Faz algumas semanas, em uma conversa sobre tecnologia com a diretora-geral de um grande e-commerce, ela me disse: “Marketing é a área que gasta o dinheiro, enquanto vendas é a área que traz o dinheiro para a empresa”.
Você pode concordar ou discordar da colocação dela, mas o fato é que, em muitas empresas, embora o marketing seja de crucial importância, ele nem sempre é encarado com a mesma prioridade das áreas de vendas ou produtos.
Como era a vida antes da transformação digital:
Começando com o exemplo de uma empresa do setor automotivo: cinco anos atrás, as áreas de produtos e marketing eram bem separadas, porém conectadas em um processo que funcionava muito bem na linha do tempo, assim como na linha de montagem: a área de produtos criava coisas novas. Poderia ser um carro, novos acessórios, peças ou até formas de pagamento (quando envolvida a área de crédito). Essa novidade era então enviada para o time de marketing, que, por sua vez, chamava a agência de propaganda para divulgar.
Com o tempo, as agências se especializaram em contar as novidades não só nos meios tradicionais (TV, revista etc.), como também nos meios digitais (sites, redes sociais, mídia paga etc.), utilizando – nos casos mais avançados – ferramentas de tecnologia para o marketing (Martch), recheadas de modelos preditivos, com plataformas de automação de última geração.
As agências, a partir de um briefing do seu cliente, divulgavam os produtos.
Os meios digitais eram mais um grupo de canais de divulgação.
A avenida de oportunidades após a Transformação Digital:
Os consumidores mudaram e nem todos querem comprar um carro. Muitos trocaram carros por Uber ou táxi. Outros adotaram a ideia de alugar um carro. Foi aí que algumas montadoras lançaram os carros por assinatura. Neste novo mundo, a fabricante de veículos, além de vender carros da forma tradicional (concessionárias), também oferece o aluguel mensal. O consumidor paga mensalmente para ter um carro sempre novo na garagem.
Nasce aí um novo “Produto Digital”, que inclui toda a interação com o consumidor, via sites, aplicativos, mídia e redes sociais (o “básico”), e vai além com sistemas de pagamento, consulta de disponibilidade de carros na frota, escolha da placa, vistoria, relação com as concessionárias para manutenção, seguro, impostos, multas, test drive etc. Tudo automatizado na plataforma digital.
Quem deveria conceber este novo produto digital? Seria a área de marketing, por ter o conhecimento das práticas digitais? Ou a área de produtos, que tem o know-how de fabricar bens de consumo em massa?
A decisão não mora nessas capacidades ou no know-how, mas sim na FORMA de trabalhar.
Vamos começar definindo o que é um produto digital.
Silvia Machado, diretora de Produtos Digitais na Jüssi, me disse que “o produto digital é o MEIO, e o valor está no USO”. Essa frase é carregada de conceitos e, logo de cara, contrasta com as agências de propaganda, em que os canais digitais são um fim e possuem valor apenas como uma ponte para o produto. Peças, layouts, desenhos são criados e aprovados por diretores de marketing para lançamento das suas campanhas, normalmente pontuais.
O marketing e suas agências tradicionais trabalham sob demanda: as pessoas fazem seu trabalho após alguém (o cliente) fazer um pedido: “Precisamos lançar um carro novo”. Então, a cadeia anda. Se a comunicação criada pela agência não funciona, a culpa é do cliente (vulgo diretor de marketing), que pediu e aprovou. Essa aprovação está em cima de critérios pouco técnicos e baseados em intuição e bom gosto.
“Aprovado” é uma palavra que não existe no mundo dos produtos digitais.
“Cronogramas em cascata” com atividades em série, também não.
Esses cronogramas de execução são um exemplo do outro lado, o dos produtos tradicionais. Eles trabalham como na construção de um prédio, em longos projetos que são colocados em cronogramas, em que todos precisam entregar aquilo que foi planejados meses atrás. Faz todo o sentido ser assim, pois estamos falando da construção de um carro, que deve ter centenas de processos de segurança e de repetição dentro dele.
