Quando recebi o convite para ser colunista dessa centenária revista, que já teve colaboradores como Thomas Edison e Tim Berners-Lee, meu primeiro desafio foi pensar em um tema que tenha sido tão importante para o mundo da tecnologia quanto essas personalidades foram.
Não foi difícil chegar às Encomendas Tecnológicas, um tema “pouco badalado”, mas que tem norteado boa parte da política de tecnologia e inovação dos EUA desde a aprovação do Buy American Act em 1933. No Brasil o instrumento começa a ganhar mais relevância apenas a partir 2018, quando foi regulamentado o seu uso no Decreto 9.283/18, tendo sido usado, inclusive, para viabilizar o recente arranjo entre a Universidade de Oxford, a farmacêutica AstraZeneca e a Fiocruz/Biomanguinhos para pesquisa, desenvolvimento e produção de uma das mais promissoras apostas mundiais de vacina contra o COVID-19.
Mas o que são as Encomendas Tecnológicas? Em termos simples, são um processo de compra pública de algo que ainda não existe. Ou seja, é um instrumento que permite ao Estado usar seu poder de compra para fomentar e desenvolver soluções inovadoras, que demandem pesquisa e desenvolvimento e que envolvam riscos tecnológicos, mas que tenham uma grande possibilidade de ganhos econômicos, sociais e estratégicos para a nação ou região.
Para se ter uma ideia do que estamos falando, as Nações Unidas estimam que cerca de 15% do PIB Mundial são referentes a compras públicas, cerca de US$ 10 trilhões de dólares. Entre os países da OCDE, 29% dos gastos governamentais são referentes a compras públicas. No Brasil o volume de compras governamentais em 2018 foi de R$ 483 bilhões, cerca de 7% do PIB naquele ano. Obviamente esses valores contemplam todos os tipos de compras e as encomendas tecnológicas são (e serão) apenas uma pequena parte desse montante. Mas eles ilustram bem o potencial do instrumento em uma época em que os governos são cada vez mais demandados a inovar para prestar bons serviços aos seus cidadãos e ganhar competitividade em um mercado globalizado.
Se os valores impressionam, os casos de tecnologias e inovações viabilizadas pelo instrumento não ficam para trás. A própria Internet foi uma delas. No final da década de 1960 a Agência de Projetos de Pesquisa Avançada do Departamento de Defesa dos EUA (DARPA), fez a encomenda de uma rede de comunicações que pudesse resistir a eventuais ataques nucleares. Nascia assim a ARPANET, responsável pela implementação dos protocolos TCP/IP, precursores da internet como conhecemos hoje. A capacidade de computação distribuída e recálculo frequente das tabelas de roteamento permitiu que a ARPANET pudesse sobreviver a interrupções significativas melhor do que a maior parte das redes de comunicações existentes no período.
Outro caso emblemático foi o projeto Apollo, que tinha como principal objetivo enviar o homem para a Lua e voltar em segurança. Em valores atualizados foi uma imensa compra de US$ 163 bilhões liderada pela NASA, que fez parte do núcleo da estratégia de soberania americana na corrida espacial disputada entre EUA e União Soviética, um dos temas mais intensamente debatidos mundialmente durante a Guerra Fria.
Mas nem só de “rocket science” e grandes números vive o mundo das encomendas tecnológicas. Em março desse ano, por exemplo, a pequena cidade de Helsingborg na Suécia (com pouco mais de 100 mil habitantes) lançou seu processo no valor de €690.000 (cerca de R$ 4,2 milhões) com o objetivo de comprar alimentos mais nutritivos e sustentáveis para escolas, asilos e enfermarias. Preocupados com o bem estar de sua população, a prefeitura acreditou que poderia encontrar e ajudar a desenvolver soluções inovadoras que atendessem melhor às suas prioridades locais.
Esses casos tão dispares mostram a enorme flexibilidade e o potencial de impacto do instrumento. A racionalidade por trás deles é relativamente simples. Dentre todos os riscos inerentes aos projetos de inovação, dois costumam se sobressair: os riscos tecnológicos e os mercadológicos.
O risco tecnológico é o risco de não se conseguir atingir tecnicamente uma inovação almejada. Seria o risco de não conseguir enviar o homem à Lua com sucesso ou não conseguir encontrar uma vacina funcional contra a COVID-19. Já o risco mercadológico é, uma vez superado o desafio técnico, não haver mercado/demanda suficiente para o produto ou serviço desenvolvido e todos os recursos investidos em P&D se tornarem prejuízos. É o caso do Apple Newton por exemplo que, em 1993, pretendia ser um antecessor dos smartphones, mas por diversas razões teve uma demanda muito baixa e foi rapidamente descontinuado. Mesmo com as inúmeras ferramentas gerencias atuais, as empresas tendem a possuir mais acurácia em prever (não necessariamente mitigar) os riscos tecnológicos do que os risco mercadológicos. Riscos tecnológicos em geral são mais associados às capacidades internas da empresa e de parceiros em superarem desafios técnicos. Já os riscos mercadológicos em geral envolvem muitos fatores exógenos como mudanças na regulação, variação de preço dos fornecedores, preferências dos consumidores etc.
É exatamente nesse ponto que as encomendas tecnológicas se mostram muito eficientes para viabilizar a transformação de invenções em inovações, principalmente as mais ousadas e arriscadas. Com a garantia de compra do Estado em caso de sucesso no atingimento dos requisitos da encomenda, a empresa (ou consórcio de instituições) consegue fazer uma análise focada nas suas competências internas e assim se lançar com 100% de dedicação sobre questão técnica demandada. Combinado com outros instrumentos como subvenções e financiamentos para compartilhamento dos riscos tecnológicos, o instrumento é capaz de ajudar a alcançar praticamente todo espectro da competência humana em solucionar problemas complexos.
Essa lógica é facilmente percebida quando observamos que até 1962, 100% dos circuitos integrados (microchips) vendidos nos EUA foram adquiridos via compras governamentais. Presentes em todos os eletrônicos modernos, de celulares a computadores, passando por aviões e automóveis, as aplicações e o acesso a essa tecnologia eram muito limitados e caros no final dos anos 1950 e início dos anos 1960. Os maciços investimentos governamentais via encomendas tecnológicas foram fundamentais para sustentar o aperfeiçoamento da tecnologia até ela atingir uma escala que a viabilizasse do ponto de vista comercial privado.
Certamente esse “novo mundo” das encomendas tecnológicas, descortinado há dois anos pelo decreto 9.283/18, abre uma enorme gama de possibilidades para o Brasil avançar posições significativas nos rankings globais de inovação nos próximos anos. Casos como o do desenvolvimento e a aquisição de protótipos de sistema de navegação inercial da Agência Espacial Brasileira, do desenvolvimento de sistema processual integrado entre o Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça e o Conselho Nacional de Justiça utilizando Inteligência Artificial, e do próprio arranjo da vacina contra a COVID-19 citado anteriormente já são exemplos concretos do uso da nova legislação, que passa a despertar o interesse de outros órgãos federais, estaduais e municipais que buscam por soluções inovadoras para problemas aparentemente insolúveis com as tecnologias atualmente disponíveis. Ainda é ousado falar, mas podemos já estar vivendo uma revolução silenciosa capaz de semear as “novas internets” e “viagens do homem à Lua” no Brasil. O futuro nos dirá. E mais… Podemos encomendá-lo!