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Ouvi recentemente a confissão de um executivo de uma empresa de calçados: “Durante a pandemia, a Internet nos salvou. Mas agora, toda vez que vendemos pelo e-commerce, eu ganho um cabelo branco a mais”. Ele se referia à falta de gente para cuidar da sua loja virtual. Com o aquecimento do mercado, talentos digitais estão recebendo propostas de salário de duas a três vezes maior. “Eles não negociam, simplesmente vão embora dizendo que receberam uma proposta irrecusável”, completa o executivo.
Diversos estudos feitos por consultorias e associações do setor falam em um “apagão” de mão de obra no país, com até 200 mil vagas de tecnologia não preenchidas, nos próximos dois anos.
Gestores de tecnologia, comunicação digital e Inteligência Artificial já sabem algo que, daqui a alguns meses, os institutos de pesquisa vão confirmar: o mercado está aquecido e há uma guerra por talentos. Entram nessa disputa não só startups que receberam investimentos milionários, como também empresas do exterior. São frequentes os casos de pessoas que agora trabalham em home office no Brasil para empresas na Europa e nos EUA.
Muitos profissionais trabalhando de casa no último ano perderam laços com os colegas, por não estarem juntos fisicamente, e ainda aprenderam que podem trabalhar de qualquer lugar. Somando-se a isso, o dólar valendo mais de cinco reais fez com que recrutadores de outros países se tornassem concorrentes.
Chips e pessoas
A produção de carros no mundo todo sofre com a falta de chips. Fábricas paradas e mudanças na liderança de vendas acontecem mundo afora. Para se ter uma ideia, um carro hoje carrega cerca de 300 chips, versus 15 semicondutores vinte anos atrás. A participação da eletrônica no custo de produção de um carro, que, naquela época, era de 15%, hoje já ultrapassa 40%.
Assim como aconteceu com a quantidade de chips, quantos profissionais “digitais” sua empresa tinha anos atrás e quantos tem hoje? Ou melhor, quantos deverá ter para a próxima década? O quanto sua empresa está disposta a não só pagar, mas acompanhar as mudanças de salário desses profissionais no futuro, mesmo que de forma separada das regras que regem salários no restante da companhia?
É só por dinheiro?
Embora justificadas como propostas irrecusáveis, essa é só a ponta do iceberg. Existem outras motivações que acompanham os salários.
Em seu livro “Nove mitos sobre o trabalho”, o pesquisador britânico Marcus Buckingham desconstrói uma série de mitos, entre eles o de que as pessoas se importam com as empresas onde trabalham (alerta de spoiler: elas se importam é com o time em que estão), a importância do feedback, o valor das metas em cascata e até a relação entre trabalho e vida pessoal. Ao longo de muitos anos, Buckingham e o coautor Ashley Goodall entrevistaram milhares de pessoas em dezenas de países a fim de encontrar e divulgar boas práticas de gestão.
Os autores sugerem que todo gestor faça oito perguntas-chave para avaliar como seus funcionários se sentem, para assim tomar as melhores decisões para os negócios. Se você imaginou que a pergunta “o quanto você recomenda este lugar para um colega” (também chamado de NPS) está nessa lista, errou.
As perguntas incluem “eu entendo o que é esperado de mim no trabalho?”, “no meu time sou cercado de pessoas que compartilham os mesmos valores?”, “tenho a chance de usar minhas melhores qualidades todos os dias?”, “sou sempre desafiado a crescer?”, entre outras.
As pessoas não estão deixando empresas só por dinheiro.
A transformação digital forçada pela pandemia fez com que empresas tradicionais se modificassem da noite para o dia criando canais digitais de venda, já que as portas estavam fechadas.
Esse é um ponto-chave: canais digitais.
Muitas empresas não mudaram seus processos, sua hierarquia, sua forma de trabalhar. Elas apenas agregaram canais periféricos digitais para sobreviver e crescer. Algumas companhias até colocaram um pouco mais de maquiagem criando “times ágeis”, mas que muitas vezes sucumbem à ordem e param tudo o que estão fazendo para obedecer aos desejos do presidente da empresa sem perceber que sem autonomia times ágeis têm pouco valor.
Quando os talentos digitais fazem parte desse “canal”, eles respondem de forma negativa às oito perguntas. Não se conectam com a missão da empresa, acreditam que seu trabalho apenas dá uma forma digital para uma empresa antiga e, pior, notam seu potencial subutilizado.
Como unir crescimento e digitalização para os próximos anos
Quem acredita que os profissionais digitais gostam, na verdade, de trabalhar em empresas com pufes coloridos, escorregadores e patinetes deve rever seus conceitos. Bem como acreditar que pessoas saem apenas por salário. A tal proposta irrecusável é acompanhada da atração por uma cultura digital, composta por processos ágeis de verdade, cheia de autonomia para as equipes testarem e colocarem na rua projetos inovadores.
Essas empresas estão em uma missão que passa por desconstruir a forma antiga de trabalhar – engessada e hierárquica – em prol de uma transformação digital dos negócios para oferecer melhores produtos e serviços para os consumidores. De verdade.
Elas sabem que isso só é possível quando a mudança é de dentro para fora: nasce nas equipes e nos processos horizontais e digitais, até desembocar em inovações para os consumidores. Esse é o caminho.
Isso não é um problema, é uma oportunidade.
Se você é gestor de uma empresa que funciona de forma tradicional, pense nas pessoas que estão saindo e compare com as que estão ficando. Agora pense nessa empresa daqui a 20 anos e responda à seguinte pergunta: quais funcionários possuem as características do futuro? Os inquietos que foram embora ou os que sempre dizem sim para manter o status quo e as coisas “como sempre foram feitas”?
Será que aquelas metas de vendas criadas em um escritório internacional a mil pés de distância da realidade dos seus clientes fazem sentido e motivam as equipes de vendas? Você ainda acredita em NPS? Já viu que as empresas mais inovadoras não trabalham mais assim?
Durante a tão esperada retomada da economia após a pandemia, não há espaço para perder os talentos. Essas pessoas devem ser usadas para desenhar novos processos.
Pergunte a eles o que incomoda na empresa e comece a mudar aos poucos: escolha um produto, uma área ou uma região e comece a testar lá com essas pessoas. Os inquietos digitais são um benefício que as empresas não podem desperdiçar. A energia deles pode ser direcionada para reescrever processos, equipes, relações, remunerações, incentivos, produtos e serviços. Tudo
Testes serão feitos, erros cometidos, e tudo isso fará parte do crescimento.
Agora, se você é daquelas pessoas digitais que estão vendo seu talento subutilizado e ainda ouve do seu chefe que “precisamos primeiro provar o valor do digital antes de investir”, arrume suas malas. Lá fora, tem gente mais inteligente, investindo muito e precisando de você.
Aproveito para recomendar mais alguns livros:
A Regra é Não Ter Regras (do fundador da Netflix), Criatividade S.A. (sobre a Pixar), Hacking Growth, de Sean Ellis, o espetacular Freedom.Inc, além de qualquer vídeo que você encontrar na sobre as equipes no Spotify.
Esse artigo foi produzido por Fernando Teixeira, SVP de Dados na Media.Monks e colunista da MIT Technology Review Brasil.