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Na perspectiva de quem tem contato com a inovação na área médica e testemunha os avanços do setor, afirmar que os investimentos em biotecnologia vão determinar o futuro dos sistemas de saúde mundo afora pode ser uma previsão óbvia. Para alguns países, que perceberam isso anos atrás e hoje se posicionam na vanguarda, os resultados já são evidentes. Contudo, para a maioria, ainda se trata de uma projeção distante.
Um relatório elaborado pela revista científica Nature, publicado em junho de 2022, apontou Suíça, Suécia e Estados Unidos como líderes de biotecnologia orientada por pesquisa e desenvolvimento, seguidos de Israel. Singapura, outra nação com tradicional investimento no setor, está em sétimo no mesmo ranking.
Entre eles, há um caminho em comum: são países que apostam na biotecnologia há décadas e buscam construir um ecossistema de saúde para que a inovação saia do laboratório e chegue até o maior número possível de pessoas, ou seja, com o intuito de fazer com que a ciência traga respostas para problemas globais e não apenas geolocalizados.
Esse contexto é refletido na saúde global e pode ser ilustrado com vários exemplos conhecidos nas duas últimas décadas.
Guinada de Singapura
Foi uma startup de Singapura, junto a uma farmacêutica global, que desenvolveu um teste rápido para o diagnóstico da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) em 2003, durante a epidemia na Ásia. O resultado representa uma das iniciativas ágeis do continente para conter a disseminação do vírus.
Um dos componentes centrais da fórmula para o sucesso do país é o investimento do governo. Em 2000, o Estado destinou US$ 19,3 bilhões para reforçar a infraestrutura de pesquisa e criar um pool de talentos para atrair empresas privadas. Desde então, Singapura abriu as portas para a inovação e despertou o interesse de grandes players da saúde, tornando-se referência na capacidade de fabricação de classe mundial. Segundo fontes oficiais, o país concentra instalações de oito das 10 maiores empresas farmacêuticas e fabrica quatro dos 10 principais medicamentos por receita global.
A saúde é uma das áreas prioritárias que alavancou a economia de Singapura, que em poucas décadas deixou de ser uma ilha considerada pobre e entrou no grupo das nações com maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). O diretor de Inovação do Hospital Israelita Albert Einstein, Rodrigo Demarch, avalia que o país, apesar de viver um contexto social diferente do Brasil, é um ambiente de aprendizado para quem quer colocar em prática a biotecnologia no território nacional.
“O país [Singapura], nas últimas duas décadas, construiu um ecossistema de colaboração onde a pesquisa já está interligada com o mercado e outros atores da área da saúde. Esse é o caminho para que a inovação se transforme em produtos e soluções para a sociedade”, afirma.
Outro fruto desse ecossistema de inovação em saúde é a Holmusk, que nasceu em Singapura já com a chancela de empresa global e busca construir a maior plataforma de real world evidence (RWE). A empresa faz diferentes parcerias ao redor do mundo envolvendo a academia, governos, institutos internacionais e indústrias farmacêuticas. O objetivo é abastecer sua plataforma e encontrar possibilidades de tratar e prever distúrbios da saúde mental a partir da análise de comportamento.
Um dos produtos do pipeline da Holmusk é um biossensor aplicado à medicação de alta complexidade e de uso contínuo. Com essa tecnologia, uma equipe médica poderá monitorar se o paciente está seguindo a prescrição correta de um medicamento. Uma outra solução desenvolvida é baseada no uso de algoritmos para ajudar provedores de saúde a entenderem quais indivíduos têm o maior risco de crise de saúde mental.
Capital da ciência da vida
Israel é o país que abriga centros de referência em biotecnologia e já foi reconhecido como “life science nation”. No relatório da Nature, o país lidera o ranking de investimentos e em gastos governamentais com pesquisa e desenvolvimento.
O histórico de educação e acesso à pesquisa e desenvolvimento começou em 1912, com a fundação do Technion, principal instituto de engenharia em Israel. A instituição foi apoiada por figuras importantes da história, como o cientista Albert Einstein, e abriu os caminhos para que o país conquistasse seu espaço na inovação 100 anos depois.
Cientistas israelenses foram pioneiros em pesquisas com células-tronco, em estudos para melhorar o desempenho de antibióticos e no desenvolvimento de drogas anti-TNF (fator de necrose tumoral) para doenças inflamatórias crônicas. Muitos medicamentos inovadores também surgiram de pesquisas inicialmente realizadas em universidades e hospitais israelenses, como os tratamentos de esclerose múltipla, mieloma múltiplo e doença de Parkinson.
Nas últimas décadas, o legado na área de educação ajudou a impulsionar a cultura do financiamento voltado à execução de ideias inovadoras. Criou-se um ambiente que, segundo a head do programa de biotecnologia do Hospital Albert Einstein, Camila Hernandes, faz a diferença para que o cientista compreenda os caminhos para transformar projetos em produtos.
“É o mercado que faz o investimento para que a ideia se transforme em um produto. Muitas vezes, o cientista não tem a visão da inovação ou não sabe ao certo como produzir algo em laboratório que seja passível de virar o produto de fato”, diz Hernandes.
A startup israelense Nucleix, uma empresa de biópsia líquida, recebeu US$ 55 milhões para o desenvolvimento de exames para detectar câncer de pulmão precocemente em fumantes e ex-fumantes. O investimento veio a partir de um estudo que demonstrou que o produto da startup foi capaz de diagnosticar 85% dos casos de neoplasia em estágio inicial em fumantes de alto risco.
Relação de longa data com o setor privado
Embora as experiências de Singapura e Israel tenham um pilar estrutural baseado em políticas do governo, a experiência dos Estados Unidos demonstra que o investimento privado é um alicerce para que a biotecnologia saia do papel. Segundo a Dealroom, plataforma de análises de mercado, os EUA atraem a maior quantidade de investimento em tecnologia de saúde no mundo.
No território norte-americano, estão as grandes empresas de biotecnologia, especialmente da indústria farmacêutica. Um relatório da consultoria Mckinsey mostra que o país concentrou, entre os anos de 2010 e 2020, 85% dos lançamentos de medicamentos da área de biotecnologia. Essa potência impulsiona a área de pesquisa e desenvolvimento, principalmente em relação a parcerias a à construção de redes internacionais.
Além disso, os Estados Unidos criaram o Projeto Genoma Humano, um esforço científico envolvendo outras nações para gerar a primeira sequência do genoma humano. O projeto começou em 1990, passou por diferentes fases e consórcios, e o objetivo final foi obtido em março de 2022, quando os cientistas anunciaram a primeira sequência do genoma humano completa.
A pesquisa abriu um leque para novas descobertas e oportunidades nas ciências médicas, como o desenvolvimento de tecidos humanos para substituir partes do corpo. A empresa americana 3DBio Therapeutics, por exemplo, busca utilizar células de pacientes associadas à tecnologia de impressão 3D para criar implantes. Já há um primeiro ensaio clínico para testar a biotecnologia em pessoas que nasceram sem a orelha, uma condição que, segundo a empresa, pode ser revertida com reconstrução cirúrgica da orelha externa.
Hernandes cita o investimento do setor privado nas inovações norte-americanas como outro componente para a obtenção de êxito na execução de ideias que surgem na área acadêmica.
“O setor privado sabe encontrar os recursos financeiros para uma boa ideia, e o mercado norte-americano é um exemplo de maturidade. Mostra como é complexo o investimento em pesquisa, mas também que é um casamento capaz de gerar bons frutos”, avalia a head do programa de biotecnologia do Einstein.