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Você está em um centro cirúrgico. O que vê são telas com imagens tridimensionais em 4K, muito superiores aos olhos humanos, que mostram uma nova anatomia imersiva e com definições nunca vistas antes. Filtros de ondas de luz e reagentes químicos com fluorescência trazem a localização exata de uma estrutura tumoral a ser ressecada. A sala é digital e conectada a outros setores do hospital. O cirurgião solicita resultados de exames de imagem. É feita então a fusão de todo o material recebido, acoplado à tela onde se vê o campo operatório. A localização precisa em tempo real permite a navegação com programações e planejamentos para uma cirurgia com maior precisão. Ao mesmo tempo, as imagens em conjunto são processadas em machine learning, e a própria máquina passa a aprender e a reconhecer padrões, auxiliando as decisões cirúrgicas. A instrumentação é feita por robótica, com alcance e grau de precisão que o ser humano não tem. As incisões são ainda menores, com menos trauma e sangramento. E tudo isso é feito com o emprego de assistente de voz, desde a solicitação de dados de prontuário e inclusão de novos dados em tempo real até o checklist cirúrgico de segurança. Por alguns momentos, você pode pensar que está sob efeito alucinógeno de anestésicos ou em um sonho futurista. Mas logo percebe que não.
Estamos falando apenas de cirurgia robótica? Não. O robô é só uma das ferramentas que integram o amplo conceito de cirurgia digital, que revolucionou os cuidados com o paciente cirúrgico.
“Na cirurgia digital, toda a capacidade de cognição humana acaba sendo estendida através de ferramentas e de inteligência artificial”, explica o Head do Programa de Cirurgia e Cirurgia Robótica do Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE), Nam Jin Kim.
A visão é um bom exemplo. A percepção de cores do olho humano é limitada por enxergar um espectro de cores restrito, com pequeno intervalo de frequências e intensidades. E as câmeras inicialmente utilizadas para as cirurgias laparoscópicas tinham capacidades ainda piores que o olho humano. Hoje, a visão é tridimensional e em 4K, e permite uma experiência imersiva dentro do corpo humano. A câmera capta um espectro de luz diferente e além do que o olho é capaz.
Ainda no campo da visão, a fluorescência, antes utilizada basicamente como um meio de contraste, ganhou espaço com a medicina de precisão. O emprego de ondas de luz em reagentes químicos auxilia na localização e ressecção de tumores. O auxílio de tecnologias também proporciona que exames de imagem, como tomografias e ressonâncias sejam somadas à imagem do campo operatório permitindo a visão da localização precisa em tempo real das estruturas desejadas, facilitando a navegação.
Quanto à instrumentação, a robótica mostra um alcance e um grau de precisão que o ser humano não tem. Tremores e falhas das mãos do cirurgião podem ter suas amplitudes de movimento corrigidas pelo robô. As pinças utilizadas permitem movimentos giratórios em diversos ângulos, aumentando a destreza e uma precisão na cirurgia muito superior a qualquer outra abordagem já utilizada.
A sala cirúrgica digital é conectada a outros setores hospitalares, permitindo a solicitação de exames e dados de prontuário em tempo real, e conta com o auxílio de voz para checagens de segurança e inserção automática dos dados no prontuário. “É possível navegar dentro da cirurgia, fazendo programações e planejamentos pré-operatórios para atingir cirurgias muito mais precisas e não retirar nada além do que é necessário. Os robôs permitem incisões cada vez menores, respeitando o conceito de cirurgias minimamente invasivas, com menos trauma, menos sangramento e melhor recuperação, pensando no benefício do paciente”, completa Nam Jin Kim.
A cirurgia digital permite, então, que diversos recursos utilizados para estudar o paciente e o procedimento, como informações, imagens e ferramentas, sejam utilizados de forma conjunta, como um ecossistema que ajuda a tomar decisões no ato cirúrgico, mas que também aprende e gera conhecimento com o tempo.