Produtos digitais não podem seguir o processo linear (e intuitivo) do marketing tradicional nem o trabalho em cascata dos produtos tradicionais. Para algumas pessoas, “PD” deve ser uma área separada. Para outras pessoas, trata-se de uma oportunidade para o marketing se reinventar.
Se você tem dúvidas, destaco aqui alguns princípios dos produtos digitais para você mesmo fazer o teste. Se você lidera a área de marketing, só poderá abraçar PD se concordar com todos os tópicos abaixo:
1. Não há aprovação de layout pelo diretor. Equipes de produtos digitais trocam imagens, formas, cores, vídeos e textos o tempo todo. Fazem testes A/B em cima de ferramentas que, automaticamente, montam páginas e oferecem versões diferentes para pessoas diferentes de acordo com o objetivo de negócio (exemplo: conversão). É impossível ter um layout para aprovar, já que milhares são criados ao mesmo tempo. O marqueteiro tem que desapegar de assinar aquele papel com o layout do anúncio favorito.
O desapego anda junto com a confiança na execução. E ela pode ser alcançada conforme avançamos nos itens a seguir.
2. Todos trabalham com cabeça de cientista. Todas as vezes que alguém tem uma ideia (incluindo o diretor de marketing), ela não é aprovada baseada em um consenso entre as pessoas, mas sim a partir da geração de hipóteses que são testadas. Os testes rodam em cima de grupos de controle (assim como na criação das vacinas) para que as ideias vencedoras sejam baseadas em dados. O famoso “data-driven”, na verdade, deveria se chamar “science-driven”.
3. Os processos são menos intuitivos e mais baseados em estatística. Antigamente, era muito comum ver profissionais de gerência de projetos ou tráfego perguntarem aos profissionais quanto tempo levariam para fazer um projeto. Com isso, formava-se o preço. Hoje, isso é passado, e a previsibilidade das horas de acordo com experiências passadas usando estatística é capaz de dar valores seguindo intervalos de confiança. Exemplo: “Existe 90% de chances de esta iniciativa demorar cinco dias para ficar pronta”.
4. O mundo não é mais sob demanda. Não adianta falar em “always on” quando todas as pessoas precisam de alguém com um briefing na mão para começar um projeto ou uma campanha. TODOS os envolvidos devem ter enorme prazer em olhar os números, os dados de resultado, o tempo todo! É o fim do “sempre foi assim”, substituído por “o que vamos testar hoje para mudar determinado indicador de negócio”. Replicar “o que deu certo” é proibido. A única certeza é a da mudança.
5. Toda iniciativa é baseada em objetivos claros. “Não existe PD com objetivos de converter, aumentar receita e criar awareness ao mesmo tempo”, completa Silvia. Esse tipo de indicador múltiplo, na verdade, apresenta uma indecisão das pessoas, e a entrega final fatalmente será igual a um pato: o único que voa, anda e nada, porém faz tudo malfeito.
Quando as pessoas me perguntam por que uma série de iniciativas digitais não decolam por aí, eu costumo questionar se aquele superlançamento de uma plataforma de meios de pagamento, aquele megaprojeto de assinatura de carro, aquele serviço de entrega rápida de supermercado ou aquele novo banco digital foram criados por times de marketing, produtos tradicionais ou produtos digitais. Normalmente, nos maiores fracassos, eram cabeças de marketing investindo milhões em propaganda e produzindo sites ou apps como se fossem peças de marketing.
A transformação digital deu às empresas a oportunidade de se transformarem em grandes serviços de experiência a seus clientes. Tratar essa oportunidade dentro das antigas caixinhas de marketing e produtos vai, fatalmente, jogar fora uma enorme chance de fazer a diferença.
Antes de começar qualquer iniciativa digital, por favor, pense: isso é uma comunicação ou é um produto em si?
Esse artigo foi produzido por Fernando Teixeira, SVP de Dados na Media.Monks e colunista da MIT Technology Review Brasil.