A pandemia acabou acelerando a transformação digital em todos os setores. O uso de tecnologias digitais de forma intensiva pelas organizações foi a alternativa encontrada para que a atividade não fosse interrompida. E o setor público não ficou alheio a essa mudança. A segunda edição da pesquisa do Comitê Gestor da Internet no Brasil, que focou em serviços públicos on-line, mostra que a busca por informações ou realização de serviços públicos pela Internet aumentou durante a pandemia. Em relação ao direito do trabalhador ou previdência social, por sua vez, a pesquisa pela Internet saltou de 40% em 2019 para 72% em 2020. Áreas como saúde pública, que passou de 26% para 45%, e documentos pessoais, de 32% para 46%, também tiveram um aumento expressivo. Contudo, parte dos usuários relatou dificuldades para lidar com as tecnologias, especialmente em relação ao auxílio emergencial.
Podemos perceber que há dois desafios a serem superados quando falamos em digitalização de serviços públicos: o primeiro é a disponibilização de mais serviços digitais intuitivos e com melhor usabilidade, privilegiando a experiência do usuário, em linguagem cidadã; e o segundo, por sua vez, seria estimular a inclusão e o uso dos serviços digitais pelos cidadãos, criando uma cultura de sociedade digital, respeitando as peculiaridades e dificuldades dos diversos segmentos sociais.
Documento Nacional de Identificação
A pandemia, além de incentivar a transformação digital, mostrou particularmente a premente necessidade de digitalização de serviços da área da saúde e assistência social combinada com a inclusão e alfabetização digital dos mais carentes.
Pesquisa recente realizada pela Cetic.br, que estudou o uso da Internet no Brasil durante a pandemia, ressaltou as dificuldades relatadas pelos cidadãos para receberem o auxílio emergencial. Dentre as dificuldades listadas, sobressaíram-se aquelas relacionadas ao uso do aplicativo disponibilizado pela Caixa, especialmente pelos cidadãos pertencentes às classes D e E, visto que muitos não possuem um telefone celular, não têm acesso à internet ou mesmo dispõem de espaço disponível no aparelho para armazenar o aplicativo. Essa é uma face perversa do mundo real, do enorme desafio da inclusão digital e da digitalização dos serviços por parte dos governos.
Para além do fato de o auxílio emergencial não ter sido entregue a muitos que realmente atendiam aos critérios do programa, não são desprezíveis os números relacionados aos casos de erros e fraudes no pagamento do auxílio emergencial. Balanço divulgado pelo TCU em fevereiro deste ano estimou que 7,3 milhões de pessoas podem ter recebido o auxílio indevidamente, com um valor que pode chegar a R$ 54 bilhões, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Ainda assim, para uma política de tamanha magnitude, o órgão de controle identificou boas práticas dignas de menção, em especial o uso da tecnologia para concessão, manutenção e pagamento do benefício e de grandes bases de dados e cadastros nacionais para checagem dos indícios de irregularidades.
De todo modo, por melhor que sejam os controles e as tecnologias, identificar de maneira precisa o cidadão que necessita de políticas públicas em momento emergencial demanda algo que, infelizmente, ainda não temos no país. Seja para pagamento de benefícios sociais, seja para o controle dos cidadãos vacinados ou para a desburocratização de inúmeros serviços públicos, uma identidade civil única é o pilar fundamental.
A pedra basilar da digitalização dos serviços públicos é um cadastro de identificação nacional e único. Segundo Campos (2020), a identidade digital única está prevista na Estratégia de Governo Digital 2020-2022, sob o eixo “Governo Confiável”. A meta é emitir 40 milhões de identidades digitais até 2022, por meio do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que já tem uma grande base de dados biométricos dos eleitores brasileiros. A identidade digital única também vai ao encontro da meta 16.9 — “Prover identidade legal para todos, incluindo registro de nascimento” — da Agenda 2030 da ONU, com a qual o Brasil é um dos países comprometidos.
Um documento de identidade único e nacional não é assunto novo no Brasil. Por meio da Lei nº 9.454/97, já havia sido proposto o Registro de Identidade Civil (RIC), que tinha como objetivo unificar vários documentos como a Carteira de Identidade (RG), Carteira Nacional de Habilitação (CNH), Cadastro de Pessoa Física (CPF), Título de Eleitor, Carteira de Trabalho (CTPS), PIS/PASEP e registro do INSS. Após anos de tentativas frustradas e regulamentações duramente criticadas — como a criação do Sistema Nacional de Registro Civil (SINRIC) — o RIC naufragou. Em 2015 surgiu um novo Projeto de Lei que agregava os dados biométricos da Justiça Eleitoral à base de dados do Sistema Nacional de Registro Civil (SIRC), que fora criada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), além de outras informações dos institutos de identificação dos Estados e Distrito Federal. O PL 1775/2015 foi aprovado e se transformou na Lei nº 13.444/2017 e criou a Identificação Civil Nacional (ICN) e o Documento Nacional de Identidade (DNI). O Decreto nº 10.636/21, por sua vez, prorrogou o prazo para obrigatoriedade de adoção do DNI para 1º de março de 2022. O Tribunal de Contas da União (TCU), por meio do Acórdão 3145/20201, determinou que a Casa Civil da Presidência e o que Tribunal Superior Eleitoral desenvolvam um plano de ação conjunto e detalhado para implantação da Identificação Civil Nacional com o objetivo de “amparar as relações do brasileiro com a sociedade e com os órgãos e entidades governamentais e privados, conforme previsto na Lei 13.144, de 11 de maio de 2017”.