A escalada cirúrgica
Procedimentos cirúrgicos rudimentares já eram realizados no período pré-histórico. Porém, somente no século 16 foram registrados os primeiros marcos científicos relacionados a cirurgias. A chamada cirurgia moderna teve início no final do século 19, com a descoberta da anestesia e o uso de antissepsia. O grande salto na escalada dos procedimentos cirúrgicos teve início na segunda metade do século 20, quando surgiram a microcirurgia, os transplantes de órgãos, a cirurgia com videoendoscópio e uso de endopróteses. A chegada da cirurgia digital ocorreu em uma velocidade nunca vista antes. Grandes motivadores para essa evolução histórica foram melhores taxas de sobrevida e resultados da cirurgia, além de um avanço tecnológico global, não apenas na saúde.
A segurança dos pacientes também pode ser vista como um grande motivador para o avanço nos processos que envolvem um procedimento cirúrgico. Em estudo publicado em 2016, Martin Makary e Michael Daniel trouxeram à tona a informação de que os erros médicos representavam a terceira principal causa de morte nos Estados Unidos, ficando atrás somente dos óbitos por causas cardiovasculares e câncer.
O médico intensivista no HIAE e especialista em segurança do paciente Gustavo Janot explica que as questões relacionadas à segurança hospitalar foram mais bem estudadas e desenvolvidas no Estados Unidos no fim dos anos 1980. Em 2015, os erros diagnósticos foram reconhecidos como o grande ofensor mundial de erros nos cuidados de saúde. A melhoria nos processos de diagnóstico é capaz de auxiliar nas indicações corretas das cirurgias, assim como a robótica também facilita o acesso a áreas mais delicadas a fim de minimizar o trauma e o dano cirúrgico. Além disso, a utilização de checklists garantem um maior controle de segurança.
O aprimoramento traz uma série de benefícios, especialmente relacionados aos desfechos clínicos e à diminuição do desperdício. “Estamos fazendo uma grande força-tarefa na área de segurança hospitalar do HIAE, baseada no documento da Academia Nacional de Medicina Americana, para atacar o erro diagnóstico. O Einstein é um dos pioneiros no Brasil na área de segurança hospitalar, e certamente a tecnologia nos ajudará a detectar mais rotineiramente falhas nos processos de cuidado e a minimizar danos secundários a esses processos”, acrescenta o Janot.
Fatores humanos e treinamentos
Fatores humanos afetam qualquer atividade profissional. Mesmo nos processos ultra-automatizados, um líder supervisiona o processo. Ele precisará não só ter o domínio do conhecimento técnico, mas também de habilidades não técnicas. Neste cenário, fatores humanos representam a interação das pessoas com o seu ambiente de trabalho, com seus equipamentos e com seus sistemas e processos. Tende-se a pensar como se fossem interações isoladas. Mas, na prática do trabalho, é preciso lidar com todos esses fatores de forma conjunta e coordenada.
“Quando analisamos eventos adversos catastróficos, ou seja, resultados que deram muito errado no processo de atendimento médico, na imensa maioria das vezes, o motivo não é a falta de habilidade técnica, não é o desconhecimento dos profissionais de saúde de uma certa patologia, mas o motivo quase invariavelmente está ligado a fatores humanos, às habilidades não técnicas. Quer dizer, está ligado à comunicação, ao trabalho em equipe, à consciência situacional. É isso que faz mais diferença, precisamos trabalhar não só no equipamento, mas na interação humano – equipamento e com outras pessoas”, explica o médico especialista do Centro de Simulação Realística do HIAE, Thomaz Bittencourt Couto.
