Bitcoin: da selvageria à domesticação do mercado
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Bitcoin: da selvageria à domesticação do mercado

Embora tenham uma natureza anárquica, criptomoedas têm sido alvo de tentativas de regulamentação para garantir segurança aos investidores e previsibilidade aos mercados.

Não se engane por uma leitura rápida do título deste artigo. O Bitcoin é anárquico e resiliente demais para ser domesticado. O que vimos nos últimos anos foi a tentativa de criar algumas cerquinhas em torno do primeiro ativo digital escasso para que os mercados pudessem operar com alguma previsibilidade, e os investidores institucionais com alguma segurança.  

Mas sabemos como são as cercas e a talvez intrínseca vontade que muitos têm de saltá-las. Quem é um pouco mais antigo no mercado já ouviu todo tipo de histórias e já viu todo tipo de golpes. A frase mais marcante que eu escutei foi de um operador de wallets, que, por volta de 2016, trabalhava em uma estranha OTC. Por um acaso ele atendeu o telefone no escritório e escutou: “Manda el dinero o muerte”. Pediu demissão no dia seguinte.  

É claro que ao lado do que hoje parecem anedotas sinistras estavam em ação as forças das empresas sérias que ajudariam a criar ou pensar as futuras regras para o mercado de criptomoedas na tentativa de dar mais segurança para que pessoas comuns investissem no ativo.  

Na época, embora os protagonistas do mercado cripto brasileiro ainda coubessem em um grupo de WhatsApp, havia ao menos um esboço de visão da criação de uma infraestrutura de mercado. Empresas como Mercado Bitcoin e Foxbit já disputavam espaço e clientes. 2016 é também o ano da fundação da Blockchain Academy, que ajudou a formar um corpo técnico cada vez mais profissional no país.   

No ano anterior, em 2015, o tema havia chegado – ainda que de maneira torta e pouco precisa – na Câmara dos Deputados. Foi quando o deputado Áureo Ribeiro propôs o primeiro projeto de lei para regular o mercado de criptoativos no Brasil.  

Vale a pena rever o que diz a ementa do PL para observar as mudanças da linguagem: “Dispõe sobre a inclusão das moedas virtuais e programas de milhagem aéreas na definição de ‘arranjos de pagamento’ sob a supervisão do Banco Central”.  

Bom, ninguém usa mais o termo ‘moedas virtuais’ — hoje mais usado para se referir ao dinheiro do mundo dos videogames. E, vale notar, que a relevância disruptiva das criptomoedas esmagaram e expulsaram as milhas aéreas do debate regulatório. As milhas, como se sabe, não são nada descentralizadas e não cresceram em importância. Pelo contrário: vêm encontrando concorrência em versões de sistemas de pontos que usam a tecnologia das criptomoedas tal como o proposto pelo Nubank.  

O sistema seguiu debatendo o problema: como o Estado seria capaz de observar as trocas que estavam acontecendo entre empresas e usuários? Muito antes de o Banco Central colocar o Bitcoin na conta do balanço de pagamentos (somos mais importadores do que exportadores), a Procuradoria da Fazenda e a Receita Federal estavam de olho no problema.  

Em 2019, houve o primeiro avanço significativo do Estado para domar o mercado, algo que vinha sendo gestado pelo menos desde 2017. É a época do lançamento da Instrução Normativa 1888, que instituiu a obrigatoriedade da prestação de informações sobre operações realizadas com criptomoedas à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil.  

Usuários e empresas cripto com residência fiscal no Brasil — as de fora seguem em um confortável limbo regulatório — agora teriam que reportar mês a mês a movimentações. O dado, em um primeiro momento coletado apenas para monitoramento, só viria a ser usado na prática neste ano quando a Receita começou a puxar os dados automaticamente na declaração pré-preenchida.  

É importante lembrar que tudo isso veio ocorrendo enquanto o PL proposto pelo deputado Aureo vinha sendo debatido na Câmara em ritmos distintos, com novos parlamentares propondo novos projetos, mas sempre com foco na organização do mercado.  

Nos Estados Unidos, por exemplo, embora uma regulação esteja distante, as agências reguladoras que protagonizam a fiscalização do meio são a SEC e o CFTC, que regulam partes distintas do mercado de capitais no país. A primeira tem exercido pressão sobre empresas que levantaram capital por meio de ICOs (Inicial Coin Offering), no qual o caso mais emblemático é a batalha judicial contra a Ripple, que lançou a criptomoeda XRP em 2012.Já o CFTC, que regula o mercado de futuros e de derivativos, está de olho na Binance por ter permitido que americanos tivessem acesso a um produto financeiro — futuros de Bitcoin — que precisa passar pelo escrutínio dos reguladores do país.

É da União Europeia que virá a primeira regulação mais abrangente sobre o mercado cripto. O projeto, apelidado de Mica (Markets in Crypto-Assets), foi aprovado pela maioria dos ministros das finanças do bloco e segue em marcha rápida rumo à aprovação: deve virar lei em julho e entrar em vigor em 2024.  

O foco, dizem os reguladores, é combater a lavagem de dinheiro. O que enseja o processo será a cobrança de maior transparência dos responsáveis pelo projeto de criptomoedas. Além disso, um dos pontos mais polêmicos, será a tentativa de monitorar transações acima de US$ 10 mil em cripto — algo que na prática é quase impossível com uso de carteiras com endereços anônimos. 

No Brasil, o PL aprovado no final do ano passado é muito mais modesto. Será o momento de cavar uma estrutura infralegal que não prejudique a concorrência e a inovação dos atores. Ainda existem algumas definições importantes como qual será o órgão que irá monitorar o mercado – Banco Central (BC) ou Comissão de Valores Mobiliários (CVM).  

No Brasil, a balança pende para o BC por causa da forte movimentação de evasão de divisas. As empresas que operam no Brasil obrigatoriamente precisarão ter um CNPJ registrado no país e deverão reportar as movimentações dos clientes à Receita Federal. É possível que a barra de acesso a novos entrantes suba pois não será barato conseguir a aprovação dos reguladores.  

Contudo, a definição ainda depende do governo e sabe-se que a medida está na antessala do atual governo. O ponto, vale repetir, não será regular o Bitcoin em si — o que não é possível sem destruir o mercado — mas de afinar a orquestra que se formou em torno do ativo. 

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