Em plena pandemia, o ano de 2021 foi de recordes. Surgiram 959 novos unicórnios no mundo, empresas com valor de mercado superior a USD 1 bilhão. Globalmente foram investidos mais de USD 600 bilhões em capital de risco, sendo mais de 1500 destas transações superiores a USD 100 milhões. Foram quase 11 mil transações de fusão e aquisição, crescimento de 58% em relação ao ano anterior.
Há uma constante e crescente preocupação das corporações com empresas recém-criadas e inovadoras, que irrompem de todos os lados, ameaçando lideranças consolidadas e abrindo novos mercados. Mas por que é tão difícil para corporações inovarem internamente, em vez de se tornarem presas para startups bem financiadas? Como grandes empresas podem pensar e criar o futuro, sem necessariamente comprometer seu dia a dia?
Inovar ou executar?
Na década de 1950, tubos de vácuo eram um mercado de aproximadamente US$ 700 milhões e empresas como Sylvania e RCA riam à toa. Entre 1955 e 1982, entretanto, a liderança da indústria mudou completamente por causa de uma inovação: o transistor. A partir de 1965, empresas como a Motorola e Texas Instruments assumiram a liderança e nos 20 anos posteriores, Intel, Toshiba e Hitachi, tornaram-se os novos líderes. Sylvania e RCA saíram completamente da disputa. Dos 10 líderes em tubos de vácuo em 1955, apenas dois restaram em 1975. E a história se repete ano após ano em cada segmento do mercado. Mudam os jogadores, mas não o jogo. Amazon, Netflix, AirBnB, Uber, Spotify, Nubank, iFood e uma infinidade de outros exemplos, deixam claro que mesmo se o céu hoje for de brigadeiro, nuvens pesadas estão logo ali na frente.
Tecnologias surgem aparentemente do nada — tal como terremotos que geram tsunamis gigantescos — e reduzem poderosos impérios a meras lembranças. Só que terremotos não surgem do nada. São incontáveis e imperceptíveis abalos, que seguem preparando um movimento tectônico descomunal, que cedo ou tarde irrompe de forma avassaladora. Com tecnologia não é diferente. Vejamos o caso da Inteligência Artificial. As pesquisas começaram tímidas há várias décadas, depois o computador passou a jogar xadrez, derrotar campeões mundiais e hoje é capaz de escutar e interpretar diferentes línguas e participar ativamente de conversas, automatizar tarefas humanas e apoiar determinantemente a tomada de decisões estratégicas. O mercado que era praticamente nulo em 1950, estava em US$ 43 bilhões em 2019 e é estimado para US$ 153 bilhões em 2023. Quantas empresas vão surfar esta onda e quantas ficarão pelo caminho como lembranças?
O que trouxe uma corporação com sucesso até aqui, não fará com que ela siga pujante através do tempo. O foco absoluto no presente limita a capacidade de evolução e coloca em risco o futuro. O foco desproporcional no futuro, no entanto, pode reduzir competitividade, comprometer a execução e ameaçar a sobrevivência.
Inovar é uma necessidade vital, mas não é tarefa simples. Pressupõe capacidades, conhecimentos e comportamentos que geralmente as organizações não dispõem. E aí reside o dilema, porque além do preparo para a inovação, as organizações precisam de execução sadia, com aumento de receitas e margens. Como inovar sem comprometer a execução? Há tempos a academia se debruça sobre a chamada “ambidestria”, a habilidade da executar e inovar simultaneamente e com sucesso.
Ambidestria = execução x inovação
A ambidestria tem uma relação direta com dois verbos da língua inglesa, que não possuem correspondentes exatos na língua portuguesa: “exploit” e “explore”, traduzidos livre e respectivamente por “explotar” e “explorar”. Organizações ambidestras conseguem simultaneamente “explotar” e “explorar” recursos e oportunidades no mercado. São capazes de gerir ao mesmo tempo dois motores bem diferentes – Inovação e Execução. Motores que tendem a tracionar em direções opostas e que operam sob sistemas de incentivos que deveriam ser completamente diferentes, mas que frequentemente são o mesmo.
Organizações não se tornam grandes por acaso. É um misto de posicionamento, oportunidade, resiliência, mas principalmente da alta capacidade de suas equipes. Então como é possível que a mesma equipe que levou a organização a tamanho sucesso no passado, simplesmente não consiga fazer o que todos sabem que precisa ser feito? O que trava ou impede estas equipes de inovar?
É relativamente comum encontrar uma organização que requer que um funcionário entregue relatórios semanais de vendas cada vez melhores, mas também que o incentive a ser “mais inovador” e a ter “mentalidade empreendedora”. Não obstante, a cada tentativa de fazer diferente, o funcionário vai à fronteira do desvio de processo e de ser repreendido. Ele é cobrado por “pensar fora da caixa”, mas por executar dentro dela. E invariavelmente ele é medido por vendas e lucratividade, mas não por sua mentalidade empreendedora ou sua capacidade de gerar inovação.
São os dois motores competindo pelos mesmos recursos e que operam em frequências e velocidades diferentes, tornando muito difícil a vida de quem quer operá-los em sincronismo.
