Oferecido por
Há quem se refira ao câncer como uma doença do mundo moderno, mas ele aflige a humanidade há milênios, antes mesmo da dominação do Homo Sapiens. Recentemente, pesquisadores da Universidade da Pensilvânia publicaram um estudo em que revelam ter encontrado registro de um tumor em um neandertal que viveu há mais de 120 mil anos. Fato é que nunca os cientistas tiveram possibilidades tão precisas para combater a enfermidade como hoje.
O tratamento com células CAR-T, um tipo de imunoterapia, é considerado um dos principais avanços na área da oncologia. A terapia consiste em reprogramar geneticamente células do sistema de defesa do próprio paciente – neste caso, os linfócitos T – para reconhecer e combater certos tipos de câncer de sangue. No entanto, o tratamento é pouco acessível no Brasil. Atualmente, a fabricação dos produtos depende de laboratórios estrangeiros, o que acaba elevando o custo.
Em 2022, o Hospital Israelita Albert Einstein foi a primeira instituição no país a receber a aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para começar a aplicação da terapia em pacientes durante um estudo clínico, com todas as etapas de produção realizadas dentro do Einstein. Antes disso, foram feitos testes in vitro e em animais. A instituição é, hoje, a única que detém uma autorização do tipo; outros centros de pesquisa brasileiros também conduzem pesquisas na área.
O estudo do Einstein, em andamento desde 2018, está voltado para a investigação do uso da técnica em pacientes com linfoma e leucemia de células B recidivados e refratários aos tratamentos disponíveis que apresentam prognósticos desfavoráveis. A pesquisa é desenvolvida em parceria com o Ministério da Saúde, por meio do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS).
Nelson Hamerschlak, hematologista, coordenador do Programa de Hematologia e Transplantes de Medula Óssea do Einstein e líder da iniciativa, explica que uma das vantagens do chamado “CAR-T acadêmico” é que o centro de pesquisa da instituição domina todo o processo produtivo da terapia, sem depender da indústria internacional. Tudo é feito em um período de 12 a 14 dias, considerado muito inferior ao praticado no mercado.
“No caso do CAR-T comercial, a célula é retirada aqui no Brasil e encaminhada para uma indústria farmacêutica, que devolve a célula pronta. Essa indústria está fora do Brasil, então o processo demora cerca de três meses. No CAR-T acadêmico, tudo é feito no próprio Einstein e envolve o hospital como um todo: a parte experimental é feita por meio do Centro de Ensino e Pesquisa; depois, isso vai para o laboratório de terapia celular do banco de sangue; e, por fim, vai para o estudo clínico, que avalia toda a questão de segurança”, detalha o pesquisador.
A primeira paciente recebeu as células modificadas pelo Einstein no mês de abril de 2023 e não teve efeitos adversos graves. Um exame de monitoramento PET-CT (diagnóstico por imagem para detecção de cânceres) foi realizado antes do procedimento e um segundo, um mês após. Os resultados já são celebrados: “A resposta foi excelente. Houve remissão total”, afirma Hamerschlak.
Há previsão de que mais nove pacientes entrem no estudo ainda neste ano, durante a fase I da pesquisa – momento em que se avalia a segurança e os primeiros resultados em um número reduzido de participantes. Em 2024, a intenção é ingressar na fase I/II, em que há a ampliação do número de voluntários – nessa fase, é feita uma avaliação sobre eficácia, definição de dose e segurança, de acordo com a Anvisa.
Embora os resultados iniciais sejam animadores, ainda há um longo caminho a ser percorrido até que de fato o CAR-T acadêmico possa ser utilizado por mais pacientes. Para ser registrado como um tratamento no Brasil, o produto precisa estar de acordo com regras estabelecidas pela Anvisa. Uma das barreiras para isso, segundo o hematologista do Einstein, é o pouco contato de grande parte dos pesquisadores brasileiros com a área regulatória.
“O nível de exigência que existe nos órgãos regulatórios é o mesmo que para a indústria farmacêutica. Não que isso não esteja correto, pelo contrário, mas o problema é que as instituições de pesquisa não têm essa mesma expertise de submissão de dossiês e da parte regulatória em comparação à indústria farmacêutica”, afirma. É um processo de aprendizado.
Outro gargalo, de acordo com o pesquisador, está relacionado à produção de um dos insumos necessários para a terapia CAR-T, chamado vetor viral. Por meio dele é feita a transdução (transferência de material genético por meio por um agente viral) para produzir o anticorpo que vai atacar a célula tumoral.
“Esse que nós estamos utilizando vem da Alemanha, e o ideal seria que pudéssemos desenvolver o nosso próprio vetor aqui no Brasil. Nós estamos tentando fazer parcerias com outras instituições públicas brasileiras e com startups fora do Brasil para tentar ter mais independência, para que no futuro isso se transforme em produto. Essa é uma etapa mais à frente. Temos que olhar com muita esperança, mas não temos condições de estabelecer um prazo”, finaliza o médico.
