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Em 33 anos no exercício da profissão, a pneumologista Cristiane Hoelz, do Hospital Israelita Albert Einstein, nunca tinha atendido tantos jovens com problemas causados pelo uso de cigarros eletrônicos. “Como pneumologista, geralmente eu atendo pacientes em idades mais avançadas, mas eu tenho recebido jovens por conta da dependência da nicotina do cigarro eletrônico. Antes, isso não acontecia”, afirma. A médica diz que a situação é preocupante. “Em muitos casos, eles usam da manhã até a noite. A quantidade de nicotina é tão alta que é difícil fazer o desmame com adesivos de nicotina pela pele ou com gomas de mascar e pastilhas.”
A nicotina é uma substância reconhecida pelo seu grande potencial de causar vício ativando algumas áreas do cérebro associadas ao prazer e bem-estar. Quando o organismo se habitua com uma certa dose, no entanto, o corpo pede uma quantidade maior para sentir o mesmo efeito. Essa sequência já é conhecida por tabagistas, mas, no cigarro tradicional, a queima de alcatrão e outros compostos impõe uma barreira de desconforto, delimitando o vício em certo ponto. Isso não ocorre com o cigarro eletrônico. Ao contrário: substâncias aromatizantes, com “sabor” artificial de frutas e outros aromas agradáveis até, mascaram o ato, e há o temor de que nunca uma geração de fumantes inalou tanta nicotina.
“É uma nicotina com outro potencial de dose. Temos a fumaça com aromas agradáveis e o usuário que não percebe o limite. No começo, o dispositivo dura um mês, depois duas semanas, uma semana, e, quando percebe, o jovem precisa comprar a cada quatro dias. Quando calculamos a dose de nicotina que está sendo utilizada nesse período, há pacientes que chegam a utilizar o equivalente a seis maços por dia. Cada maço tem em média 21 miligramas de nicotina, que é uma quantidade alta. No cigarro eletrônico ainda há outras substâncias, derivados químicos que potencializam a molécula da nicotina. Um deles é o ácido benzoico”, alerta Cristiane.
Geralmente, a quantidade de nicotina presente no cigarro eletrônico varia de acordo com o modelo do dispositivo. Os descartáveis possuem um cartucho com uma quantidade fixa que costuma ser informada na embalagem, enquanto os recarregáveis, por serem personalizados, dão a opção de escolher o líquido e a quantidade de nicotina. A dosagem depende da marca e pode variar entre 20 e 50 miligramas por tubo. Para o cigarro convencional, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) estabelece como limites máximos 1mg de nicotina, 10mg de alcatrão e 10mg de monóxido de carbono por unidade.
Em 2023, o estudo “Estratégias de Tratamento da Dependência à Nicotina em Usuários de Cigarro Eletrônico — Uma Série de Casos”, desenvolvido pelo Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, detectou, em usuários de cigarros eletrônicos, níveis de nicotina equivalentes ao consumo de 20 cigarros convencionais por dia. A análise foi possível após a investigação de exames de urina dos usuários de dispositivos eletrônicos inscritos no Programa de Tratamento do Tabagismo do InCor.
Danos à saúde
Segundo a pneumologista, os primeiros sintomas de lesões pulmonares vêm associados aos quadros virais com resolução mais demorada, com tosse mais intensa e persistente, e, muitas vezes, o aparecimento de sintomas de bronquite que não ocorriam anteriormente, mas que dificilmente são relacionados ao uso do dispositivo. Geralmente, o usuário começa a associar os sintomas à diminuição da capacidade de fôlego, no dia a dia ou na prática de atividade física.
A médica destaca que já há diversos estudos que enumeram alterações pulmonares causadas por esses dispositivos, como insuficiência respiratória aguda grave, sangramento pulmonar, broncoespasmo, além da piora da doença pulmonar crônica em quem já era fumante de cigarro comum. O site francês Pneumotox.com traz informações atualizadas sobre trabalhos científicos relacionados a alterações pulmonares decorrentes do uso do cigarro eletrônico.
