Big Data Analytics é o diário de bordo da saúde do futuro
HealthHealth Innovation por Einstein

Big Data Analytics é o diário de bordo da saúde do futuro

A ciência trará respostas cada vez mais acuradas para auxiliar decisões clínicas e de gestão com o uso de tecnologias. Os principais desafios passam pela digitalização da jornada do paciente, interoperabilidade de dados, boas práticas e adequação à LGPD.

Séculos atrás, grandes navegadores entenderam a necessidade de manter nas embarcações diários de bordo com registros de informações relevantes sobre os percursos marítimos para otimizar a exploração de novos territórios. Na medicina, anotações sobre a história das doenças serviram como ponto de partida para o desenvolvimento de tratamentos, sua evolução e até descobertas de cura. No século 21, o processo de digitalização desses achados está presente tanto na indústria naval quanto na área da saúde. Mas, no segundo caso, os dados aliados à tecnologia abrem infinitas possibilidades para a busca de direções mais precisas na principal trajetória do ser humano: a da vida.

O Big Data Analytics, aplicado com o objetivo de captar, armazenar, analisar dados e deles extrair valor, é a ciência que trará respostas cada vez mais acuradas para auxiliar decisões clínicas e de gestão a partir do uso de Inteligência Artificial e outras inovações tecnológicas. Em analogia aos primórdios da navegação, podemos enxergá-la como uma espécie de diário de bordo da saúde do futuro. Esse repositório de informações processadas de forma estratégica, obviamente, é armazenado em nuvens digitais, não em alto mar, mas deve ser tratado como um tesouro contemporâneo.

A implementação do prontuário eletrônico é o ponto de partida para a digitalização e customização da jornada do paciente, e tem sido a peça-chave para o desenvolvimento de novas soluções na área da saúde. No entanto, as informações de interesse para a análise de dados no setor vão além dos registros médicos e são coletadas a todo momento em sistemas digitais diversos, como na habitual vinculação da identidade do cidadão a compras no varejo. As chamadas “data crumbs” ou migalhas digitais são elementos que ajudam a compreender toda a história que tem impacto na vida de uma pessoa. Saber se ela é bem-informada, se pratica exercícios físicos regularmente, como ela se alimenta e se consegue cumprir horários predeterminados, por exemplo, são pistas para indicar o perfil de adesão a determinado tratamento.

Por outro lado, o uso dessas informações é balizado pela legislação, justamente para proteger os usuários do sistema. Afinal, a quem confiar nossos dados? Como eles serão usados? É possível manter a privacidade? A segurança da informação pessoal — no Brasil, regulamentada pela Lei 13.709/18, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) — e seus desdobramentos jurídicos é um dos desafios do momento e terá reflexos importantes nos caminhos a serem percorridos para a ampliação do uso de Big Data Analytics na saúde.

Outro aspecto relevante nesse contexto é a ausência ou a dificuldade de interoperabilidade dos dados, o que prejudica a amplitude do olhar sobre o indivíduo ao longo da vida. O acompanhamento da trajetória de uma pessoa desde o seu nascimento, incluindo seus hábitos e escolhas cotidianas, certamente aumentaria suas chances de ter uma vida mais saudável, mas o que se vê atualmente são registros de uma jornada fragmentada em ciclos de cuidado distintos, sobretudo considerando diferentes tipos de serviços assistenciais existentes no sistema público e no sistema privado. Um cenário que gera desperdício de informações e de recursos.

IA na prática

O Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE) é referência no uso de dados no setor hospitalar. Dentro do que se enxerga como o ápice da tecnologia aplicada à saúde, já é possível saber com horas de antecedência a probabilidade de piora clínica de um paciente com uso de algoritmos Inteligência Artificial. Mas a IA também é utilizada, entre outras aplicações, para prever a chance de desenvolvimento de síndrome metabólica com base em informações de check-up ou para antecipar se uma gestante está em uma gravidez de risco a partir da análise de seu vocabulário durante a utilização de aplicativos. É ainda uma ferramenta poderosa na gestão de recursos humanos e materiais.

A execução de grande parte desses projetos dentro da instituição passa pela Central de Monitoramento Assistencial (CMOA), sob responsabilidade da Diretora de Operações e de Enfermagem do HIAE, Claudia Laselva. Trata-se de uma unidade criada logo após a digitalização do prontuário com o intuito de contribuir para a melhoria da segurança do paciente a partir da gestão de dados em tempo real.

“Conseguimos identificar por meio de alguns scores os pacientes com risco de piora. Eu consigo captar dados do prontuário e utilizar IA com base nas últimas 24 horas em termos de evolução dos parâmetros clínicos. Muitas vezes, antes que o enfermeiro ou o médico da unidade perceba que há um quadro de piora, esse algoritmo emite um alerta para a central de monitoramento, que avisa as equipes do cuidado”, relatou.