Motor de Execução: é o responsável pelo dia a dia, por garantir que a organização entregue o combinado a seus clientes, enquanto busca constantemente a melhoria de processos para reduzir custos, crescer vendas e aumentar eficiência operacional. É o motor da metodologia “Six Sigma”, da otimização, padronização e aversão a riscos, para o qual errar é ruim e significa ineficiência e desperdício. O motor de execução é ligado à “explotação”. Explotar é vertical, é fazer mais do mesmo, de modo melhor e mais rápido. É fazer o melhor uso possível do modelo de negócios já bem definido e provado. A mentalidade de execução tolera inovações de horizonte 1 na terminologia da McKinsey, que são extensões incrementais na linha de produtos que consolidam o modelo de negócios atual.
Motor de Inovação: é o da novidade, da busca por fazer diferente e encontrar novos e melhores caminhos para a organização. Requer criatividade, flexibilidade, resiliência e tolerância a ambiguidade e riscos. Sobretudo, requer a compreensão de que errar com sistemática é parte do caminho de aprendizado, iterativo e em espiral na direção do novo: errar, errar, errar, cada vez menos, menos e menos. O motor da inovação é ligado à exploração. Explorar é horizontal, é tatear o mercado em busca de novidades que permitam fazer o mesmo, só que de modo diferente ou mesmo fazer o que nunca foi feito. É definir novos modelos de negócios e prová-los. A mentalidade de inovação busca pelos horizontes 2 e 3, que são novos modelos de negócios e novos mercados, até inovações disruptivas que abram a possibilidade da criação de novos negócios futuros, inclusive novas empresas.
Quanto melhor uma organização fica em explotar, a tendência é que fique pior em explorar, porque aquilo que funciona bem para a execução, não funciona para inovação e vice-versa. Conforme os processos evoluem para aderir à execução, mais restringentes tendem a ficar para a inovação. Organizações têm “glóbulos brancos” que eliminam tudo aquilo que parece estranho ao organismo. E convenhamos, inovações são bem estranhas no início. Isto explica o aparente paradoxo das organizações que magistralmente ascendem a posições de destaque na indústria, mas que têm muitas dificuldades para estabelecer esteiras de inovação bem-sucedidas.
A ambidestria busca a integração dos dois motores da forma mais suave possível; que os frutos do motor de inovação sejam bem absorvidos pelo motor de execução; e que tudo esteja em pleno acordo com os rigores da lei, regulamentos internos e melhores práticas da organização.
Abordagens para ambidestria
Quando se observa organizações em busca de ambidestria, alguns padrões emergem e, a partir deles, é possível identificar quatro abordagens características:
Sequencial: organizações que alternam longos períodos de explotação com alguns períodos de exploração. Normalmente, têm a execução como prioridade maior e partem para a inovação nas situações em que se consideram de algum modo ameaçadas ou diante de oportunidades que necessariamente precisam ser exploradas.
Contextual: organizações com preocupação maior em balancear a execução com alternativas inovadoras. Nesta abordagem, os indivíduos decidem o momento de explotar ou explorar, conforme a situação, a análise da oportunidade e os recursos disponíveis. Requer uma cultura de inovação que permeie toda a instituição e processos adequados para sustentar as implicações das decisões individuais.
Estrutural: organizações que encaram a inovação como parte relevante de sua própria execução. Utilizam unidades dedicadas à inovação, como centros de P&D, laboratórios de inovação digital etc, mas que mantêm suas operações totalmente independentes, com equipe, áreas de competência e sistemas de incentivos próprios.
Temporal: organizações que entendem que a inovação é melhor desenvolvida e gerenciada se estiver completamente separada da execução. Normalmente, mantêm foco obstinado na explotação e separam unidades completamente dedicadas à exploração. De tempos em tempos, conforme a conveniência e a necessidade do time de inovação, indivíduos do time de execução são temporariamente alocados nestas áreas separadas, de modo a fomentar colaboração e aliar presente e futuro, além de proporcionar um choque de realidade no grupo inovador. Esta proximidade facilita sobremaneira a assimilação futura daquilo que foi desenvolvido, posto que os indivíduos de execução também se veem e se portam como parte dos inovadores.
Evidentemente que uma mesma organização pode oscilar entre as diferentes abordagens. Em grandes corporações é até perfeitamente possível que as abordagens estejam sendo utilizadas simultaneamente em divisões, subsidiárias ou geografias diferentes. A colaboração e a integração entre as áreas de inovação e execução deve estar no centro de qualquer proposta. A alocação de pessoas, as métricas e, principalmente, o sistema de incentivos, precisam ser definidos de modo a valorizar indivíduos, práticas e ferramentas que cultivam sinergias, reforcem pontos de aproximação e mitiguem diferenças. Embora relacionamento pessoal sempre faça diferença positiva, a colaboração por cortesia ou não é escalável. Tudo isto sob uma liderança competente, que mais do que visão, tenha capacidade de descomplicar os impasses abaixo na organização, eventualmente, forçando alguns caminhos com obstáculos aparentemente intransponíveis.
Este artigo foi produzido por Marcelo Salim, Empreendedor Endeavor (2000), Professor da FDC, FGV-RJ e PUC-RJ, Líder de Inovação Aberta da IBM Brasil e Colunista do MIT Technology Review Brasil.