A simulação é bastante utilizada para trabalhar os fatores humanos. No HIAE, toda a equipe cirúrgica comanda um robô que opera um simulador, um manequim que replica uma estrutura anatômica. O cirurgião executa uma tarefa e é simulado um momento de crise em que a equipe vai ter que interagir, como uma hemorragia que exige a conversão de cirurgia robótica para cirurgia aberta. O treinamento se torna essencial por ser uma situação rara — o índice de complicações está abaixo de 1% na cirurgia digital — e nova, com equipes que dificilmente têm expertise para lidar com essa crise. Além disso, a dinâmica em uma sala cirúrgica digital é muito diferente da sala cirúrgica comum. O cirurgião está voltado a um console, que é o controle do robô, a alguns metros de distância do resto da equipe cirúrgica. Ele fala por um microfone — que nem sempre tem a captação de áudio ideal — e recebe um feed de áudio que também não pode captar bem. Então, a quebra de comunicação é muito mais fácil. Em um momento de crise, se as pessoas não forem treinadas para atuar nessa nova maneira de se comunicar, as informações se perdem.
Por fim, existe a oportunidade de fazer a equipe toda refletir sobre o que aconteceu e encontrar possíveis saídas, o que cria um arsenal de possíveis soluções e modelos mentais que podem ser acessados em momentos de crise real. “Uma equipe só terá um desempenho de alta performance se todos forem treinados. De nada adianta apenas o cirurgião saber como lidar com a máquina. É preciso treinar auxiliares, anestesistas, enfermeiros, instrumentadores e todos em conjunto. Quando há uma situação de crise, todos atuam juntos”, finaliza o Dr. Thomaz.
Em outra frente, o HIAE planeja o lançamento do primeiro centro cirúrgico no metaverso com uma experiência imersiva, com vocação inicial voltada para o ensino. Será possível assistir a uma cirurgia robótica dentro de um centro de treinamento respeitando a identidade do paciente e dos cirurgiões. O aluno poderá alternar entre a visão do cirurgião e a visão de um canto da sala, além interagir mesmo à distância com os outros alunos como se estivessem todos ali, sem risco de contaminação do ambiente cirúrgico. Algo que, nem de perto, nos faz lembrar as pinturas do século 19, que mostram arquibancadas em salas com cerca de 200 estudantes de medicina e curiosos assistindo às cirurgias.
Outro projeto em desenvolvimento visa à avaliação de cirurgiões de forma mais objetiva. Uma ferramenta grava a cirurgia, que é enviada para revisores externos. “Esse piloto já está começando aqui no Einstein. Hoje, é uma pequena ferramenta standalone que capta cirurgias, anonimiza os dados e envia para uma grande central onde eles são processados e enviados para peer reviewers que geram uma classificação, um ranking como se fosse um videogame. Notas são atribuídas a destreza, habilidade e tempo cirúrgico, por exemplo. Os experts também podem dar sugestões de pontos a melhorar e tais informações eventualmente alimentarão uma inteligência de machine learning que vai aprender passo a passo do que é fazer o certo em cada momento.
Todos os processos da cirurgia digital planejam o uso de machine learning para reconhecer padrões de comportamento e padrões de imagem com redes complexas de deep learning, para que algoritmos sejam treinados como um GPS, que indica ao cirurgião, por exemplo, que determinados caminhos e estruturas são evitados por 90% dos cirurgiões naquela fase da cirurgia. Se concordar, ele estará acolhendo a sugestão da máquina.
Presente ou futuro?
Apesar de a situação retratada acontecer no presente e não no futuro, surge uma questão: quando todos — ou pelo menos a maioria dos pacientes — terão acesso a essas inovações?
A tendência é que a utilização crescente das tecnologias, mesmo que inicialmente apenas nos centros de excelência, trará um maior corpo de evidências para mostrar se de fato a cirurgia digital traz benefícios, como menores índices de complicações, menos tempo de recuperação pós-operatória, melhor ergonomia, potencial de visão e alcance a estruturas delicadas, entre outros. E, com a entrada de novos players no mercado e queda das patentes, espera-se uma redução de custos, o que facilita sua incorporação no cenário nacional.
É o que se espera para a cirurgia digital que, além aumentar a eficiência do procedimento, da preparação e da recuperação do paciente, também permite uma maior democratização do ensino da técnica através de suas ferramentas tecnológicas.
Este artigo foi produzido por Roberta Arinelli, Medical Director na ORIGIN Health Co. e Editora-executiva da MIT Technology Review Brasil.