Essa central administra 140 triggers, definidos em ordem de prioridade, com base nos principais eventos adversos registrados pelo hospital. Um exemplo de trigger prioritário é a manifestação de dor pelos pacientes, que são questionados proativamente nos diferentes turnos de plantão e atribuem scores para o que estão sentindo. Para scores de dor acima de 6 ou 7, caso não haja prescrição de medicamento em até 30 minutos, a equipe da CMOA faz um contato telefônico com a área responsável pela assistência na linha de frente. Passados mais 30 minutos sem resultado, uma nova chamada é feita. A resposta do paciente à dor também é monitorada.

“Infelizmente, não há um enfermeiro ou um técnico para cada paciente. Como a atividade é muito complexa, sabemos que o profissional é muitas vezes interrompido e pode perder a continuidade do cuidado”, comentou Laselva.

Usar dados é preciso

A reflexão gerada pela experiência adquirida com a aplicação desse tipo de inovação no dia a dia do hospital se parece com a ilustrada pela frase do imaginário português revisitada por Fernando Pessoa: “Navegar é preciso; viver não é preciso”. Os dados, sobretudo aqueles relacionados diretamente ao paciente — cuja singularidade tem um peso significativo — nem sempre terão a acurácia almejada, mas é necessário usá-los para que se alcance uma qualidade satisfatória, capaz de gerar valor à assistência médica. À frente da área de Ciência de Dados e Analytics do HIAE, o médico Edson Amaro avalia que a história do Big Data mostra que esse é o caminho a ser percorrido para o desenvolvimento de novas soluções.

“Qualidade de dados é fundamental para analytics. E quanto mais se utilizam os dados, mais a qualidade desses dados tende a melhorar, porque seu uso mostra o seu valor. Portanto, gera-se estímulo para que sejam criados dados melhores. Automaticamente, você induz o processo e melhora a qualidade. Casou de termos uma metodologia ágil, tipicamente do mundo da inovação, que é a de fazer pequenas entregas de valor e conviver com o risco. É consertar, não ter medo de errar, mas só entregar quando eu não consigo ver mais erro. E criar esse processo de interação foi uma grande lição de como fazer isso na medicina, porque aqui há limites para o risco. Não podemos errar com a vida das pessoas”, explicou.

Com base na clareza de que os algoritmos são imperfeitos, é fundamental estabelecer procedimentos para mitigar os riscos que envolvem a margem de erro durante sua utilização. Supondo que um algoritmo tenha 93% de acurácia na predição, o que acontecerá com a porcentagem restante? Isso deve ser discutido, principalmente se houver ligação direta com a vida de um paciente.

“Nós não somos futurólogos. Nós conseguimos chegar a cenários que são mais prováveis do que outros e temos que traduzir essa incerteza em uma ação prática. O que fazer se o seu algoritmo diz que tal remédio é melhor do que outro? Como conversar com o paciente sobre isso? Na verdade, o médico já faz muito isso. Sabemos que não é possível acertar o tempo todo na medicina, mas trabalhamos com riscos aceitáveis, sempre com o princípio de não causar dano. Já existe um certo arcabouço de diálogo que prepara para o uso do algoritmo, só precisamos aplicar a essa área também”, disse Amaro.

Desafios do Big Data Analytics

No tempo de atuação da equipe de Ciência de Dados e Analytics do HIAE, foram extraídas lições fundamentais para o percurso do Big Data Analytics na saúde: o registro dos caminhos percorridos para o desenvolvimento das soluções, como um diário de bordo, para evitar a repetição de erros; o uso de dados para o aumento de sua qualidade; a preparação para atuar em cenários imprevisíveis; e o aprendizado para lidar com o futuro probabilístico.

“Trabalhando essas frentes, conseguimos colocar um pouco mais os pés no chão. Conseguimos fazer muito, mas temos que conviver com esse ambiente novo, com as dores de quando não dá certo, com a qualidade dos dados que temos e com as práticas que têm que ser customizadas. Precisamos treinar as pessoas da área de saúde para usar IA da melhor maneira possível, porque a tendência primeira é pensar que se trata de um programa de computador, mas não é. Não é uma ferramenta infalível. É uma ferramenta complexa e muito poderosa. Temos que lembrar que há responsabilidade no uso”, avaliou o responsável pela área.

A ampliação do uso do Big Data Analytics também deve ser acompanhada por critérios de boas práticas, abrangendo desde questões éticas até parâmetros de custo-efetividade.

“Não é só você colocar um algoritmo que pega o dado e cospe uma resposta. É desenhar um processo diferente. Isso faz parte do que entendemos como Transformação Digital. Não adianta colocar uma solução extremamente complexa para um problema que às vezes se resolve com outra coisa não tão sofisticada”, exemplificou Amaro.

Do ponto de vista regulatório, a expectativa é que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) adapte os processos para lidar com a rapidez do desenvolvimento dos algoritmos de IA. O especialista do HIAE acredita que, ao passo que essas tecnologias são altamente escaláveis, elas também são altamente monitorizáveis, permitindo um tipo de regulação mais flexível.

