A tecnologia pandêmica deixou os especialistas em saúde pública de fora. Veja por quê isso precisa mudar.
HealthHealth Innovation por Einstein

A tecnologia pandêmica deixou os especialistas em saúde pública de fora. Veja por quê isso precisa mudar.

Enquanto os engenheiros corriam para construir aplicativos em resposta à Covid-19, eles deixaram alguns dos especialistas mais importantes de fora, diz a professora da Tufts e autora Susan Landau.

Tecnólogos corriam para tentar ajudar a retardar a disseminação da Covid-19 e por isso aplicativos de notificação de exposição foram criados no início da pandemia. O sistema mais comum foi desenvolvido em conjunto pelo Google e pela Apple, que serviu para criar dezenas de aplicativos em todo o mundo. A MIT Technology Review americana passou grande parte de 2020 monitorando-os. Esses aplicativos, que rodam em smartphones comuns e dependem de sinais Bluetooth para funcionar, foram criticados por questões de privacidade e falhas tecnológicas. Nos Estados Unidos, vários dos aplicativos enfrentaram baixo número de downloads, enquanto o Reino Unido teve o problema oposto, pois as pessoas foram inundadas com alertas.

Podemos agora avaliar como essa tecnologia foi implementada, principalmente porque nos oferece aprendizados para a próxima fase da tecnologia pandêmica.

Susan Landau, professora de segurança cibernética e ciência da computação da Tufts University (EUA), é autora de People Count, um livro sobre como e por que aplicativos de rastreamento de contato foram criados. Ela também publicou um ensaio na Science , argumentando que as novas tecnologias para apoiar a saúde pública deveriam ser cuidadosamente examinadas a fim de identificar as maneiras pelas quais elas aumentam as injustiças e as desigualdades sociais.

“Essa pandemia não será a última que os humanos enfrentarão”, escreve Landau, conclamando as sociedades a “usar e construir ferramentas e apoiar políticas públicas de saúde” que protejam os direitos, a saúde e a segurança das pessoas e que possibilitem maior equidade no atendimento à saúde.

Esta entrevista foi condensada e editada para maior clareza.

O que aprendemos desde o lançamento de aplicativos focados na Covid-19, especialmente no que diz respeito a como eles poderiam funcionar de maneira diferente ou melhor? 

Os tecnólogos que trabalharam nos aplicativos foram muito cuidadosos e se certificaram de falar com os epidemiologistas. Porém, eles provavelmente não pensaram o suficiente sobre o seguinte: esses aplicativos afetarão quem é notificado de uma possível exposição à Covid-19. Eles vão mudar a prestação de serviços [de saúde pública]. Essa é a conversa que não aconteceu.

Por exemplo, se eu recebesse uma notificação de exposição no ano passado, ligaria para meu médico, que diria: “Quero que você faça o teste de Covid”. Talvez eu me isolasse no meu quarto e meu marido me trouxesse comida. Talvez eu não fosse ao supermercado. Mas, fora isso, não mudaria muito para mim. Eu não dirijo um ônibus. Eu não trabalho no ramo de alimentação. Para essas pessoas, receber uma notificação de exposição é muito diferente. Você precisa de assistência social para apoiá-las, algo que a saúde pública conhece bem.

Susan Landau / FOTO DE CORTESIA

Na Suíça, se você receber uma notificação de exposição, e se o Estado disser “Sim, você precisa ficar em quarentena”, eles perguntarão: “Qual é o seu trabalho? Você pode trabalhar em casa?” E se você disser não, o Estado proverá algum apoio financeiro para você ficar em casa. Isso significa ter uma infraestrutura social para dar suporte à notificação de exposição. A maioria dos lugares, como os Estados Unidos, não oferecia esse suporte, por exemplo.

Os epidemiologistas estudam como a doença se espalha. A saúde pública [os especialistas] vê como cuidamos das pessoas e têm uma função diferente.

Existem outras maneiras pelas quais os aplicativos poderiam ter sido projetados de forma diferente? O que os teria tornado mais úteis?

Acho que está claro o debate sobre o fato de que apenas 10% dos aplicativos coletam a localização dos usuários, que são usados somente para fins médicos para entender a propagação da doença. Quando conversei com epidemiologistas em maio e junho de 2020, eles diziam: “Mas se não consigo dizer qual o local onde está se espalhando, estou ignorando o que preciso saber”. Essa é uma questão de governança do Google e da Apple.

Há também a questão de quão eficaz isso é. Algo que está relacionado com a questão da igualdade. Eu moro em uma área um tanto rural, e a casa mais próxima fica a várias centenas de metros de distância. Não vou receber um sinal de Bluetooth do telefone de outra pessoa que resulte em uma notificação de exposição. Se meu quarto ficar colado no quarto do apartamento do vizinho, poderei receber um monte de notificações de exposição se a pessoa ao lado estiver doente — o sinal pode passar por paredes de madeira.

Por que a privacidade se tornou tão importante para os desenvolvedores de aplicativos de rastreamento de contato?

