cultura de deep tech na saúde
O desafio para o mercado global e, consequentemente, para o setor de saúde brasileiro, é buscar na pesquisa e desenvolvimento a construção de empresas e produtos baseados em deep tech, que são empresas ou startups que buscam encarar desafios da sociedade por meio da associação de ciências médicas com IA, robótica, computação quântica e outros avanços tecnológicos que estão solucionando problemas em diferentes áreas.
A empresa norte-americana Moderna é um exemplo de como uma deep tech pode favorecer o desenvolvimento de produtos e a criação de novos mercados. Depois da produção da vacina com uso de RNA mensageiro contra a Covid-19, a farmacêutica apresentou um crescimento de mais de 1.000%, passando de um valuation de US$ 6,5 bilhões para US$ 100 bilhões em cerca de 18 meses. O investimento de outras empresas do setor, acordos governamentais e flexibilizações regulatórias viabilizaram a vacina com o desenvolvimento mais rápido da história.
No Brasil, startups de biotecnologia estão concentradas na Região Sudeste, potencializadas pelos incentivos das agências de fomento, como a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que apoia o empreendedorismo na ciência. Outras regiões, porém, passam por dificuldades devido à ausência de iniciativas e de recursos.
O impacto dessa desconexão entre pesquisa e mercado é refletido em diferentes áreas das ciências médicas. Um estudo publicado na Science Progress por pesquisadores da Universidade de São Paulo, por exemplo, mostra que os brasileiros foram destaque com mais de 4.000 artigos científicos publicados sobre Covid-19. Em compensação, o Brasil ocupa a 66ª posição entre os países na produção de reagentes e insumos necessários para análises científicas de ponta.
Para o diretor de Inovação do Hospital Israelita Albert Einstein, Rodrigo Demarch, a pandemia do coronavírus trouxe um alerta sobre a dependência do país em relação ao desenvolvimento de biotecnologia. “Estamos frágeis diante da incapacidade de produzir inovação. Precisamos construir um ecossistema para que daqui a 10 ou 15 anos possamos nos desenvolver na mesma velocidade que outros países, para que a pesquisa acadêmica se transforme em produtos e serviços disponíveis para o bem-estar da população”.
A mesma lógica ocorre em outras áreas da saúde, como a produção de novos fármacos. Enquanto o Brasil é sexto país que mais consome medicamentos, ocupa a 196ª posição na lista de desenvolvedores dos insumos. Camila Hernandes, head do Programa Einstein de Inovação em Biotecnologia, avalia a origem dessa disparidade.
“O processo de desindustrialização do Brasil afastou a academia do mercado. Não temos a cultura do pesquisador olhar para o setor privado, por exemplo, para entender problemas que podem ser solucionados. A pesquisa ainda é pautada em necessidades descritas em artigos científicos e pouco explorada a campo. O inverso também acontece. O próprio mercado brasileiro é conservador em relação a essa aproximação. Assim, falta investimento, entendimento dos termos regulatórios e um olhar de negócio que vai além das atividades científicas”, explica Hernandes.
Ciência regulatória
Registros concedidos e estudos acompanhados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) também indicam que há necessidade de aprimoramento do olhar regulatório por parte dos pesquisadores. Na reguladora brasileira, inovações disruptivas para a medicina, como as terapias avançadas, ainda estão distantes na perspectiva do desenvolvimento nacional.
“O pesquisador tem uma ideia interessante, um processo, uma experiência, mas há dificuldade para transformá-los em produto, seguindo as exigências de segurança regulatória que a Anvisa e outros órgãos relacionados à biotecnologia pedem”, explica o gerente de Sangue, Tecidos, Células, Órgãos e Produtos de Terapias Avançadas (GSTCO), João Batista da Silva Júnior.
Como forma de contribuição, a agência pretende criar um manual de boas práticas para garantir que as pesquisas sigam parâmetros regulatórios satisfatórios.
Ecossistema de biotecnologia
O incentivo ao desenvolvimento de biotecnologia a partir de agendas de fomento e subsídios está a cargo do setor público, mas ainda é limitado frente ao potencial do mercado brasileiro. Um exemplo recente, divulgado em agosto de 2022, é uma seleção pública de subvenção econômica à inovação com investimento de R$ 50 milhões, lançada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep/MCTI).
Os recursos serão alocados em projetos de biotecnologia que, do ponto de vista da saúde, priorizarão o desenvolvimento de novos biofármacos, imunobiológicos e kits diagnósticos point of care para doenças de grande relevância para o sistema de saúde.
O diretor de Inovação do Einstein entende que, além de investimentos concretos, é preciso criar um ecossistema de saúde favorável ao mercado de biotecnologia.
“Considerando as experiências de países que são referência na área de biotecnologia, o Brasil precisa entender como fazer esse investimento no longo prazo. É preciso criar soluções com relevância global para dialogar com o mercado e também avançar do ponto de vista regulatório”, avalia Rodrigo Demarch.
Atualmente, o Hospital Israelita Albert Einstein conduz um programa de mentoria de startups para o desenvolvimento de remédios, vacinas e soluções diagnósticas e que também incentiva o intercâmbio tecnológico. A iniciativa vai ao encontro do que foi feito em países como Estados Unidos, Singapura e Israel.
“Fortalecer essa lógica de colaboração para o país traz benefícios não apenas para o desenvolvimento industrial, mas possibilitará o desenvolvimento de diagnósticos laboratoriais, vacinas, medical devices e tratamentos que aproximarão a ciência no âmbito educacional e assistencial, de empreendedores dos setores público e privado”, afirma Camila Hernandes.
Na visão da autoridade regulatória, a participação de pesquisadores brasileiros em estudos clínicos de biotecnologia é uma outra maneira de ampliar o conhecimento na área, mesmo que essas pesquisas sejam conduzidas por desenvolvedores internacionais.
“A vinda de pesquisas internacionais para o Brasil abre uma possibilidade para os pesquisadores, centros e hospitais brasileiros desenvolverem metodologias, procedimentos, monitoramentos e boas práticas de acordo com a referência internacional. Assim, no longo prazo, as experiências poderão ser aplicadas às próprias pesquisas nacionais de desenvolvimento biotecnológico”, conclui João Batista Júnior.