CAR-T acadêmico na Espanha
Vem da Espanha um dos exemplos bem-sucedidos de pesquisa em células CAR-T. O Hospital Clínic I Provincial da Faculdade de Medicina da Universidade de Barcelona (HCPB), que integra serviços públicos e atividades privadas, é reconhecido como uma referência europeia. O líder do grupo de Pesquisa em Transplante de Células Progenitoras Hematopoiéticas e professor da Universidade de Barcelona, Álvaro Urbano-Ispizua, esteve à frente da concepção do CAR-T ARI-0001, o primeiro CAR-T acadêmico desenvolvido na Europa e autorizado para uso em pacientes com leucemia linfoblástica aguda pela Agência Espanhola de Medicamentos e Produtos de Saúde (AEMPS).
Parte do produto foi desenvolvido há 20 anos: o identificador do alvo na célula cancerosa, que é um anticorpo monoclonal produzido no hospital. Segundo Urbano, a terapia completa, com a preparação da construção genética para acoplar o anticorpo e outros componentes, demorou cinco anos para ficar pronta, considerando o período do início dos testes até o primeiro paciente tratado. “Hoje, nós já tratamos mais de 240 pacientes com dois tipos de CAR-T, um para leucemia linfoblástica aguda e outro para mieloma múltiplo, com resultados comparáveis aos descritos para outras terapias CAR-T comerciais”, afirma o hematologista, em entrevista à MIT Technology Review Brasil.
Estudos clínicos demonstraram que o CAR-T ARI-0001 produz respostas completas em mais de 70% dos pacientes, de acordo com o pesquisador. Já o ARI-0002h, para pacientes com mieloma múltiplo, é capaz de atingir uma taxa de resposta de até 75% após um ano de tratamento e 60% dos pacientes apresentam remissão completa sem doença residual.
As pesquisas tiveram apoio financeiro do governo espanhol, por meio do Ministério da Saúde da Espanha e de fundações. Na avaliação de Urbano, uma integração entre os centros de pesquisa europeus se faz necessária para que se possa evoluir ainda mais nesse desenvolvimento. O especialista também conta que a equipe catalã apoia dois projetos de desenvolvimento de células CAR-T no Brasil, um em São Paulo, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) em parceria com o Hemocentro de Ribeirão Preto, e outro em Fortaleza, no Centro de Hematologia e Hemoterapia do Ceará (Hemoce).
O coordenador do projeto em Fortaleza, Fernando Barroso, afirma que a primeira fase de estudo clínico terá cinco pacientes em tratamento. Para isso, foi preciso assinar um termo de confidencialidade envolvendo o Hemoce e o centro de Barcelona. “Nós teremos acesso aos vetores, e eles participarão do nosso estudo”, explica Barroso.
O médico, que também é presidente da Sociedade Brasileira de Terapia Celular e Transplante de Medula Óssea, conta que o Hemoce tenta implementar a terapia com células CAR-T há cerca de seis anos. O especialista destaca a importância da iniciativa para a região Nordeste, em que o acesso a tratamentos inovadores é mais restrito se comparado à região Sudeste: “Quanto mais iniciativa tivermos, maior a chance para os pacientes”.
Revolução na ciência e na regulação
Há ainda outras pesquisas no Brasil que estão no processo para submeter pedido de aprovação da Anvisa e poder começar os ensaios clínicos com voluntários, quer dizer, tratar pacientes com células CAR-T. No final de 2022, a Anvisa publicou um edital de chamamento para selecionar desenvolvedores nacionais para participar de um projeto-piloto de cooperação técnica regulatória para o desenvolvimento de produtos de terapia avançada de interesse do Sistema Único de Saúde (SUS). Dez projetos foram inscritos e dois foram selecionados: o do Hemocentro de Ribeirão Preto em parceria com o Instituto Butantan; e o da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Ambos pesquisam produtos à base de células CAR-T para o tratamento de leucemias e linfomas estão em fase inicial de desenvolvimento com intenção de início dos ensaios clínicos para comprovação de segurança, eficácia e qualidade.
De acordo com o gerente de Produtos de Terapias Avançadas da Anvisa, João Batista da Silva Junior, a intenção da iniciativa é fomentar um trabalho conjunto em prol da produção nacional, auxiliando os desenvolvedores no processo regulatório. “O que pode ser feito para ajudar no desenvolvimento inicial? A agência reguladora estar mais próxima desde o início? A ideia é essa, é abrir canais para que nós possamos pensar caminhos, em coisas que são possíveis de serem feitas dentro de uma avaliação de risco e benefício, caso a caso, junto ao desenvolvedor”, afirma.
Para que os avanços científicos e tecnológicos estejam disponíveis para o maior número de pessoas, é preciso calibrar os passos de todos os envolvidos no processo, avalia o gerente da Anvisa. Agências regulatórias na Europa e nos Estados Unidos estão discutindo como acelerar os procedimentos, mas sem perder o rigor técnico. O especialista cita, por exemplo, a concessão de autorizações para fases clínicas mais ágeis, tendo como contrapartida um monitoramento mais longo e mais rígido. “Os produtos de terapias avançadas estão revolucionando a ciência, a medicina e a regulação também. Começamos a construir no Brasil registros bem diferenciados”, afirma João Batista.