Onde você esteve é realmente revelador porque mostra coisas como com quem você tem dormido, ou se você para no bar depois do trabalho. Mostra se você vai à igreja às quintas-feiras às sete, mas nunca vai à igreja em nenhum outro horário, e acontece que os Alcoólicos Anônimos se reúnem na igreja nesse dia. Para profissionais de direitos humanos e jornalistas, é óbvio que rastrear com quem eles estão é muito perigoso, porque expõe suas fontes. Mas mesmo para o resto de nós, com quem saímos e a proximidade a qual estamos das pessoas é uma coisa muito privada.

“O usuário final não é um engenheiro … é o seu tio. É a sua irmã mais nova. E você precisa ter pessoas que entendam como esses usuários usam as coisas”.

Há países que usam um protocolo mais voltado para o rastreamento de localização — Cingapura, por exemplo.

Cingapura disse: “Não vamos usar seus dados para outras coisas”. Depois eles mudaram, e agora estão usando-os para fins de segurança pública. E o aplicativo, que começou como voluntário, agora é obrigatório para entrar em prédios comerciais, escolas e assim por diante. Não há escolha a não ser o governo saber com quem você está passando seu tempo.

Estou curiosa para saber sua opinião sobre algumas das maiores lições para a construção de tecnologia pública em uma crise.

Eu trabalho com segurança cibernética e, nesse campo, demoramos muito para entender que há um usuário do outro lado, e o usuário não é um engenheiro da Sun Microsystems ou da Google no grupo de segurança. É o seu tio. É a sua irmã mais nova. E você precisa ter pessoas que entendam como esses usuários usam as coisas”. Mas isso não é algo para o qual os engenheiros são treinados, mas sim o que o pessoal da saúde pública ou os cientistas sociais fazem, e essas pessoas têm de ser parte integrante da solução.

Quero que um profissional de saúde pública me diga: “Esta população vai reagir ao aplicativo desta forma”. Por exemplo, uma grande parte da população cambojana nos Estados Unidos foi traumatizada pelo governo. Eles vão responder de uma maneira. A população imigrante que vem da Índia poderia responder de forma diferente. No meu livro, falo sobre a reserva Apache no leste do Arizona (EUA), que levava em consideração o fator social. Perguntar sobre os avós de alguém é uma medida de saúde pública, não é um rastreamento de contato.

Aplicativos e certificados de vacinação digital estão sendo implementados em um grande número de estados e países e são exigidos por entidades privadas. Para que funcionem, quem deve estar envolvido em seu projeto?

Tecnólogos de gerenciamento de identidade e que levem em consideração a privacidade. Como você compartilha informações sem revelar todo o resto?

E você deseja contratar pessoas que realmente apreciem as questões de privacidade relacionadas às doenças. O que vem à mente são os epidemiologistas e rastreadores de contato que trabalharam com a AIDS, que era um problema gravíssimo na década de 1980. Você os quer na equipe porque entendem de saúde pública e realmente entendem a importância da questão da privacidade. Eles entendem isso de maneira instintiva.

É ter pessoas inteligentes de cada campo envolvido. Eles têm que ser inteligentes, porque é difícil entender a linguagem de outra pessoa. E ambos os grupos precisam entender o que o outro está dizendo, mas também precisam estar confiantes o suficiente para estarem dispostos a fazer muitas perguntas. O verdadeiro entendimento é o mais difícil.

Esta história faz parte do Projeto de Tecnologia Pandêmico, apoiado pela Fundação Rockefeller.

Realidade brasileira

Em entrevista à MIT Technology Review Brasil, o CEO da epHealth, Pedro Marton Pereira, avaliou que no Brasil as tecnologias são desenvolvidas por pessoas que, muitas vezes, desconhecem a realidade do usuário final do sistema. Enquanto a maior parte da população é dependente do Sistema Único de Saúde (SUS) e está fora das grandes metrópoles, as empresas de tecnologia estão concentradas nesses lugares, nos quais há mais beneficiários de planos de saúde.

“O que usamos muito na empresa vem da filosofia japonesa do go and see, do ir e ver. Ir para campo, não necessariamente fisicamente, mas falar com usuários e entender o que acontece de fato. Esse é um grande desafio de conectar o mundo de tecnologia com a realidade das grandes demandas em saúde, de quem está no dia a dia, em uma unidade básica de saúde, no município, na zona rural. A exceção somos nós que estamos nos grandes centros, com acesso à alta tecnologia”, disse.

Para o empreendedor, ainda é preciso resolver questões básicas para que possa haver essa expansão tecnológica no país. “Fazemos uma comparação como se fosse a Alexa ou o Google Home da casa inteligente, mas em um terreno baldio. A realidade é esta: a saúde, em larga escala, tem muitas coisas básicas que ainda precisam ser feitas, e nós acabamos vendo uma desconexão dos desenvolvedores com muita metodologia nova, muita coisa bacana, mas que na prática demandaria concretagem, todo o alinhamento do terreno antes de trazermos a casa inteligente para a saúde”.

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