“Essa parte de monitorização do uso de softwares é extremamente favorecida pela tecnologia digital. Você não precisa colocar um fiscal para saber se a pessoa está apertando o botão certo do aplicativo. Você pode usar o aplicativo para te informar isso. Crescem os instrumentos de monitorização de segurança digitais. Por que não usar? Isso pode ser pensado, elaborado e muito bem utilizado. No caso da IA, não é um equipamento físico que você precisa mudar, são linhas de código. Vejo que há movimentações sendo feitas. Vamos chegar lá, mas a velocidade me preocupa”, avaliou.

Além desses fatores, há outras dificuldades relacionadas a áreas distintas. Do ponto de vista ambiental, por exemplo, começam a gerar preocupação os impactos decorrentes do uso de sistemas computacionais cada vez mais complexos, que aumentam o consumo de energia. No contexto socioeconômico, a desigualdade nos países em desenvolvimento, como o Brasil, tende a elevar o nível de dificuldade para a ampliação do acesso a essas novas tecnologias.

LGPD

A adequação à LGPD é uma preocupação presente no universo do Big Data Analytics, tanto na parte jurídica, envolvendo a compreensão dos termos da lei, quanto na parte prática, de desenvolvimento. Enquanto a sociedade está mais protegida em termos de privacidade, a legislação pode limitar a capacidade de criação de empresas menores, como as startups.

“Qual é o custo de você ter uma assessoria jurídica para desenvolver um algoritmo se você é uma startup? Quanto você precisa saber? Para grandes companhias, há departamentos inteiros para saber como colocar um produto no mercado. Para quem tem supercriatividade, mas sem recursos, é mais uma dificuldade para competir no mercado. É importante criar incentivos para aproveitarmos as inteligências que surgem a todo momento na nossa sociedade”, disse Edson Amaro.

Uma das possibilidades para contornar essa dificuldade, para o especialista, pode ser o surgimento de soluções de opensource jurídico.

“Para sociedade, que é o que importa, é um momento mais seguro. Ganhamos mais segurança com a LGPD. Sou a favor de regulamentar esse processo de acordo com as leis, mas precisaria haver um pensamento dos impactos disso e talvez criar formas de fomentar que não impeçam a utilização do poder criativo”, afirmou o médico.

Open Health

A implementação de um modelo de “Open Health” depende do funcionamento pleno da Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS). Durante a pandemia da Covid-19, o Ministério da Saúde conseguiu fortalecer a rede e, pela primeira vez, dados do sistema público e privado estiveram disponíveis de maneira ampla na plataforma Conecte-SUS.

O responsável pela área de Ciência de Dados e Analytics do HIAE explica que uma das premissas da interoperabilidade de dados na saúde é a de que o dado pertence à pessoa, não a instituições. O conceito é simples de se explicar: “Se eu tenho minhas roupas, posso escolher em qual guarda-roupa eu as coloco. Isso muda muito a visão de mercado. Antes, as ferramentas possuíam seus dados. É como se você tivesse que pedir ao guarda-roupa para pegar seu pijama”.

Edson Amaro considera o Open Banking, já em funcionamento no Brasil, uma experiência inspiradora para o setor. “A saúde pode pensar em modelos semelhantes e que literalmente dependem de o indivíduo entender o processo para fazer melhor uso dele. É um processo que vai demorar um pouquinho, espero que não muito, para ser percebido em seu valor”, disse.

Na avaliação do médico, sendo o paciente o dono de seus próprios dados, as instituições terão que se mostrar mais atraentes para serem “guardiãs” das informações, criando ainda mecânicas de troca. Para isso, no entanto, a movimentação principal deve partir da esfera governamental, que tem capacidade para impulsionar a adoção desse tipo de mecanismo em larga escala.

“A forma de se fazer uma TED ou um Pix são ótimos exemplos. Você vai a um médico em uma cidade que não é a sua e ele tem acesso a todo o seu histórico. Isso é desejável. Por que isso não acontece? Porque precisa haver um incentivo governamental, senão demora muito tempo para as instituições perceberem valor nisso. Tem que haver essa visão”, exemplificou.

No HIAE, há em andamento um projeto de “open notes”, visando à disponibilização das informações contidas no prontuário eletrônico aos pacientes. Apesar de a legislação obrigar os hospitais a manterem os registros dos pacientes, não há nenhum impeditivo para que eles sejam fornecidos ao próprio paciente ou seu responsável legal.

“Essa é uma iniciativa internacional para a melhoria da segurança do paciente, entendendo que um paciente melhor informado vai contribuir mais com o seu tratamento. A ideia é que, em curto espaço de tempo, o paciente possa acessar seu prontuário, obter suas informações e interagir com a equipe”, informou Claudia Laselva.


Este artigo foi produzido por Manoela Albuquerque, Repórter e Editora de Saúde na MIT Technology Review Brasil.

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