Desde 2019, há uma designação para os malefícios causados pelo uso do cigarro eletrônico: Doença Pulmonar Associada ao Uso de Produtos de Cigarro Eletrônico ou Vaping, ou EVALI (E-cigarette or vaping use-associated lung injury), na sigla em inglês. Não há um diagnóstico fechado para caracterizar a condição, depende de uma combinação de características clínicas da história do paciente.
Os casos de EVALI foram monitorados pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos de 2019 até o início de 2020. Neste período, houve o registro de 2.807 hospitalizações e 68 mortes atribuídas à doença. Como os sintomas e lesões do EVALI são muito similares aos da Covid-19, em 2020 o órgão parou o monitoramento para evitar a geração de dados incorretos.
No Brasil, a notificação sobre a ocorrência de EVALI não é obrigatória. A falta de um cenário real dificulta a elaboração de qualquer tipo de estratégia em saúde ou política pública.
Juvenilização dos tumores
O oncologista clínico e pesquisador do Instituto SENSUMED de Ensino e Pesquisa Ruy França, de Manaus, William Fuzita, participou da Conferência Mundial sobre Câncer de Pulmão, realizada em Singapura, na Ásia, no final do ano passado. Segundo o médico, diversos painéis que abordaram a temática “cigarro eletrônico e câncer de pulmão” trouxeram estudos que validam o que a pesquisa “Cancer Prevalence in E-Cigarette Users: A Retrospective CrossSectional NHANES Study”, publicada em 2022 na revista científica World Journal of Oncology já afirmava: a precocidade da doença oncológica.
“No encontro, foram apresentados dados sobre os malefícios que o cigarro eletrônico causa para o parênquima pulmonar. Vários estudos apresentados evidenciam condições como doença parenquimatosa no pulmão (caracterizada por danos nas células que rodeiam os alvéolos, o que leva a inflamação e a formação de cicatrização fibrótica nos pulmões) e fibrose pulmonar (quando o pulmão fica com cicatrizes em seu tecido e passa a ser mais endurecido). E o que se observa é cada vez mais pessoas jovens desenvolvendo neoplasias malignas por causa dessa difusão de hábitos ruins nessa faixa etária”, explica o oncologista.
Na pesquisa de 2022 publicada no World Journal of Oncology, cientistas de diversas universidades americanas analisaram mais de 150 mil pacientes entre 2015 e 2018 para chegar à conclusão de que os usuários de cigarros eletrônicos são diagnosticados com câncer quase 20 anos antes do que os fumantes convencionais.
“As evidências estão surgindo e é muito triste que voltemos a discutir isso aqui no Brasil, por toda a luta, todo trabalho que temos ao tratar pacientes com doenças neoplásicas”, diz o médico. “O câncer de pulmão é o que mais mata no mundo inteiro e a possibilidade de caminhar para um retrocesso nessa área é muito ruim”, alerta.
Desde 2009, os dispositivos eletrônicos têm a importação, publicidade e comercialização proibidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), embora sejam facilmente comprados em lojas físicas e na internet de maneira ilegal. A reguladora, porém, reabriu a discussão sobre o tema em dezembro de 2023 em uma consulta pública finalizada no início de fevereiro.
Ainda que a Anvisa mantenha o posicionamento da proibição, o debate deve seguir, posto que tramita no Congresso Nacional um projeto de lei para regulamentar a produção, venda e importação dos dispositivos eletrônicos para fumo. O principal argumento é o de que a venda ilegal expõe ainda mais os consumidores a produtos de procedência e qualidade duvidosa.
Para a pneumologista do Hospital Israelita Albert Einstein, para além da discussão, muito mais relevante é a criação de políticas de conscientização e controle, como as que foram feitas nas décadas de 1980 e 1990 contra o tabagismo no país.
“Temos que ter um olhar muito sério. É muito complicado discutir a legalização, porque até seria interessante uma regulamentação, ser obrigatório ter a quantidade em miligramas de nicotina no dispositivo, quanto isso equivale em maços de cigarros tradicionais, mas o mais importante seria fazer um movimento de conscientização, uma campanha grande nas escolas, com os adolescentes, que são o foco disso, ou teremos um problema de saúde muito grande no futuro”, afirma.