Qualidade e proteção dos dados
Uma das características vitais para uma base de informações é a qualidade dos dados. É fundamental que os dados estejam sempre atualizados para que reflitam a realidade social do país. Em relação a dados pessoais, a qualidade dos dados é definida como um dos princípios para o tratamento de dados na Lei nº 13.709/18, a Lei Geral de Proteção de Dados. E, nesse sentido, um provável novo adiamento do censo do IBGE que estava previsto para 2020 pode impactar ainda mais a qualidade dos dados que são usados para execução de políticas sociais e definição de coeficientes para repasse do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), que é a principal receita de grande parte dos municípios brasileiros. O corte no orçamento do IBGE pode gerar a necessidade de novo adiamento para 2022 por falta de recursos. E a falta de conhecimento atualizado e refinado sobre sua própria realidade é uma característica típica de países em desenvolvimento, ao contrário dos países ricos que privilegiam esse conhecimento. Ou seja, sem dados confiáveis, os governos ficam sem informações adequadas para conduzir políticas públicas efetivas e acabam gerando desperdício de escassos recursos e, como consequência, desamparo e abandono para a população mais vulnerável. Esse cenário, em um contexto de pandemia, acaba sendo amplificado e tendo efeitos ainda mais malignos.
Para tornar o cenário ainda mais complexo, vivemos uma época de ataques cibernéticos e vazamentos de dados recorrentes, sem maiores consequências para além dos titulares dos dados atingidos. Além disso, o Tribunal de Contas da União (TCU) divulgou recentemente o resultado de uma auditoria que avaliou a efetividade dos procedimentos de backup de 422 organizações públicas federais. O resultado foi assustador: 50,7% dos auditados não possuem política de backup aprovada formalmente e 33 instituições não fazem sequer o backup de seu principal sistema, tornando-as altamente vulneráveis a ataques cibernéticos.
Neste panorama, a baixa confiança dos cidadãos sobre o uso e proteção dos seus dados pessoais pelo Estado, além de compreensível, impõe um desafio ainda maior para o Estado. A escolha plausível neste momento, em que a privacidade é um direito fundamental e a LGPD está vigente no país, deverá ser pelo uso de arquiteturas transparentes e democráticas que devem dar suporte o identificador único e todos os dados governamentais.
Por muito tempo, dados pessoais foram coletados de forma excessiva e sem controle, incluindo pelas entidades governamentais. Essa coleta não veio acompanhada de uma estrutura mínima e profissional de governança de dados, com a devida atenção a aspectos básicos, como a segurança da informação. Segundo Brad Smith, CEO da Microsoft, uma política nacional de gestão de dados é instrumento fundamental para que os países consigam lidar com os desafios da nova economia e se preparem, por exemplo, para o uso massivo da inteligência artificial nas organizações e Estados.
A partir da edição da Lei Geral de Proteção de Dados, esse cenário deve mudar. Os dados coletados devem estar de acordo com o previsto no art. 7º e no Capítulo IV da LGPD, especialmente para permitir para a execução de políticas públicas previstas em leis e regulamentos ou respaldadas em contratos, convênios ou instrumentos congêneres. Além disso, a pauta da privacidade dos dados pessoais entrou na agenda nacional, de modo que os órgãos têm se preparado para lidar com as obrigações que a lei impôs.
Há razão para a desconfiança dos cidadãos sobre a capacidade do Estado para manipular as informações. Ademais, é latente a necessidade de o Estado ter a sua disposição informações mais confiáveis e precisas. Para isso, arranjos legais, institucionais e tecnológicos que tratem deste conflito de maneira equilibrada são fundamentais. Não haverá avanços estruturais se a informação não for tratada pelo Estado como um valioso bem [do] público, insumo fundamental para que suas políticas públicas sejam eficientes e efetivas.
Este artigo foi produzido por Fabio Correa Xavier, Diretor do Departamento de Tecnologia da Informação do TCESP, Mestre em Ciência da Computação, Professor e colunista da MIT Technology Review, em parceria com Wesley Vaz, Secretário de Fiscalização de Integridade de Atos e Pagamentos de Pessoal e de Benefícios Sociais do TCU.